Resenha

O tempo e Chico Buarque

Primeira fotobiografia do compositor e cantor carioca, 'Revela-te, Chico' reúne 210 fotos e pinturas inéditas que narram a trajetória do artista

TEXTO Débora Nascimento

06 de Maio de 2019

Chico e Marieta Severo, em 1969, no autoexílio em Roma, onde nasceu a filha Silvia

Chico e Marieta Severo, em 1969, no autoexílio em Roma, onde nasceu a filha Silvia

Foto Editora Globo/Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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Numa de suas mais belas canções, Chico Buarque descreveu poeticamente (como sempre) a força invencível da passagem do tempo sobre um artista. A composição O tempo e o artista, uma das 12 faixas do álbum Paratodos (1993), pode explicitar o papel que cumpre a primeira fotobiografia do compositor, Revela-te, Chico (Bem-te-vi Produções Literárias). Através de 210 imagens feitas por mais de 50 fotógrafos (e 22 pinturas inéditas), selecionadas dentre 20 mil pelo jornalista Augusto Lins Soares, é narrada a vida de diversos Chicos: o compositor, o cantor, o romancista, o dramaturgo, o delinquente juvenil, o filho, o neto, o marido, o pai, o amigo, o ativista, o futebolista, o carioca, o homem do mundo.

Como uma apresentação de seu personagem, o livro inicia com retratos coloridos e “em branco e preto” do fotobiografado, indo do esplendor de sua juventude até a fase atual, quando o tempo, “com seu lápis impreciso põe-lhe rugas ao redor da boca”. A história do artista é contada a partir de textos-legenda de Joaquim Ferreira dos Santos, autor de Um homem chamado Maria, biografia do compositor e jornalista Antonio Maria. Embora a escrita do jornalista carioca seja um trunfo da publicação, o protagonismo é mesmo das fotografias, muitas delas inéditas ou esquecidas nos arquivos de jornais e revistas.

A infância de Chico está retratada em imagens que revelam um garoto peralta e divertido. Em uma das fotos, o menino aparece com seus amigos fazendo algazarra na sala de aula, apertando a mão de um padre professor e sorrindo para a câmera. A paixão pelo futebol é registrada numa foto em que está vestido com a camisa do Fluminense, time de sua mãe, que o levava aos estádios. Em outra foto, destoando da seriedade do pai, Chico, vestido como se fosse entrar em campo, faz pose típica de jogador, agachado e segurando a bola no chão. Sorri para a lente com os dentes ainda desproporcionais de um pré-adolescente.

Os tempos da juventude têm como cenário o Rio de Janeiro, São Paulo e Roma, onde a família morou, quando Sérgio Buarque de Holanda foi convidado para dar aula de História na capital italiana. Durante o período, Chico estudou na Notre Dame International School, onde tinha aulas de inglês e italiano. Em 1953, antes de a família deixar o Brasil, Chico, demonstrando afeto e já uma ponta de ambição, deixou um bilhete para a sua avó paterna, Heloísa: “Olhe, vozinha, não se esqueça de mim. Se quando eu chegar aqui e você já estiver no céu, lá mesmo, veja eu ser um cantor do rádio”. A família voltou ao Brasil em 1954 e a avó faleceu três anos depois, sem assistir ao sucesso do neto.


O garoto Chico cumprimenta padre no Colégio Santa Cruz, em São Paulo.
Foto: Acervo Antonio Carlos Jobim/Reprodução


Engravatado, em foto bem-comportada, aos seis anos de idade. 
Foto: Acervo Antonio Carlos Jobim/Reprodução

Chico era aficionado por música desde cedo, tinha um álbum de recortes com fotos dos cantores do rádio. As canções, ele ouvia do rádio de Babá, como era chamada Benedita Motta, a cuidadora dos sete filhos da pianista amadora carioca Maria Amélia Cesário Alvim (Memélia) e Sérgio Buarque de Holanda. Descendente de índios paraenses, Babá, quando completou 10 anos na casa, ganhou como presente um rádio de válvulas. Nele, escutava os programas da Rádio Nacional. Mesmo quando os meninos saíram da casa e houve a morte de Sérgio Buarque em 1982, ela permaneceu com Memélia até 1993, ano em que faleceu. Babá aparece na fotobiografia numa imagem que registra os bastidores do documentário Certas palavras (1980), sobre o garoto que cuidou.

