Depoimento

Uma década de formação em dança e cinema na UFPE

TEXTO ROBERTA RAMOS E RODRIGO CARREIRO
ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS

05 de Agosto de 2019

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo na íntegra | ed. 224 | agosto de 2019]

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Há 10 anos, o Recife ganhava os cursos superiores de Licenciatura em Dança e Bacharelado em Cinema na Universidade Federal de Pernambuco. Ambos foram antecedidos por uma produção artística promissora na cidade e oportunizados pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o REUNI, instituído pelo Decreto Presidencial 6.096/2007, no primeiro ano do segundo mandato do governo Lula.

Para marcar o início dos dois cursos, como fruto de uma parceria entre a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Recordança e UFPE, aconteceu, no Recife, o seminário Interseções: corpo e olhar, com enfoque interdisciplinar sobre o corpo, mas nessa primeira edição voltado, sobretudo, para as relações entre Dança e Cinema.

Ao longo da última década, pudemos presenciar investimentos de políticas federais na universidade pública, mas tais investimentos, nos últimos anos desta mesma década, em especial em 2019, não só estagnaram, como sofreram cortes radicais em todo o Brasil. Caso não revertidos, tais cortes comprometerão o funcionamento da maior parte das instituições federais de ensino superior ainda no segundo semestre deste ano.

A seguir, testemunhos dos professores Rodrigo Carreiro e Roberta Ramos, respectivamente professores-fundadores dos cursos de Cinema e Dança, trazem um pouco da memória do contexto de surgimento de tais cursos, incluindo perfis e marcos, das mudanças ocorridas e reflexões sobre as condições de funcionamento, bem como o acolhimento de estudantes nesses cursos no presente.

CICLOS DO CINEMA
O cinema de Pernambuco é responsável por um capítulo importante na história da sétima arte no Brasil. Como se sabe, o Ciclo do Recife (1923-1931) constituiu um dos primeiros movimentos de produção audiovisual da época, com 13 longas-metragens realizados. Mais adiante, entre os anos 1970-1980, o Movimento do Super-8 deixou um legado de 40 filmes, esticando os limites do cinema experimental que aqui se produzia. Novamente, a fase que os pesquisadores chamam de Cinema da Retomada (de 1994, até hoje) encontrou Pernambuco como protagonista, tanto na produção de longas premiados: Baile perfumado, em 1996; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, em 2000; Árido movie e Cinema, aspirinas e urubus, ambos de 2005; além de uma miríade de curtas-metragens de talento, como Texas Hotel (1999), Clandestina felicidade (1998), Eletrodoméstica (2005) e Superbarroco (2008), entre dezenas de outros.

Desde meados dos anos 1990, havia uma ligação umbilical entre os diretores, roteiristas e técnicos que faziam cinema em Pernambuco e a UFPE; em particular, entre eles e o curso de Comunicação do CAC (Centro de Artes e Comunicação), onde a maioria estudou. O que faltava – e Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro, Marcelo Gomes, Marcelo Pedroso, Hilton Lacerda e outros cobravam – era a criação de um curso de graduação em Cinema. Eles sentiam falta de um espaço que fosse, ao mesmo tempo, um centro de formação de um olhar cinéfilo e um espaço formador de mão de obra especializada. Naquela época, tarefas mais técnicas – direção de fotografia, edição e mixagem de som, montagem – eram muitas vezes levadas ao eixo Rio-São Paulo. Não havia infraestrutura e nem material humano capaz de dar conta daquelas demandas.

Até meados dos anos 2000, de fato, outras iniciativas cumpriam, informal e parcialmente, essas lacunas. O Centro Audiovisual Norte-Nordeste (Canne), braço multimídia da Fundaj, oferecia, de tempos em tempos, cursos especializados com profissionais veteranos que tentavam suprir, em parte, a demanda por formação técnica. A mesma Fundaj, através da programação arrojada de filmes independentes, obscuros e/ou clássicos, oferecida pelo Cinema da Fundação, tornou-se, talvez sem muita consciência, um projeto consistente e duradouro de formação de plateia. Essas iniciativas definiram o alicerce sobre o qual surgiria o primeiro Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE, cujas aulas foram iniciadas no primeiro semestre de 2009.

