Artigo

Villa-Lobos, Pernambuco e os pernambucanos

Nos 60 anos da morte do compositor, as relações que manteve em Pernambuco

TEXTO SÉRGIO BARZA

06 de Novembro de 2019

Lírico, vanguardista, sentimental, neobarroco, neoclássico, pós-romântico, ele era um compositor que utilizava uma linguagem harmônica avançada

Lírico, vanguardista, sentimental, neobarroco, neoclássico, pós-romântico, ele era um compositor que utilizava uma linguagem harmônica avançada

Ilustração Eduardo Azerêdo

[conteúdo na íntegra | ed. 227 | setembro de 2019]

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O mundo
social e cultural vive de lembranças e esquecimento. A celebração de efemérides é por vezes seguida pelo quase silêncio após o encerramento das comemorações. Tenho idade suficiente para lembrar, e ter participado, das programações no Recife pelos 100 anos de nascimento de Heitor Villa-Lobos, em 1987. Naquele ano, publicações, gravações, documentários e concertos homenageavam aquele que já era celebrado como o maior compositor brasileiro de todos os tempos, mas seu legado ainda era discutido por estudiosos e intérpretes.

Neste 2019, o Brasil recorda os 60 anos de sua morte, e mais uma vez se empenha em reavaliar seu papel na cultura brasileira. Para repensar o compositor e a obra, traremos momentos que ajudarão a mostrar facetas pouco lembradas ou exploradas pelos biógrafos. Falaremos especialmente das conexões de Villa-Lobos com Pernambuco, algumas de suas vindas, e seus laços de amizade com alguns pernambucanos ilustres.

Sessenta anos após sua morte, Heitor Villa-Lobos ainda é um enigma para os brasileiros. Autor de uma obra volumosa, muito pouco dela é tocada nas salas de concerto no Brasil e no mundo. Suas peças para piano e violão ainda são parte integrante dos programas das escolas de música no mundo inteiro, mas suas obras de câmera e orquestrais são hoje pouco executadas e seu trabalho de musicalização foi praticamente esquecido.

Em vida, Villa-Lobos foi seu maior intérprete, e contava com admiração de alguns dos maiores solistas de sua época, como Arthur Rubinstein, Andrés Segovia, Guiomar Novaes, Bidu Sayão, Leopold Stokowski e Magda Tagliaferro. Estranhamente, seu reconhecimento no exterior era inversamente proporcional à sua aceitação no Brasil.

A modernidade acelerada dos anos JK pareceu declarar que Villa-Lobos era a encarnação de um Brasil que não existia mais. Também fica a impressão de que, ao menos para uma elite intelectual e artística, ele se tornou um estorvo, especialmente com a crescente influência das escolas vanguardistas de composição brasileiras. O compositor Willy Corrêa de Oliveira, por exemplo, lembra que a nova vanguarda dos anos 1960, para se afirmar, precisaria “matar” Villa-Lobos, cometendo “parricídio ou regicídio”. Irônico é pensar que a verdadeira modernidade musical que se anunciava estava na música popular, a bossa nova, e que seu maior nome, Tom Jobim, tinha grande influência do maestro Villa-Lobos.

Músicos em geral, e boa parte do público, pensavam diferente. Podemos dizer que, desde o seu destaque na Semana de Arte Moderna de 1922, havia um Villa-Lobos para cada ouvinte. Lírico, vanguardista, sentimental, neobarroco, neoclássico, pós-romântico, ele era um compositor que utilizava uma linguagem harmônica avançada ao mesmo tempo em que dominava perfeitamente a forma e o discurso musical, tanto nas pequenas peças como nas grandes obras sinfônicas. Nesse sentido, podemos colocá-lo ao lado de nomes de contemporâneos como Jean Sibelius, Leoš Janáček, ou Zoltán Kodály.


Villa-Lobos com alunos e professores do Conservatório Pernambucano de Música, na antiga seda da Rua do Riachuelo, nos anos 1930. Foto: Acervo Conservatório Pernambucano de Música/Reprodução

A comparação com esses compositores, representantes do nacionalismo musical de seus países, não é fora de contexto. Os estudiosos e biógrafos de Villa-Lobos geralmente o apresentam apenas a partir de seu país e seu meio. Proponho que se pense Villa-Lobos a partir da perspectiva de Ortega y Gasset. Heitor Villa-Lobos era ele e sua circunstância. Sua personalidade é fruto de sua herança, de sua resiliência, de seu caráter, de sua época e, por que não dizer, de seu país. Um todo que ele processa e recria na música.

