Entrevista

“Para nós, tudo é rio”

Com 80 anos, Dona Onete conta sua experiência de vida até se tornar fenômeno da música brasileira e evidencia seu apreço pela cultura e tradição do lugar onde nasceu

TEXTO Erika Muniz

11 de Outubro de 2019

Foto Adriano Fagundes/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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A cada canção, Dona Onete apresenta ao mundo um pouco da profusão de culturas – indígena, negra, caribenha – que é o Pará. As ervas, os barcos, as folhas de jamburana, o carimbó chamegado, “pegar banzeiro”, tudo é estímulo para as composições dessa paraense nascida na Ilha do Marajó. Antes de ser a rainha do carimbó, Ionete da Silveira Gama cantava na beira do rio músicas de Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Herivelto Martins e outros. Ela conta que seu primeiro público foram os botos, esses seres aquáticos fortemente presentes no imaginário popular, através de lendas.

Aos 80 anos, sua carreira musical teve início somente pelos anos 2000, um período em que a música paraense estava sendo mais divulgada nas rádios e TVs públicas. Um dos resultados disso, o Festival Terruá Pará, evento desenvolvido para a circulação de artistas do tecnobrega, carimbó, rock, guitarrada e outros ritmos paraenses, levou Dona Onete para a abertura no palco do Ibirapuera, em São Paulo, a convite do produtor Carlos Eduardo Miranda. Naquela época, em início de carreira, a rainha do carimbó afirma que o gaúcho foi um dos que primeiro acreditaram na sua arte.

Além da música, ela dedicou 25 anos à sala de aula, lecionando História. Tanto o ensino quanto o fim de seu casamento a aproximaram da militância, durante o regime militar. Mas a cozinha paraense e seus temperos sempre fizeram parte de sua vida e estão entre as suas paixões. O primeiro álbum Feitiço caboclo, de 2012, fez o público conhecer o tremor que a Jamburana tem. O segundo, Banzeiro (2017), por sua vez, marca a presença do grande guitarrista paraense Pio Lobato na produção, que atualmente cuida da banda. Ele também produziu o mais recente Rebujo, lançado este ano. Vários clipes e as canções dos três estão disponíveis na internet, ferramenta que ela percebe como importante na divulgação de seu trabalho desde o seu começo.

Desse terceiro álbum, é impossível não mencionar o clipe Festa do tubarão, repleto de elementos e personagens da cultura paraense. Desde o início do ano nas redes, o vídeo traz roteiro e direção assinados por Natara Ney e pelo cineasta pernambucano Lírio Ferreira. Além da turnê de divulgação, este mês, Dona Onete sobe ao Palco Sunset, do Rock in Rio, para comandar o projeto Pop Pará, junto aos seus conterrâneos Fafá de Belém, Gaby Amarantos, Jaloo e Lucas Estrela.

Com o bom humor que a caracteriza, nesta entrevista, concedida à Continente antes de ela se apresentar no palco da Rádio Frei Caneca FM (à qual agradecemos a mediação e produção), Dona Onete relembra o início da carreira, momentos de sua vida, atuação política, além de refletir sobre a relação dos paraenses com a água, e sobre como é escrever sua história em meio a uma tradição majoritariamente masculina. Mas Dona Onete também revela o segredo para estar sempre sorrindo: “A felicidade da gente, a gente é que inventa”.

CONTINENTE A senhora nasceu em Cachoeira do Arari, depois foi para Belém e, em seguida, Igarapé-Miri… Conta esse trajeto.
DONA ONETE Me criei em Belém até os 18 anos, depois eu fui para Igarapé-Miri para passear, era a cidade que a minha tia morava. Namorei com o rapaz que foi meu marido e fiquei morando por lá, depois voltei para Belém de novo.

