Portfólio

Juliana Notari

Catarse e liberdade

TEXTO LUCIANA VERAS

02 de Setembro de 2019

Quando exposta, a videoperformance 'Mimoso' se sobressai pela contraposição entre beleza e dor

Quando exposta, a videoperformance 'Mimoso' se sobressai pela contraposição entre beleza e dor

Foto Acervo pessoal da artista

[conteúdo na íntegra | ed. 225 | setembro de 2019]

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Em 1989, aos 14 anos, Juliana Notari Nascimento tinha todas as dúvidas intrínsecas à travessia da adolescência, porém carregava uma certeza, à época ainda não partilhada com o mundo. A constatação veio quando ela viu, pela primeira vez, uma obra sua publicada em um jornal. Seu professor de artes em uma escola recifense, o artista Maurício Silva, havia secretamente enviado um esboço em grafite de um corpo feminino para um salão infantojuvenil. Filha de um designer, neta de um pintor, ela passaria os anos seguintes, aqueles acometidos pela famigerada tensão pré-vestibular, indagando se os próximos passos seriam estudar Filosofia ou Sociologia ou embarcar na mesma carreira do pai. Mas lá estava ela, a convicção: "Já sabia que era artista".

Luiz Notari, o avô materno, tinha sido um pintor que trazia na biografia colaborações com Heitor Villa-Lobos e Cândido Portinari. Lembranças da casa dos avós, no Cordeiro, zona oeste do Recife, como o cheiro de terebintina, são tão importantes para a memória afetiva e para a construção subjetiva quanto a convivência familiar na residência onde cresceu, em Olinda. Foi lá que Juliana Notari se constituiu artista, adotando o sobrenome italiano da mãe Regina, e cidadã, herdando do pai João Roberto "Peixe" do Nascimento, ex-preso político torturado durante a ditadura militar instaurada no Brasil entre 1964 e 1985 e figura essencial na estruturação de políticas públicas de cultura na redemocratização, a consciência sobre a importância da liberdade.

Liberdade para se expressar, para conjurar novos signos a partir dos traumas e para se posicionar. "Tudo é político. No nosso país, vivemos uma ferida enorme, causada por uma defasagem educacional e cultural, da qual a arte não consegue dar conta, pois tudo é muito mais complexo. Mas quero usar a minha sensibilidade para atravessar a sensação de angústia e enfrentar esse desafio imenso que é ser artista no Brasil de hoje, quando a arte está sob ataque", pontuou Juliana em um encontro com a Continente.

Symbebekos, performance feita pela primeira vez em 2004, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, nasceu do medo. Foto: Acervo pessoal

Ver Juliana em ação, seja explicando seu processo criativo, seja elaborando reflexões sobre as composições imagéticas de suas fotografias, videoinstalações e registros de performances, traduz seu modus operandi: ela é extremamente organizada, mesmo diante de dois monitores e centenas de diretórios com suas obras listadas por ordem alfabética; ela é sincera em sua loquacidade ("fiz Artes Plásticas na UFPE, não gostei e quase fui jubilada") e rápida na concatenação de raciocínios – uma fala pode trazer referências de Peter Pál Pelbart a Louise Borgeouis, de Paulo Herkenhoff a Lars Von Trier, de Ingmar Bergman aos amigos e pares artísticos Isabela Stampanoni e Rodrigo Braga; e é bastaste consciente ao elaborar sobre suas obras, seus motivos e possibilidades de leitura.

E, afeita à liberdade, vê-se sempre aberta ao confronto consigo mesma e ao acaso. Symbebekos, performance feita pela primeira vez em 2004, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, nasceu do medo. “Eu tinha sido assaltada sete vezes, algumas com arma na cabeça. No intervalo de poucos meses, passei pelo mesmo susto, de forma quase igual e no mesmo sinal: um garoto chegou ao meu carro e colocou um caco de vidro no meu pescoço. Pensei logo que medo tinha cheiro e vidro era um dos materiais mais típicos da contemporaneidade”, conta Juliana. Ao longo de várias semanas, ela coletou garrafas de vidro – “saía catando o Recife inteiro, minha mãe morrendo de medo de que eu pegasse tétano” – para depois esterilizá-las e espatifá-las. O objetivo era formar um caminho a ser percorrido pela artista durante o ato performativo.