As circunstâncias incluem também as amizades e a fértil troca intelectual entre o compositor, seus contemporâneos e aqueles que os antecederam. Os estudos nos revelam de maneira acurada quase todos os músicos e obras que influenciaram Villa-Lobos, mas falham em ver a relação do compositor com pintores, escritores e pensadores de sua época. E foram muitos os amigos, que ele fazia com imensa facilidade, nas inúmeras turnês pelo Brasil e pelo exterior. Pernambuco tem lugar nessa história.

A primeira passagem de Villa-Lobos por Pernambuco teria sido numa das lendárias viagens nos seus anos de formação. Ele teria estado aqui em 1906, segundo suas próprias lembranças. As mais bem-documentadas passagens do compositor pelo Recife foram bem-sucedidos concertos no Teatro de Santa Isabel, em 1930 (dois concertos de música de câmera por convite da Sociedade de Cultura Musical), e em 1950 (para um concerto com a Orquestra Sinfônica do Recife).

Os concertos de 1930, realizados nos dias 6 e 10 de junho, apresentaram o violinista belga Maurice Raskin, o pianista Souza Lima, o próprio Villa-Lobos ao violoncelo, e sua então esposa Lucília, também pianista. O compositor voltava de Paris, e o repertório incluía apenas obras de música de câmera compostas nos anos 1910 e 1920.

No primeiro concerto foram tocadas a 1ª Sonata-Fantasia (Desesperança), O canto do cisne negro, Mariposa da luz, Berceuse, Capricho e Improviso Nº7, todas por Maurice Raskin (violino) e Lucília Villa-Lobos (piano); Souza Lima tocou a Fantasia Sul-América, Rodanthe, A lenda do caboclo e a suíte Saudades das selvas brasileiras. Villa-Lobos ao violoncelo, acompanhado pela esposa, tocou sua bela Pequena suíte, e os dois, mais Maurice Raskin, interpretaram o Trio nº 1, para Violino, Violoncelo e Piano, composto em 1911.

No segundo concerto, o duo Raskin-Lucília Villa-Lobos tocou a 2ª Sonata-Fantasia e a Elegia, da Fantasia de movimentos mistos. Souza Lima tocou as Cirandas 5,6, 8 e 10 e o Carnaval das crianças brasileiras. Maurice Raskin, Lucília e Heitor Villa-Lobos terminaram o concerto com o Trio nº 3, para Violino, Violoncelo e Piano.

Após o primeiro concerto, o violinista Vicente Fittipaldi escreveu uma crítica para o Diário da Manhã, celebrando Villa-Lobos como o primeiro compositor brasileiro. Lembremos que, até então, vários bons compositores haviam surgido no cenário brasileiro, mas eram bastante criticados por sua linguagem e estética basicamente europeia, como Carlos Gomes, Leopoldo Miguéz e Henrique Oswald, ou por terem uma brasilidade ainda tímida, como Alberto Nepomuceno, Brasílio Itiberê da Cunha, Alexandre Levy e Francisco Braga.

Fittipaldi ainda escreve: “Saí com uma pena enorme do teatro: não existir no Recife uma orquestra sinfônica pra executar um de seus Choros, que deixam a gente arrepiada só em ver a partitura (…)”. É oportuno lembrar que o Recife, pouco tempo depois, veria a criação de sua Orquestra Sinfônica, bem como do Conservatório Pernambucano de Música, e Vicente Fittipaldi teria papel importante nessa nova era da música pernambucana. Outro que participa ativamente desse momento é o pianista e compositor Ernani Braga, fundador e primeiro diretor do Conservatório, solista do primeiro concerto da Sinfônica, e amigo de Heitor Villa-Lobos. Ernani Braga é um dos músicos que interpretam Villa-Lobos na Semana de Arte Moderna de 1922.

Villa-Lobos se apresentaria de novo em 1950, na programação oficial do Centenário do Teatro de Santa Isabel, por iniciativa da Diretoria de Documentação e Cultura. Em 1950, já tínhamos a Orquestra Sinfônica do Recife (OSR). Um pouco antes da vinda de Villa-Lobos, Eleazar de Carvalho regeu a OSR num programa de compositores brasileiros. De Villa-Lobos, ele interpretou o poema sinfônico Madona.

No seu concerto, Villa-Lobos regeu as Bachianas brasileiras nº 2, a Suíte para quinteto de cordas, a Primeira suíte do Descobrimento do Brasil, a Primeira suíte saudade da juventude e a Quarta suíte de Magdalena, a partir da opereta do mesmo título. A orquestra, em ótima fase, foi considerada pelo compositor a quarta melhor do Brasil, depois da Osesp, da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e da Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro.