CONTINENTE A relação dos paraenses com o rio é forte, não é?
DONA ONETE Quase todos os lugares do Pará são ribeirinhos. Enquanto, para vocês, são estradas ligando a estradas, no Pará, são muitos rios, seus afluentes e paranás. É uma geografia diferente da de vocês. Nosso transporte é quase todo por água, pouco por terra. Agora é que estão fazendo mais pontes para poder viajar de carro. Antes, era só por água. Para a gente ir para uma cidade chamada Santarém, em Alter do Chão, um lugar muito famoso, agora só vai de avião, mas já estão fazendo uma estrada para ir para lá. São cinco dias de viagem de navio e, de avião, só uma hora.

CONTINENTE É água demais, Dona Onete.
DONA ONETE Muita água, meu amor, muita água doce. Uma maravilha!

CONTINENTE Sua conterrânea, Gaby Amarantos, contou em entrevista que antes de lhe conhecer pessoalmente corria uma história de que a senhora cantava para os botos. Como era isso?
DONA ONETE (Risos) É, sim! Pelos anos 1950 eu fui para Rio das Flores, em Igarapé-Miri, na mesma cidade onde morava minha tia. Não sei até hoje por que chamavam Rio das Flores. Se era porque tinha muitas moças bonitas, diziam que tinha mesmo, mas eram muitas flores plantadas na beira do rio, nos canteiros… Aí, chamavam assim. Esse rio faz uma viagem muito grande, mas, se você passar por ele, você ganha menos tempo de viagem. Era tipo um furo para chegar ao outro extremo. Passavam os marabaenses com barcos muito famosos e fortes que iam para Marabá, uma cidade do Pará. Comecei a observar, a pegar maresia, pegar banzeiro no casco, igual à música do meu CD. Eu não sabia nadar, até hoje eu não sei por que não deixavam eu ficar no meio dos botos para aprender isso. Um dia, eu vi um boto e comecei a conversar com ele. Depois, eram dois botos. Daí, comecei a alimentá-los com jambu-rosa e a cantar para eles. (Risos) Minha tia ficava preocupada porque existe uma lenda de que eles namoram e engravidam as mulheres. É coisa de antigamente. Agora, não acontecem essas coisas com tanto barulho que tem. Comecei a cantar todos os dias, já era para mais de 10 botos. Minha tia acabou me mandando de volta para Belém. Eu cantava músicas de Dorival Caymmi, Dalva de Oliveira e eles por ali, rondando. À noite, era preciso chamar a pajelança para minha casa, passar alho, rezar um terço (risos). Dei muito trabalho à minha tia e ela me mandou de volta para estudar. Quando eu voltei a Rio das Flores, anos depois, já me esqueci disso. Fui para ver as músicas, a festa que eles faziam de banguês (ritmo tradicional paraense). É como para vocês o maracatu, coisas da raiz cultural. Eles começavam a cantar e comecei a me interessar pelo banguê, mas aí eu voltei para Belém novamente. Fiquei com aquilo, e hoje estou jogando esse ritmo tão bonito que ouvi na minha infância nos anos 1950. Banzeiro é uma dessas músicas.

Show de Dona Onete e banda. Foto: Bruno Carachesti/Divulgação

CONTINENTE Que dá título ao seu segundo disco. E aquela capa linda?
DONA ONETE É, estou num barco na frente de Belém e do outro lado é uma ilha chamada Combú. Lá tem de tudo, só você vendo. Comidas típicas, chocolates feitos do cacau do Pará, muito açaí. É muita coisa típica, só vendo.

CONTINENTE A senhora me falou dessa aproximação paraense com os rios, inclusive para o transporte. Fiquei pensando, no Recife, a gente tem o Rio Capibaribe, mas a relação é bem diferente. A maior parte da população recifense não utiliza o rio tão intensamente assim…
DONA ONETE Para nós, tudo é rio. Agora, como eu disse, estão construindo estradas e pontes, para chegar mais rápido, mas continua não perdendo essa coisa com o rio. Você vê os barcos lá no Ver-o-Peso, eles trazem de tudo. É uma animação danada. Toda hora tem o barco “popopô” indo para cidades perto da gente.