O projeto pedagógico do curso nasceu dessa demanda. Havia público. Havia cineastas. Havia criatividade. Faltava apenas um organismo institucional que aproveitasse esse legado e o estruturasse em termos pedagógicos. A oportunidade para fazê-lo nasceu em abril de 2007, quando o governo do então presidente Lula anunciou a criação do REUNI, um programa de reestruturação e expansão das universidades públicas brasileiras. Nos 10 anos seguintes, o REUNI duplicaria o número de vagas no ensino superior gratuito disponíveis no Brasil. O Bacharelado de Cinema e Audiovisual nasceu nesse contexto, dentro do Departamento de Comunicação Social da UFPE, a partir da iniciativa de um grupo de professores, liderado por Angela Prysthon e Paulo Cunha.

O curso de Cinema foi aprovado pelo Conselho Universitário da UFPE em meados de 2008. No final daquele ano, foram realizados três concursos públicos para a contratação de docentes (eu me juntei ao grupo nesse momento); no semestre seguinte, foram contratados mais quatro colegas. As diretrizes básicas que o projeto original estabelecia eram simples. O curso pretendia formar profissionais habilitados para atuar em três eixos: na prática (diretores, roteiristas, montadores, fotógrafos, editores de som etc.), na teoria (professores e pesquisadores) e na crítica cinematográfica. Os alunos tinham a oportunidade de direcionar essa escolha de forma individual, pois cerca de 20% da carga horária era formada por disciplinas eletivas.

Em 2013, logo depois de formar a primeira turma, o curso recebeu uma comissão do Ministério da Educação para avaliá-lo. Ao final, ganhamos o conceito 4, que corresponde a “muito bom” (o conceito máximo, de excelência, é 5). Foi motivo de muita comemoração. O relatório da comissão, contudo, também expunha alguns problemas e dificuldades, a maioria ligados a questões de infraestrutura. Tendo coordenado o curso por cinco anos (de 2010 a 2015), posso afirmar, sem hesitação, que lidar com os aspectos burocráticos de administração e gestão em universidade pública tem sido um desafio gigantesco e permanente.

A visita da comissão do Ministério da Educação constituiu, da minha perspectiva, o ponto de partida de uma nova fase do curso. Com base na experiência de cada um dos docentes do curso, e para atacar os pontos fracos apontados pelo relatório da comissão, iniciamos estudos para reformular o projeto pedagógico original. Em 2016, mais de dois anos e várias comissões interdisciplinares depois, e com mais dois docentes contratados em regime de dedicação exclusiva, o novo projeto entrou em vigor, enxugando ainda mais as disciplinas obrigatórias e tentando suprir mais diretamente a demanda dos alunos por atividades de ordem prática.

Para isso, contamos com a duplicação do espaço do Laboratório de Imagem e Som, o LIS, e a compra de equipamentos – atualmente, o LIS conta com 16 ilhas de edição profissionais, estúdios de gravação de imagem e som, um sistema de empréstimo de gravadores de quatro canais, microfones e outros equipamentos. O Laboratório de Fotografia, equipado com câmeras DSLR, também ganhou uma reforma nas instalações. Com o apoio da atual gestão na Reitoria, conseguimos ainda realizar uma reforma nas salas de aula do Departamento de Comunicação. Elas ganharam isolamento acústico, além de um novo sistema elétrico e de refrigeração.