Em Symbebekos, repetida outras três vezes (Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro) até 2019, o que ela não queria era a violência gratuita. "A dor pela dor não me interessa, mas, sim, aonde o estado da dor pode me levar. Como artista, seria mais impactante se eu pisasse nos cacos de vidro e me cortasse toda em vez de apenas caminhar por entre eles, afastando-os com os pés", sugere. Talvez fosse assim que Marina Abramović – artista sérvia que ela admira pela entrega e pela contínua tensão do corpo – fizesse. Mas para Juliana Notari era preferível a "poesia" ao choque: "Penso que esse trabalho é mais poético do que uma body art. Escolhi esse nome pela sonoridade e só depois fui ver que se tratava de um conceito aristotélico de causa acidental, ou seja: tudo a ver".


Em Dra. Diva (2006), Juliana rasga uma fenda como uma vagina na parede branca, criando uma interferência com textura de sangueFoto: Acervo pessoal

Com Abramović, contudo, ela partilha a apropriação do próprio corpo como armadura e plataforma de embate – embate esse que por vezes se dá entre Juliana e ela mesma. "Meu corpo sempre esteve presente nos meus processos, talvez porque eu tenha desenvolvido uma compulsão alimentar ainda muito nova, na adolescência. Comia sem limites, até passar mal, e cheguei a ficar internada por ingestão excessiva de açúcar", revela. Com o tempo, foi aprendendo a respeitar os limites do seu organismo para mantê-lo saudável o bastante a fim de que nele pudesse operar outros tipos de excesso.

Sorterro (2013), cujo nome deriva do seu léxico particular e mais da sonoridade do que do sentido (“essa palavra não existe”), é uma série de fotografias que documenta, no decorrer de dois anos, a metamorfose sofrida por seu corpo quando Juliana desiste de aparar todos os pelos. Muda (2016) é a videoinstalação que registra o momento seguinte, quando ela se submete à depilação, registrando com crueza um doloroso rito cotidiano para corpos femininos como o seu. Mais: a artista aproveita as sobras da cera usada na remoção dos pelos para esculpir a própria cabeça. 

Esses trabalhos não foram os primeiros em que ela se ateve ao potencial dessa matéria orgânica em despertar reações contraditórias no público, como estranhamento, repulsa, nojo e até medo. Em dois conjuntos de objetos e na ação Janta, de 2001, já ressaltava a estranheza que o acúmulo de cabelos poderia causar, ora compartimentalizados em tufos dispostos em um carrinho hospitalar ou arranjados em itens decorativos, ora colados a torsos de manequins, ora forrando uma mesa de jantar. Em Desmantelo (2003), as bolas de cabelo foram queimadas em espaço público pela artista, numa ação transcorrida na rua onde funcionava o Atelier Submarino, em Santo Amaro, do qual ela fazia parte. Havia no fogo um aspecto "purgatório", como ela mesma sublinha.


Sorterro (2013) documenta a metamorfose sofrida pelo corpo quando os pelos deixam de ser aparados. Foto: Acervo pessoal

Porque, tal como a liberdade, a catarse é um elemento crucial na práxis artística de Juliana Notari. Dois de seus trabalhos mais conhecidos – Mimoso e Soledad, de 2014 – conjugam tais preceitos. Não por acaso, foram desenvolvidos durante uma residência em Belém, fruto do prêmio Funarte – Mulheres na Arte Contemporânea de 2013, uma das inúmeras viagens que a artista, afeita aos deslocamentos, empreendeu nas últimas duas décadas – Milão, Berlim e Rio de Janeiro são algumas das metrópoles por onde andou enquanto amadurecia sua criação.