CONTINENTE O Ver-o-Peso que a senhora diz é o mercado público de Belém?
DONA ONETE Sim, um mercado muito bonito de ferro que veio da Inglaterra. São dois mercados, um de peixe e um de carne, mas o pessoal quase não ligava para isso. Culturalmente, o Ver-o-Peso era tipo um supermercado, sabe? No meu tempo de criança, lá se achava de tudo, mas depois que surgiram os shoppings e as mercearias, o Ver-o-Peso ficou um pouco esquecido. Só ia lá quem realmente gostava de ir, para comprar um peixe. Só que já tem peixe no supermercado também, né? Aí, foi ficando… Hoje em dia, voltou depois de No meio do Pitiú (canção lançada no álbum Banzeiro, 2017). É uma animação só, tem tudo que você precisa ver, lá.

CONTINENTE Os mercados públicos costumam ser lugares para conhecer a cultura de várias cidades.
DONA ONETE É, sim, veja o de Belo Horizonte… Eu estive no da Bahia, tem muito artesanato, mas o de BH se mistura a comida com a cultura.

CONTINENTE E, voltando para a música, como foi o seu encontro com o coletivo Rádio Cipó?
DONA ONETE Eles vieram morar próximo à minha casa, umas quatro casas, bem pertinho. Tinha uma casa que tocava carimbó todos os sábados e domingos e eles tocavam rock, mas a gente ainda nem os conhecia. Fui dar uma canja, nem era cantora ainda, mas sabia cantar, tinha aquela história de Igarapé-Miri e tudo que te contei. Comecei a cantar, quando eles ouviram a minha voz, acharam que eu era nova, que tinha entre 25 a 30 anos. Eles estavam procurando uma voz de mulher para cantar na banda deles e mandaram ver quem era que estava cantando. Chegando lá, disseram: “Ih, cara, não é nada disso. É uma senhora, que deve ter uns 60, 65 anos”. Mesmo assim, eles começaram a procurar pela pessoa. “É a Dona Onete, aquela que canta sempre no carimbó.” Vieram atrás de mim, mas eu disse que não, porque era uma banda de rock e eu já tinha idade. Seu Laurentino era um senhor de mais idade que eu e cantava com eles. Ele veio e convenceu o meu marido. Eu estava com esse problema que até agora tenho, um pouco de cadeira de rodas, um pouco eu ando, mas fui lá e aceitei, porque para ficar em casa também é mais doença, né? Comecei a cantar com o Rádio Cipó, nós gravamos o CD deles, em que tenho duas músicas. Uma dessas músicas foi até tema do filme com a Camila Pitanga, você sabe?


Capa do disco Banzeiro. Foto: Divulgação 

CONTINENTE Sei sim, no filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Beto Brant, né?
DONA ONETE Você viu eu cantando lá, né? Pois isso foi o começo de tudo.

CONTINENTE Como foi essa experiência com o filme? A senhora viajou para gravar?
DONA ONETE Viajei para lá, fiquei uma semana hospedada entre Santarém e Alter do Chão. Quando voltei, cantei com meu grupo no Rio de Janeiro, no ivo Futuro, em Ipanema. Começamos a cantar em todos os Sesc. O coletivo terminou, pelo motivo deles, e eu fiquei sozinha. Foi quando eu fui fazer uma abertura no show do Naná Vasconcelos. Fui escolhida como mestra de carimbó por Belo Horizonte, pelo Banco do Brasil. Fiz show com o Trio Manari, chegando lá, falei com Naná Vasconcelos. Quando ele me viu cantar, disse: “Mas, mulher, que bela voz você tem! Você nem precisa acompanhamento, você canta sem acompanhamento. Hoje, você abre o meu show, quem sabe um dia não sou eu que vou abrir para você?”. Mas não foi possível a gente cantar juntos, ele foi “simbora” mais cedo, viajou, como você sabe. O produtor dele, Geraldinho Magalhães, hoje em dia é meu produtor. Pernambucano da gema! Em 2012, quando estive cantando no Recbeat, eu parabenizei vocês (pernambucanos) ao vivo por serem um celeiro de cultura, por preservarem e colocarem essa cultura para o mundo. O Pará também é um celeiro de cultura, estava faltando alguém tomar conta e expor para todo mundo ver. Hoje em dia, estou mostrando nossa cultura. Ainda não é tudo, ainda farei muito mais (risos). Quero é ter vida e saúde.