Esse Recife de intensa programação cultural era um exemplo de como havia um Brasil de pujante produção artística e intelectual, e de uma riquíssima troca de informações e respeito entre pensadores de grupos sociais e matizes ideológicas diversas. Havia um efervescente trânsito de ideias e pessoas, encontros memoráveis, saraus, colaborações, tanto na capital federal quanto em outros centros, como São Paulo, Recife, Salvador, Belém e Manaus.

Nesse mundo cultural, Villa-Lobos fez alguns de seus melhores amigos, como os pernambucanos Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Cícero Dias. Bandeira já estava no Rio de Janeiro no início do século XX. Músico amador e melômano, foi natural seu contato e amizade com Heitor Villa-Lobos. Logo se torna um importante colaborador: teve seus poemas O anjo da guarda (do livro Libertinagem, 1930), e Debussy (do livro Carnaval, 1919) musicados pelo compositor. Bandeira fez especialmente para ele as letras de Canções de cordialidade, Jurupari, Modinha (“Na solidão da minha vida”) e A dança do martelo, das Bachianas brasileiras nº 5.

Em Paris, Cicero Dias foi o amigo das conversas e passeios. O artista pernambucano, fugindo da ditadura do Estado Novo, radicou-se na capital francesa no final dos anos 1930, e lá residiu até sua morte, em 2003. Nas recordações de Cícero Dias, um Villa-Lobos com inúmeros projetos e imagens brasileiras do folclore, algumas delas encarnadas na cenografia que o pintor faz para a montagem carioca do balé Jurupari (1934), com música de Villa-Lobos e coreografia do russo Serge Lifar, que trabalhara com Diaghilev nos Ballets Russes. Já se conheciam, porém, no mínimo desde 1928, quando Villa-Lobos visitou a primeira exposição do artista, realizada no saguão da Policlínica, paralelamente ao I Congresso de Psicanálise da América Latina.

A amizade mais duradoura parece ter sido a de Gilberto Freyre. No livro Vida, forma e cor, Freyre fala de “(…) um Villa-Lobos (…) que foi também um de meus iniciadores na vida noturna do Rio de Janeiro, depois que me considerou um amigo, não apenas um camarada”. Ele nos deixa lembranças carinhosas de uma amizade real, e a menção do que teria sido uma parceria memorável, uma interpretação musical do Brasil com música de Villa-Lobos e textos do pernambucano.

Na obra De menino a homem, publicada postumamente em 2010, Freyre chamava a atenção entre a reverência do exterior pelo compositor e a certa relutância que seu próprio país demonstrava: “(…) Não poucos os que insistiam comigo para que o Brasil lhes mandasse um Villa-Lobos que desse concertos em África e Oriente marcados por presença portuguesa. Que se fizesse admirar pessoalmente por eles. Era como se fosse um ídolo que se desejasse ver de perto. Inútil meu esforço junto ao Itamaraty”.

O Villa-Lobos que surge desses relatos é expansivo e generoso, fato comprovado por dois nordestinos que foram estudar na Europa na década de 1950, o violinista Cussy de Almeida e o fagotista Mário Câncio. Ambos saíram do Recife para a França e tiveram ajuda de Villa-Lobos por lá. No caso de Mário Câncio, o compositor estava na banca do concurso que lhe deu a bolsa de estudos para a Europa. Ouvi ricas lembranças sobre Villa-Lobos do próprio Cussy de Almeida, bem como do professor Severino Revorêdo, ex-professor do Conservatório Pernambucano e trompetista da Orquestra Sinfônica do Recife naquele concerto de 1950, e da professora Arlinda Rocha, que conheceu Villa-Lobos num curso de formação de professores de música, no Rio de Janeiro.

As lembranças só reforçam o compositor e intérprete intenso e diferenciado que foi Heitor Villa-Lobos. Não se pode discutir que ele foi o maior responsável pela presença da música brasileira de concerto nas salas e teatros do mundo, e que abriu caminhos para compositores como Camargo Guarnieri e Marlos Nobre.

Villa-Lobos ajudou a construir a imagem de um Brasil de exuberância sonora e orgulhosa identidade, com riqueza de detalhes e referências, tudo isso num tempo em que um pouco de inteligência e refinamento não ofendia ninguém. Heitor Villa-Lobos dizia que suas obras eram cartas que escreveu para a posteridade. Ainda precisamos ler essas cartas, e ele ainda espera nossa resposta.

SÉRGIO BARZA, regente de orquestra, pesquisador e professor do Conservatório Pernambucano de Música.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.
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