Quando era menino, Chico costumava cantar atrás da porta, como se quisesse fazer uma representação imagética do rádio, imitando o som que saía do aparelho. Nessa fase, ele também já gostava de fuçar a biblioteca do pai. Na adolescência, lia clássicos da literatura francesa, alemã e russa, o que lhe rendeu uma notável desenvoltura com as palavras. Isso fez com que a professora de literatura Miss Tuttle, da Notre Dame International School, ao se despedir do aluno, que regressava ao Brasil, escrevesse uma predição: “Quando o tempo passar e você estiver crescido, vou procurar contos e romances escritos por F.B. Hollanda”. Não se sabe se a antiga mestra lembrou de procurar ou se já estava no céu, mas Chico Buarque lançaria, sim, romances, inclusive premiados.

Na infância, ele foi uma criança moderadamente travessa e bastante adorável, já exercitando o fascínio que despertaria em milhões de brasileiros – alguns anos depois, o carisma o ajudaria a salvar sua pele. “Nunca fui tímido. Quando era garoto, meus pais me chamavam de show boy”, contou ao amigo de adolescência e cineasta Miguel Faria Jr, no documentário Chico – Artista brasileiro, de 2005. Na juventude, as brincadeiras de Chico desafiavam a fronteira da delinquência. Ele e seus amigos se especializaram em abrir, dar partidas e dirigir automóveis de desconhecidos e, quando a gasolina acabava, abandoná-los.

Numa dessas vezes, em 1961, ele e seu comparsa Olivier Jolles foram presos pela polícia. Naquele ano, Chico apareceu pela primeira vez num jornal. Mas nas páginas policiais. Com uma tarja no rosto e as iniciais do seu nome, F.B.H., pois era menor de idade. No entanto, não deixou de se preparar “para dar a cara a tapa”, que levou dos agentes da polícia. À foto que registra o ocorrido, com sua “figura de larápio rastaquera”, ele só teve acesso nos anos 1990 – a fotografia o inspirou a criar o projeto gráfico do álbum Paratodos e a composição de uma de suas faixas, A foto da capa.

Após passar a noite na delegacia, Chico foi liberado, aos cuidados de sua irmã mais velha Miúcha, sob a condição de que não faria mais farras noturnas até completar 18 anos. Nesse período de clausura doméstica, aprendeu acordes de violão com a irmã. Poucos anos depois, ela se casaria com João Gilberto, um dos maiores ídolos do irmão. Em 1959, quando Chega de saudade foi lançado, Chico Buarque, aos 15 anos, passou semanas ouvindo repetidamente o disco de estreia do cantor baiano, cujo estilo datou o vozeirão dos astros e estrelas do rádio e estabeleceu um marco na música popular brasileira. Assim como a maior parte dos aspirantes a cantores e músicos da época, Chico também encontrou em João uma referência.

Três anos após ouvir pela primeira vez Chega de saudade (1959), Chico vira cunhado de seu ídolo, João Gilberto, marido de sua irmã mais velha, Miúcha. Foto: Acervo Miúcha e David Drew Zingg/Reprodução

PRIMEIRO DISCO
Como a casa dos Buarque de Holanda era frequentada pela nata da intelectualidade do país, Chico, desde cedo, teve contato e foi influenciado por esse ambiente. A proximidade com Oscar Niemeyer despertou nele a vontade de cursar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, na qual ingressou em 1963. A faculdade, que abandonaria dois anos depois, na realidade, serviu para que ele estreitasse os laços com a música. Integrava um projeto chamado Sambafos, que reunia os instrumentistas amadores dentre os universitários. Nesses encontros, conheceu Toquinho, com quem se aventuraria em shows bem e malsucedidos, alguns anos depois, em duas pequenas turnês na Itália, realizadas em 1968 e 1969.

Antes disso, em 1965, Chico lançou o seu primeiro compacto duplo, Pedro Pedreiro e Sonho de um carnaval, em maio. E, em setembro, teve a estreia da peça Morte e vida severina, com versos de João Cabral de Melo Neto, musicados pelo compositor. Mas o ano da virada artística seria 1966. Nele, recebeu convite de Hugo Carvana para fazer um show com a atriz Odete Lara, que havia lançado seu primeiro LP, cantando bossa nova. No acompanhamento vocal do espetáculo Meu refrão, estavam os novatos do MPB-4. Chico apresentou 16 músicas inéditas, dentre elas, Olê, olá. Outra delas, Tamandaré, foi sua primeira composição censuradaa Marinha a considerou desrespeitosa ao almirante Joaquim Lisboa, o Marquês de Tamandaré.