CONTINENTE Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro, Gang do Eletro, Joelma do Calypso… E essa música atual do Pará?
DONA ONETE Nós temos muitas cantoras paraenses, meu amor. Cada cantor segue o que quer. Tem os que estão cantando outras pessoas, quando poderiam cantar coisas do Pará, deles mesmos. Mas não falo mais nada. O Felipe (Cordeiro) me ouviu e seguiu, sabe? Ele mesmo me chama madrinha. A Gaby (Amarantos) também, eu a aconselho muito. Ela me pede muitos conselhos. “Segue também tua vida, Gaby. Você é compositora, canta, tem voz, tem talento, tem tudo. Vai!” A gente tem que dar a cara da gente para bater, no sol, na chuva, e caminhar. Eu, com essa idade, estou fazendo 80 anos. Imagine eles, que são novos! Tem muita moça aqui que canta bem, mas ainda não se achou para o sucesso vir. O ritmo está mudando, meu amor, você está vendo. Sertanejo veio e varou. Tinha uma barreira, aí o samba ficou. No meu CD, eu até canto um samba para o Rio de Janeiro. É uma coisa de que eles são reconhecidos como “a terra do samba”. Fiz um samba e quem canta comigo é até o Bnegão, você conhece?

CONTINENTE Conheço, sim, é um grande rapper.
DONA ONETE Pronto, ele canta comigo. É meu grande amigão desde que eu cantava no Rádio Cipó. Eu convidei ele para cantar comigo esse samba. Ele é do Rio de Janeiro, então, em homenagem a ele e ao morro de lá que se chama Babilônia.

Cantora posa junto com personagens da cultura paraense. Foto: Bruno Carachesti/Divulgação

CONTINENTE Além de Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Emilinha Borba… Quem são seus ídolos da música?
DONA ONETE Sim, esses e Ângela Maria. Chorei muito quando ela se foi. Ainda cheguei a conhecê-la em São Paulo, mas ela já estava fraquinha, já não ouvia muito bem. A gente se abraçou muito. Ela me deu muitos beijinhos e eu também dei muitos nela. Ela disse que era minha fã, já pensou? Eu quase enlouqueci! Também disse que era fã dela. Quando ela cantou, aconteceu uma coisa. Eu fui lá fora, na rua mesmo, na frente do palco do Anhangabaú. Tinha muita gente de idade, sentada nas cadeiras para ouvir Ângela. Eu tinha pedido para ela cantar uma música e quando ela cantou, virei macaca de auditório, gritava. Meu produtor veio: “Pelo amor de Deus, Dona Onete! A senhora vai cantar depois. Não gaste a sua voz!” (risos). Ela me pediu a receita que eu tinha feito no programa da Angélica. O marido dela disse que ia procurar na internet, que eles iam fazer em casa. Ela adorou que eu disse que era “engana visita”. O grande Cauby Peixoto, também, está na minha música; Herivelton Martins era aquela briga com Dalva de Oliveira. Era uma sofrência, agora se fala em sofrência, só que já tem há tantos anos, né, meu amor? (risos). Ela cantava uma coisa, ele cantava outra e a gente se divertia, comprava livros e vinis. Fora do Brasil, era o Elvis. Chorei quando estive em Cleveland, onde está o Museu do Rock, quando vi aquelas roupas dele. Pensar como é que eu via aquelas roupas no cinema e estava vendo ali? Pois é, é muita história.