Por fim, os 10 anos do Bacharelado em Cinema e Audiovisual mostraram aos docentes mudanças significativas no perfil dos alunos. Até 2012, os alunos de Cinema e Audiovisual eram, quase todos, oriundos de Pernambuco. A sanção da lei nº 12.711/12, em abril daquele ano, provocou uma mudança grande nesse perfil. O primeiro processo seletivo realizado após a instituição da lei de cotas fez com que 49% dos estudantes do curso tivessem origem em outros estados da federação – assim, passamos a ser o curso da UFPE com maior demanda de fora de Pernambuco. Uma quantidade significativa de estudantes era, também, de origem pobre e, muitos deles, negros. Naturalmente, essa mudança de perfil sensibilizou a maioria dos docentes para um salto social importante que a sociedade brasileira vivia. Uso o verbo no passado porque, infelizmente, o contexto político atual parece reagir no sentido oposto, e o futuro permanece nebuloso. De todo modo, continuamos trabalhando para que todas as conquistas – da ampliação da infraestrutura necessária para filmar até a inserção social – sejam mantidas.

CICLOS DA DANÇA
Como não conferir um tom melancólico a uma narrativa acerca de não mais que uma década e na qual já se conjugam no passado alguns verbos referentes a saltos políticos e sociais? Apesar de o primeiro curso superior de Dança do Brasil existir desde 1956 (na UFBA), a história da maior parte dos cursos superiores hoje existentes no Brasil, incluindo o da UFPE, confunde-se com o que aconteceu nacionalmente à dança há pouco mais de uma década, através das articulações propiciadas por uma conjuntura política que envolveu, no nível nacional, as câmaras setoriais e posteriores colegiados setoriais das linguagens artísticas, organizações locais da sociedade civil e mecanismos de investimento, tais como o REUNI, já mencionado anteriormente.

No Recife, em meados de 2009, no mesmo ano de início das atividades do curso de Dança, podíamos nos deparar com alguns bons indícios para a dança local. A organização de sua memória dava mais um passo, através do anúncio da segunda etapa do Recordança, projeto de acervo digital de história da dança. A Agenda Cultural do Recife noticiava, em julho de 2009, em entrevista com o Movimento Dança Recife, coletivo político criado em 2004, alguns dos êxitos da organização política dos artistas da dança: a ampliação da verba para projetos da área no edital Funcultura; uma gerência específica da dança na Prefeitura do Recife; além, claro, da criação do curso.

A conquista de um curso superior em Dança na cidade foi fruto, por um lado, de articulações do Movimento Dança Recife – tais como debates, pesquisa de demanda local, consultas a outras universidades, sensibilização de docentes do Departamento de Artes (à época, Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística) e reitor da Universidade Federal de Pernambuco –; e, por outro, de um cenário federal que favoreceu, tanto através da indicação da Câmara Setorial de Dança de que fortalecer a formação superior em dança em todo o Brasil era uma das prioridades do investimento federal para a área, quanto pelo que foi oportunizado pelo Programa REUNI.

O cenário nacional, que, àquela altura, propunha algo inédito – a organização de agentes de todas as áreas da arte e da cultura para a proposição de um Plano Nacional de Cultura e Sistema Nacional da Cultura –, estreitou o diálogo entre as entidades locais de organização civil para a discussão sobre as quais seriam as prioridades convergentes da Cultura nacional e as particulares a cada área artística. Esse foi um contexto nacional de aprofundamento da participação democrática, na qual agentes da cultura, através de mecanismos de interlocução, tomaram parte na responsabilidade de indicar as políticas que desejavam para cada área.

Como demandas particulares à área de Dança, foi entendido como prioridade, ainda, o mapeamento da produção e da formação em dança de todas as capitais brasileiras, através do primeiro e único módulo do projeto Mapeamento Nacional da Dança (2014-2016), que se debruçou sobre oito capitais, entre elas o Recife. Essa primeira e, infelizmente, única etapa do projeto concluiu-se pouco antes do golpe contra a então presidenta Dilma Rousseff, período que iniciaria um longo processo de impedimento à continuidade, não só dessa frente política para a cultura, como, de resto, de muitas outras que representaram os tais “saltos” que vemos agora ser destruídos.