Como em 1966, dois anos antes do decreto do Ato Institucional nº 5, ainda havia espaço para críticas contra o governo militar, Chico foi, então, ao Jornal do Brasil reclamar contra a censura (a fotobiografia mostra um registro da ocasião). Não surtiu efeito. Para substituí-la, compôs outra, que se tornou um clássico do seu repertório, Noite dos mascarados. Tamandaré nunca foi gravada. Meu refrão permaneceu em cartaz por meses. E, quando A banda estourou em outubro, o show ganhou novo título, extraído da letra da canção: Pra ver a banda passar.

A banda transformou Chico no “namoradinho” do Brasil. O país estava apaixonado pelo jovem de “olhos cor de ardósia” e “lábios espessos”, como o descreveu o relatório policial em 1961. A música havia sido apresentada no II Festival de Música Popular Brasileira, em 1966. O resultado do concurso estabeleceu que houve um empate entre ela e Disparada (de Geraldo Vandré), interpretada com ardor por Jair Rodrigues. Nos bastidores, segundo o musicólogo Zuza Homem de Mello, A banda havia vencido. Ao desconfiar que ganharia, Chico reivindicou que Disparada também ganhasse. Caso contrário, entregaria o prêmio a Vandré. A direção do festival acatou. Porém, quem saiu vencedor mesmo foi Chico.

A música virou febre e abriu o primeiro disco do cantor, que leva o seu nome completo e cuja capa (Chico feliz-Chico triste) se tornaria, nos anos 2010, o mais famoso meme do Brasil. Após o lançamento, foi saudado pelo público e pela imprensa. Inspirou texto de Carlos Drummond de Andrade, crônica de Nelson Rodrigues, frase de Millôr Fernandes: “Chico Buarque é a única unanimidade nacional”. Nascido no Rio, ganhou o título de cidadão paulista. Era recepcionado com festa em diversas cidades. Em Curitiba, foi saudado por uma banda marcial e multidão em praça pública. Na foto que registra o evento, Chico aparece segurando um Mug, um boneco mal-ajambrado do qual se tornou garoto-propaganda. Na imagem, o jovem cantor sorri, no meio do povo, como quem ainda está se acostumando aos festejos em torno de si.

Em 1966, com a cantora Odete Lara e o MPB-4, integrantes do show Meu refrão, que foi renomeado de Pra ver a banda passar, após o sucesso de A banda. Foto: Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

Em visita a Manuel Bandeira com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1967, quando descobre a existência do irmão alemão. Foto: Pedro de Moraes/Reprodução

Queridinho dos escritores, poetas e compositores, passou a circular com eles. Há uma foto que registra essa amizade, a da visita ao poeta pernambucano Manuel Bandeira, radicado no Rio. O artista está acompanhado dos escudeiros Vinicius de Moraes e Tom Jobim, seu “maestro soberano” – o trio cultivava uma adoração mútua, movida à música e a álcool. Em certo momento da reunião, Bandeira pergunta com naturalidade: “E como está o seu irmão alemão?” Chico não entendeu. O poeta não sabia que era um segredo dos pais de Chico.

Antes de se casar com Amélia, Sérgio Buarque teve um filho na Alemanha com uma namorada e, devido a uma sequência de fatos inesperados, acabou voltando ao Brasil e perdendo o contato com eles. Décadas depois, Chico contratou um investigador para encontrar Sérgio Günther, o irmão na Alemanha, que foi adotado por outra família. Quando, enfim, chegou à Europa, o compositor descobriu que o parente havia morrido, aos 50 anos, de câncer de pulmão em setembro de 1981 – Sérgio Buarque também morreu da mesma doença, em abril de 1982. Sérgio Günther (sobrenome dos pais adotivos) era jornalista, apresentava um programa de TV e, coincidência, tentou uma carreira de cantor. Em 2014, Chico lançou o livro O irmão alemão, que mistura ficção e realidade, em homenagem ao irmão que nunca conheceu.