CONTINENTE Ah, tem o seu lado roqueira também.
DONA ONETE Tem! Eu canto qualquer coisa, sou eclética. Eu dizia que não cantava brega. No meu CD tem um brega chamado Ação e reação. O pessoal adorou.

CONTINENTE Dona Onete, provei há pouco tempo a cachaça de jambu, por curiosidade, provocada por sua música. Assim como a música, a bebida é bem forte mesmo, envolvente…
DONA ONETE (Risos) Se eu tiver condição, ao menos umas três ou quatro flores de jambu vou levar para você ver como as flores são ainda mais ativas. Treme demais! A gente só usava no tacacá e no tucupi, né? Arroz paraense, pastel, creme, tudo leva o jambu, mas aquilo muito rústico, muito nosso, ninguém sabia de nada. Depois da Jamburana, está muito popular, até fora do Brasil, por causa desse tremor anestésico que ele tem.

CONTINENTE Sua música é uma forma de mostrar para o mundo elementos da cultura do Pará.
DONA ONETE É, de divulgação. Nos grandes festivais que eu faço, quando estou indo para fora, não é só como cantora e compositora, também cozinho muito bem a comida típica do Pará. No show de Londres, eu também cozinhei. Hoje em dia, essa comida do Pará está em primeiro lugar pro mundo, né? Só era Belo Horizonte que ganhava quando tinha concursos de comidas típicas, mas nós ganhamos. Só que nossa comida é toda na base de tucupi, jambu, açaí, o que a gente tem. Até o macarrão da cor do açaí estão fazendo.

CONTINENTE A senhora tem mais de 300 canções autorais. De onde vêm essas composições?
DONA ONETE Quando eu era casada, não podia ainda cantar nada. Fui fazendo muitas composições e guardei. Tem gente que me compara, tipo, a Cora Coralina. Fui entrevistada em Belo Horizonte e a moça disse: “Dona Onete, sua história se compara quase com a de Cora Coralina”. Eu fazia e guardava, porque meu marido detestava as letras que eu fazia. Ele se enciumava porque eu falo de muitas coisas picantes na música. Eu não falo nada de ninguém, não faço apologia a nada. Eu canto o amor.

CONTINENTE Sua música parece muito intuitiva. De que forma a decisão por fazer músicas começou?
DONA ONETE Acho que essa coisa já estava dentro de mim, porque eu não tenho parentes músicos. Tem horas que eu fico pensando se existem essas coisas de outras vidas, outros mundos. Quem sabe isso que está em mim não foi algo de antes? Porque, eu fico pensando, ninguém tocava carimbó na minha família. A gente gostava de música, de dançar, mas nunca pensei que ia chegar a isso. Voz eu tinha, linda, porque eu cantei seresta, as músicas de Dalva (de Oliveira), de Emilinha (Borba), de todo mundo… Nunca pensei que ia chegar aonde cheguei, que nem sei onde foi. O pessoal diz: “Dona Onete, pelo amor de Deus!”. Falaram que o clipe que eles fizeram meu já estava com 150 mil de visualizações. Nem isso eu vejo, o celular só uso para atender, não mexo em computador. Talvez seja por isso que as minhas composições ainda são muito minhas, não misturou com quase nada do mundo moderno.


Foto: Juarez Ventura

CONTINENTE E a banda que a acompanha?
DONA ONETE Ah, minha banda é maravilhosa. Eles me dão tudo, meu amor. Estou acompanhada de amigos. O Pio Lobato é um grande guitarrista, que fez o (projeto musical de 2003) Mestres da guitarrada. Ele agora é que toma conta da minha banda, que vai comigo, viaja para todo o Brasil. Não pego um músico aqui, outro ali. Tenho muito trabalho. Vocês do Recife já repararam que eu tenho um pouco de frevaço? Banzeiro lembra vocês, porque eu misturo negro, indígena… O negro que veio para o engenho aqui do Pará, em Igarapé-Miri, veio das bandas do Recife. Também sou neta de pernambucano. Meu avô era pernambucano. Até hoje eu não conheço essa família Silveira, sei que ele era dono de engenho, mas a gente não sabe de nada dele. Ele veio sozinho, se embrenhou por Marajó, casou com uma marajoara…