Mimoso surgiu quando foi convidada pela produtora Rosa Melo para gravar episódios da série Brasil Visual, cujas duas temporadas foram exibidas na TV Brasil. "Nós íamos para a Ilha do Marajó e eu estava pensando em quais ideias poderia trabalhar. Já tinha estado na ilha e percebido que lá tem mais búfalo do que gente”, lembra. Sua decisão foi encenar um ritual com a participação desse ruminante, a ser capturado por várias câmeras. Nua, amarrada pelos pés ao búfalo preto Mimoso, Juliana seria puxada ao longo do areal da Praia do Pesqueiro, talhando mais uma vez na própria epiderme sua caligrafia artística. "Mas, na noite anterior, o veterinário que eu tinha contactado me contou que o búfalo seria castrado. Resolvi incluir isso no trabalho também e fui além: decidi que ia comer os testículos do búfalo e que isso tudo seria gravado", recorda. 

Quando exposta, a videoperformance Mimoso sobressai pela contraposição entre beleza e dor. Há o cortejo da artista nua sendo arrastada ao longo da praia pelo animal e o contraste entre sua fragilidade e pequenez e a brutalidade do corpulento búfalo; há, também, o desconforto ao vê-la ingerir os testículos do animal. Numa mesa cuidadosamente posta para a "refeição", com talheres emprestados de um bar à beira-mar no Pesqueiro, a alvura do lençol contrasta com o sangue de Mimoso, que havia sido castrado de forma cruel, sem anestesia. "Eu estava no período de dois anos sem me depilar e ali, naquele lugar, com aquele animal, me vi sujeita a forças da natureza, a forças libidinosas, à vibração que emanava pelo búfalo e à liberdade de seguir no fluxo", define. 


Em Diário de bandeja 4/4 (2008), o falo e a fenda emergem em meio aos objetos brancos e destroçados. Foto: Claus Lehmann/Divulgação

Em Soledad, outro fluxo energético se propunha. Vestida de branco, com o mesmo figurino com que encarnara a Dra. Diva (2006), Juliana adentra-se num mausoléu do mais antigo cemitério de Belém, munida de água, baldes, vassouras e esponjas, em arrojo que lhe rendeu o prêmio máximo do Salão Arte Pará. Se, em Dra. Diva, ela rasgava fendas no formato de uma vagina em uma parede (e retomaria o mesmo processo, só que em uma árvore centenária e com um espéculo e seu sangue menstrual, em Amuamas, de 2018), modificando propositalmente outros corpos físicos ao seu redor, aqui, a artista se imbui de uma missão purificatória: o que porventura entrasse no seu campo de visão seria por ela higienizado. 

"Tinha autorização da Prefeitura de Belém para estar ali, mas não sabia o que poderia acontecer, se acharia um rato ou uma cobra, por exemplo. Quando cheguei, um ossuário estava aberto e comecei, então, a retirar tudo para lavar. Terminei e minha roupa estava podre, toda verde do limo, e os ossos e aqueles túmulos de mármore estavam limpos. Foi uma troca entre vida e morte", situa. 

É da experiência, pois, que ela se constitui. Não somente do que se atinge por meio do ato artístico em si, pois entende que ser artista é atuar em veredas diversas. Está escrevendo a tese de doutorado em Artes Visuais na UERJ enquanto planeja um retorno a Symbebekos. Cita Paulo Bruscky, Janet Cardiff, Lourival Cuquinha, Grupo Camelo e Ana Mendieta, enquanto mostra Diva, projeto de site specific concebido para a Usina de Arte, em Santa Terezinha, na Mata Sul, e brinca com os curiosos títulos dos seus trabalhos. "E Inneresteren, quem é que sabe o que significa?", comenta, em alusão a uma de suas obras pioneiras (com bebês de borracha cobertos de grafismos), enquanto aponta para Dez dedos, livro que publicou em 2012. Múltipla, discreta, nômade por desejo próprio, artista desde que "se entende por gente", Juliana Notari e sua poética visual fascinam, provocam e inquietam.


Vestida de enfermeira, em Amuamas (2018), a artista repetia o ritual de carvar uma fenda na forma de vagina, dessa vez em uma árvore centenária e com um espéculo e seu sangue menstrual. Foto: Acervo pessoal

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