AUTOEXÍLIO
Pode-se dizer que a unanimidade em relação a Chico Buarque durou pouco. Ao vencer o III Festival Internacional da Canção com Sabiá, parceria com Tom Jobim, foi vaiado pela plateia. Dessa vez, Geraldo Vandré ficou mesmo em segundo lugar. E o público não gostou, porque, para os espectadores, Sabiá seria uma letra inconvenientemente alienada, em meio ao grave momento político. Enquanto, do outro lado, Pra dizer que não falei das flores tinha uma explícita mensagem contra a ditadura. Poucos perceberam que Sabiá recorria à poesia para abordar o mesmo tema. Além da esquerda, Chico conseguiu também irritar a direita. Os conservadores, apaixonados pela aura nostálgica e ingênua de A banda, perceberam que o compositor não era adesista ao regime ditatorial. Na realidade, o artista não queria ser visto como o líder da resistência, muito menos como o “bom moço” de plantão.

Cinco dias após o decreto do AI-5, em 18 de dezembro de 1968, ele e sua esposa, a atriz Marieta Severo, com quem estava casado desde 1966, foram acordados com militares dentro de sua casa. Chico foi levado a depor. Um dos motivos: ter participado da Passeata dos Cem Mil. O general Assunção, que o interrogou, disse com ar de soberba: “Íamos te deixar aqui, mas vamos te liberar”. Possivelmente, pesou a força do nome Chico Buarque de Hollanda – não ia pegar bem para o governo militar manter preso, torturar ou matar o ídolo de diversas classes sociais. Assim como na prisão em 1961, o artista foi liberado sob uma condição, dessa vez pior, a de só sair do Rio com autorização dos militares. Chico aproveitou a aprovação de uma viagem a Cannes para ingressar em um autoexílio em Roma, onde nasceu Silvia, a primeira de suas três filhas com Marieta.

Embora tenha refutado a pressão de ser um ícone da esquerda, as imagens da fotobiografia (gênero pouco publicado no Brasil) de Chico Buarque comprovam que ele foi – e ainda é – um dos artistas mais combativos do país. Na sua contumaz discrição, sem fazer alarde, realizou e participou de diversos projetos e campanhas em favor de países da América Latina e da África, pelas Diretas Já, contra a fome e a seca e, mais recentemente, em março de 2018, foi flagrado em foto marchando na Cinelândia contra o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco.

MENINO FELIZ
O que a fotobiografia Revela-te, Chico revela ou, pelo menos, aponta e deixa registrado para “os escafandristas” é que haverá vestígios de um menino, um rapaz e um homem feliz. Talvez não seja coincidência que a seleção das imagens tenha optado pelas fotos em que ele aparece com seu belo e largo sorriso. Chico sempre surge cercado de irmãos, amigos, filhos, parceiros, cantoras, fãs. Na fase da velhice, vemos o artista sozinho em fotos no seu pequeno apartamento em Paris, onde costuma refugiar-se para criar. Mora só, desde a separação de Marieta Severo, em 1996, com quem conviveu por 30 anos. Aos domingos, ele e a família costumam ir à antiga casa na Gávea, onde reside a atriz, para um almoço em família. Os netos encontram, conversam e brincam com Vô Íco. Desde 1999, ele mora no Alto Leblon, um bairro dentro do bairro, onde pode ser visto circulando no comércio local, nos restaurantes, na praia.


Capa da fotobiografia, que teve organização do jornalista Augusto
Lins Soares. Foto: Reprodução

No começo, os paparazzi o seguiam para captar fotografias a serem publicadas nas revistas de celebridades e fofocas, em busca do solteiro mais cobiçado da cidade. Mas era tão grande a frequência com a qual circulava o alvo das câmeras, que os fotógrafos desistiram. Chico também tinha um truque: vestir sempre a mesma roupa, bermuda, camiseta e boné. Quem quiser dar um alô para ele, terá que correr, para poder acompanhar o seu ritmo de passo curto e apressado, o mesmo que vemos nas partidas de futebol de seu Polytheama e nos seus shows, quando ele vai de um lado para o outro do palco tocando as mãos ávidas dos fãs felizardos que conseguem alcançá-lo. Esse ritual repetiu-se no recente show, Caravanas, em que Chico apresentou uma sofisticação de nos dar novamente orgulho por esse homem, que tanto desafia o tempo, ser um artista brasileiro.

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista do site da revista.

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