Foto: Juarez Ventura

CONTINENTE Já que a senhora falou da guitarrada, como é ser uma mestra em meio a uma tradição de carimbó, de guitarrada com nomes de destaques predominantemente masculinos?
DONA ONETE É isso que eu te digo, venci uma barreira, meu amor. Existia uma barreira nessa música, no carimbó. Eram só homens, era “coisa de homem”. Uma mulher se sobressair e abrir portas para eles, né? Eu trago um jeito de cantar diferente, a letra do meu carimbó fala de coisas de amor. O carimbó do Pará fala muito de coisas ribeirinhas, do jeito que eles falam, não digo no ritmo, mas no linguajar. A língua portuguesa não aceita o jeito que se fala. Eu, como professora, da quinta à oitava série, tinha que lançar um português direto. Então, essa parte ajudou muito, porque eles chegam, falam do jeito que eles vivem. A gente gosta porque, para mim, é a coisa mais linda que tem aqui no Pará é o nosso linguajar.

CONTINENTE Pesquisando, vi que a senhora já foi filiada ao PT, é verdade? Como a senhora observa a atual situação política no Brasil e como é sua atuação?
DONA ONETE Para ver como eu gosto de minha liberdade… Nunca fui filiada ao PT, eu somente me meti na luta. Achei que a causa era nobre. Tinha saído de um casamento que eu não sabia para onde seguir, está entendendo? Uma mulher que viveu 25 anos, que não sabia mais dançar, não sabia namorar, não sabia nada. Saí do casamento completamente às cegas. De repente, tinha amigos professores que já estavam no movimento. Eles diziam: “Onete, segue com a gente, ao menos tu te divertes, sai de estar chorando e se lamentando”. E eu segui e me achei. Eu queria falar, queria dizer, queria lutar e lutei. Fui muito fundo. Na fundação da CUT, no PT, tudinho, eu estava lá. Ainda era período da repressão. Amigos nossos do Pará apanharam muito numa briga que teve lá em São Paulo. Eu vivi nesse tempo. Ainda cheguei a ser entrevistada pela TV Manchete, que não existe mais. Eu cantava no Bar Brahma, de São Paulo. Essa trajetória vem somando. Ninguém sabia quem eu era… Nunca neguei, porque eu luto contra a discriminação. Fiz uma música para os meus fãs LGBTs, aquela Na linha do arco-íris. É uma homenagem minha. Não é qualquer uma que dá a cara a bater e sair para cantar uma música assim.

CONTINENTE E sua atuação em sala de aula? Além da arte, tem sua vivência como professora…
DONA ONETE Por ser professora, tinha o sindicato de professores daqui, no qual eu defendia o estudo laico, mas que a religião católica estivesse também, porque você está vendo o que está acontecendo, né? Então, eu queria que tivesse aula do estudo laico e do religioso. Era nossa maior briga.

CONTINENTE Mas a senhora defende todas as religiões?
DONA ONETE Sim! Sou a favor de todas. Todas as religiões levam para Deus. Agora, eu canto em casa de candomblé, que eu não entendo muito, porque nós aqui usamos os encantados. Para nós aqui é o nagô, são os encantados, o encantamento, Mariana, Jarina, essas coisas… Eu canto no meu primeiro CD a música Dandara.