Em toda minha trajetória de 26 anos na UFPE, incluindo meus anos de estudante, pude ver e vivenciar corporalmente as mudanças atravessadas pela Universidade, da estrutura precária na década de 1990 do século passado, para melhores condições na primeira década do século XXI, passando pela ampliação, para comportar novos cursos, áreas e suas necessidades peculiares – novas salas de dança, banheiros etc., até a sua atual precarização novamente. Desde que sou professora do Departamento de Artes, onde o curso Dança de encontra abrigado, vi serem criados o Programa de Pós-Graduação e o Bacharelado em Artes Visuais; e, em Dança, presenciei, nessa primeira década, o esforço de nosso corpo docente para assegurar um ensino, bem como projetos de pesquisa e extensão criteriosos e consequentes com a sociedade, ao ponto de termos tido o reconhecimento dessa dedicação na avaliação do curso, que obteve, assim como Cinema, a nota 4, em 2013. Da mesma forma, com todos os ataques à Universidade, tal esforço ganha resistência no nosso empenho em trabalhar, atualmente, para a melhoria do currículo do curso, de modo que ele possa, cada dia mais, dialogar com o que a universidade avançou para tornar-se mais acessível através de programas como o de cotas. Hoje, a universidade não é uma instituição exclusiva da alta cultura, por isso, ela precisa estudar e discutir o grande fluxo de diferentes saberes e culturas que por ela circulam. Assim, entendo que a universidade não pode e não deve retroceder

É claro que há sempre de questionar-se a suficiência de um curso superior para o avanço de um campo de atuação em uma cidade, de forma que outras frentes de luta são necessárias, a exemplo da reivindicação constante pela abertura de vagas para a Dança no Ensino Básico público.

Frente aos ataques que temos sofrido às conquistas sociais históricas, em uma das passeatas, das inúmeras a que tenho ido desde 2016, um antigo colega me abordou dizendo: “Voltamos aos anos 1990, hein?” Se ele tivesse razão, pensaríamos na história como um círculo, mas a espiral parece uma imagem mais justa com os ciclos da história e com o contexto que estamos vivenciando. A organização nacional de artistas, docentes e pesquisadores em artes pelo Brasil não pode e não deve ter volta. Não foi à toa que, em 2016, o movimento mais contundente de resistência começou com o Ocupa Minc, para impedir a então destruição, fusão desse Ministério com o da Educação, ainda que isso não tenha impedido a atual dissolução do Ministério da Cultura.

O que a universidade se tornou após a política de cotas e ao entendimento já familiar de que “cota não é esmola” não pode ter volta. As experiências novas de organização para fazer política que vêm introduzindo mandatos coletivos em instâncias parlamentares, com a presença e representação negra, LGBT, indígena etc., não permitem que a história seja exatamente a mesma do passado. As diferenças do presente fazem com que o tempo que vivemos seja, portanto, bastante complexo.

Desde 2016, começamos a presenciar episódios de judicialização da arte, retaliação a cineastas por seus posicionamentos engajados, ataques às áreas de Humanas, bem como à universidade como um todo. Contudo, os mecanismos de avaliação do mesmo MEC que nos ataca têm, controversamente, reconhecido nosso empenho. Recentemente, o curso de Teatro da UFPE também obteve nota 4, e, logo após, um curso de dança um pouco mais recente que o nosso (na UFPB) obteve 5. São indícios de que o que fazemos não é “balbúrdia”, como acusa o atual ministro da Educação, desconhecendo totalmente a rotina da universidade pública brasileira.

Trata-se de um cenário que torna premente a resistência da universidade como um todo. Mais do que nunca, precisamos estar organizados, pois há de haver uma diferença relevante em uma massa de atacados determinados a agir em conjunto. Os últimos manifestos em defesa da Educação deram sinais de que estamos dispostos a tal organização.

ROBERTA RAMOS, professora Doutora do Curso de Licenciatura em Dança da UFPE e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Membra do Acervo Recordança, desde 2003, e do Coletivo Lugar Comum, desde 2011.

RODRIGO CARREIRO, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE, em que cursou Mestrado e Doutorado em Comunicação (Cinema).

LUÍSA VASCONCELOS, estudante de Design e ilustradora.

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