CONTINENTE Como é que a senhora observa sua vida hoje? Desde o que já foi ao que vem por aí…
DONA ONETE Acho que vocês nunca viram eu dizer que eu passei fome, necessidade… Não passei. Às vezes, eu digo que tenho saudade daquele tempo em que a gente era tudo livre, que quintal não tinha cercas, que o filho do vizinho comia na minha casa e eu ia e comia na casa do vizinho. Aquela liberdade de criança. Brinquei de tudo, de papagaio… Tudo o que eu podia. Brinquedo de homem, jogava bola na rua com os moleques. Fui muito feliz na minha pobreza. Até hoje, digo para as pessoas que ninguém teve um lençol com gotas de lua. Eu me embrulhava na palha da casa que eu morava, que era de taipa, a casa da minha avó. Me embrulhava com o lençol e a lua dava aqueles pingos para mim. Era a coisa mais linda que estava acontecendo na minha vida. Vendo a lua jogar pingos no meu lençol. Até já me pediram para fazer uma música disso, quem sabe depois? Continuo muito romântica com essa idade.


Foto: Juarez Ventura

CONTINENTE Em 2018, a gente perdeu o músico e produtor musical gaúcho Carlos Eduardo Miranda, que era seu amigo e a convidou para edições do Festival Terruá Pará
DONA ONETE Nem me fale, que Deus coloque a alma dele no reino da glória. Miranda acreditou numa mulher que ele nem conhecia. Somente pela minha voz. Mostraram para ele e ele me fez abrir um show em São Paulo, quando só cantava duas músicas no coletivo Rádio Cipó. Causou um auê no meio de artistas. Era uma disputa, me discriminaram muito. Pensaram que eu ia errar e eu não errei. Três festivais Terruá, eu abri. O Miranda me deu essa grande força, acreditou em mim, e ele era danado, né? Quando ele acreditava numa pessoa… Ele sabia que ia dar no que deu. Fiz um show na Casa Natura com ele e fui agradecer a ele. Chorou ele e chorei eu. Ele disse para mim: “Vai em frente, minha preta. Você ainda nem chegou ao patamar que merece”. Mas ele morreu e deixou a gente com muita saudade.

CONTINENTE Seu vídeo No meio do Pitiú tem mais de 10 milhões de visualizações no Youtube. Como a senhora observa a internet na divulgação de sua música?
DONA ONETE Ah, chegamos ao denominador comum! É agora que vou te dizer qual é a razão do sucesso: foi a internet. Cheguei nessa era. A internet mostrou rápido para todo mundo, porque se fosse de show em show, de boca em boca, seria muito difícil. Todos os lugares em que eu estou, me filmam e mandam. Tive a oportunidade de cantar o Pitiú nos EUA, no Empire States, né? Não é para qualquer um. Tem duas brasileiras que subiram lá para cantar, sou a terceira. De lá, eu fui para aquela praça, onde acontece a virada de ano, a Times Square. Sem falar inglês, nem nada, mas o meu sorriso vai abrindo os caminhos, aquele abraço cheiroso que eu digo que é chamegado. Isso para as pessoas é muito bom. Eles me dizem: “Ô mulher cheirosa!”. Mas é claro, o cheiro do Pará (risos).

CONTINENTE É verdade que sempre vemos a senhora com esse sorriso no rosto. Qual o seu segredo?
DONA ONETE (Risos) Olha, meu amor, por mais que às vezes tenha um pouquinho de tristeza na gente, ninguém vai tirar o sorriso. Se um dia tiver que chorar, chora. As coisas da gente, tem que guardar e mostrar para as pessoas… Que custa dar um sorriso para uma pessoa? Tinha uma senhora de 83 anos que fazia aniversário e eu sou amiga das filhas dela, mas não a conhecia. Ela chegou ao meu show e me disse: “Dona Onete, estou fazendo 83 anos e vim te ver”. Não podia ir aos meus shows, mas como esse era fechado… Cantei parabéns para ela. Ela chorou, porque onde pensava que Dona Onete ia cantar parabéns para ela? Eu quebro os protocolos! (risos).

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Extra: Escute os discos Feitiço cabloco (2012), Banzeiro (2017) e Rebujo (2019). 
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ERIKA MUNIZ, estudante de Jornalismo, formada em Letras.

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