Artigo

A cantiga é uma arma e agora nós sabemos

Canções de protesto de Brasil e Portugal foram fundamentais na luta pela liberdade, nos anos 1960 e 1970. Relações próximas entre os universos musicais também ajudaram nas suas construções

TEXTO Ivan Lima

04 de Dezembro de 2019

Ilustração Eduardo Azerêdo

[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]

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"A música é aquilo que unifica.” A frase do chinês Se-Ma Ts’sien talvez seja das poucas que consiga reunir a essência dos cantos e das cantigas que nos anos 1960 e 1970, ao redor do mundo, foram chamadas de música de protesto. Várias foram as denominações para essa canção que ousou enfrentar ditaduras, denunciar desigualdades e mazelas do mundo contemporâneo, criar concepções de mundos fraternos e indicar o caminho para a igualdade entre os povos. Na Catalunha, por exemplo, esse tipo de canto foi denominado “nova cançó”; em Porto Rico, era chamada de “canto progressista”; em Portugal, “canto de intervenção”; em Cuba,“nueva trova” e, no Brasil, como bem sabemos desde os livros de história do primário, canção de protesto. É de pensar que toda canção é política sob o ponto de vista da função que desempenha, mas o conceito de protesto se multiplicou em um contexto de lutas pela igualdade de direitos, ampliação da democracia e contra as restrições de liberdades individuais.

A canção política, diretamente ligada aos enfrentamentos sociais mais complexos dos anos 1960 e 1970, recebeu essa definição muito por influências conceituais e semelhanças de cenários políticos. Afinal, os fados do início do século XX português que denunciavam as desigualdades e cobravam mais do poder público não podem ser classificados como protestos? E os sambas do Estácio, de Assis Valente, de Noel e de Ataulfo não protestavam contra ações do governo e as atuações do capital? Afinal, como diria José Jorge Letría, o homem canta apenas o que a terra lhe dita. O cantor não elabora, traduz.

Evidentemente que os conceitos para os anos 1960 são muito específicos e estão diretamente ligados à década mais turbulenta sob aspectos políticos e frutífera (aspectos culturais) do século passado. As canções não reagiriam apenas às desigualdades sociais e regionais como elemento de crônica. Elas, principalmente após o Maio de 1968, trariam uma multiplicação temática e, principalmente, uma proposição de bem-estar coletivo, de luta pela liberdade diante das ditaduras, de independência diante das colonizações, de igualdade perante os racismos e violências de gênero. Como alerta Zuenir Ventura, 1968 nunca terminou. Talvez para a canção de protesto da América Latina, 1967 também nunca tenha acabado. Nesse ano foi realizado, em Cuba, o primeiro festival internacional Canción Protesta, que recebeu cantores e compositores de muitos países. Nomes como Carlos Puebla, Alfredo Zitarrosa, Carlos Molina, Isabel Parra, Daniel Viglietti, Irwin Silber, Luis Cília e Marcos Velasquez estiveram nesse importante evento. Apesar de nenhum brasileiro ter participado, o conceito de Canção de Protesto influenciou a consolidação do termo no Brasil, como alertam documentos do DCDP (Divisão de Censura e Diversões Públicas), que considera a canção de protesto como elemento subversivo.
 
Com a canção Tanto Mar, Chico Buarque fazia uma saudação ao povo português e sua luta contra o fascismo. Imagem: Reprodução

No Brasil, a canção de protesto esteve muito ligada aos festivais da canção (intitulados Festival de Música Popular Brasileira), exibidos pela TV Tupi, Excelsior, Rio e Record, e algumas práticas tropicalistas, justamente no momento de maior endurecimento da ditadura militar, com a implementação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. Geraldo Vandré, Chico Buarque, Carlos Lyra, Zé Keti e diversos outros compositores criaram obras de resistência, de alerta e de reflexão sobre o Brasil que entrara nos chamados “Anos de Chumbo”.

Os festivais da canção foram fundamentais para a difusão de canções das várias regiões brasileiras e para politização cada vez maior das letras. Obviamente que o Brasil enfrentou muitas dificuldades na elaboração das canções de contestação política, já que a censura foi uma das práticas empreendidas logo no início do regime militar, diferente, por exemplo, do caso português no qual a censura prévia foi implementada apenas dois anos antes do fim da ditadura. Portanto, os compositores que elaborassem textos diretos e críticos ao governo sabiam que, além de serem censurados, passariam a ser vigiados de perto, o que de fato aconteceu com Chico Buarque, Geraldo Vandré e Gilberto Gil.

Composta por Vandré, Pra não dizer que não falei das flores se tornou o canto de passeatas por liberdade, greves operárias e lutas trabalhadoras. “Quem sabe faz a hora não espera acontecer” foi verso que convocou os brasileiros a lutar, a fazer a hora em um ambiente de coerção, medo e repressão. Pouco tempo depois, a canção foi proibida e Geraldo Vandré foi para o exílio.


Geraldo Vandré compôs Pra não dizer que não falei das flores, que se tornou hino dos atos pela liberdade no Brasil. Imagem: Reprodução

Maior símbolo do canto de protesto brasileiro, inclusive fora do Brasil, Chico Buarque de Holanda percebeu cedo os caminhos para enfrentar a censura brasileira e construiu uma obra marcada por hermetismos líricos, pela crítica política e pela diversidade temática. A diversidade na produção de Chico também chamou a atenção da população brasileira à luta do povo português, que, naquela altura, estava a experimentar a democracia após mais de 40 anos sob a sombra do fascismo de Salazar e Marcelo Caetano.

Em 1975, Tanto mar saudava o povo português em seus versos e celebrava a primavera portuguesa que, em 1974, ao som de Grândola, vila morena, com os soldados armados e com cravos presos a suas armas consolidava sua Revolução dos Cravos.

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

  
 Grândola, vila morena, de Zeca Afonso, foi o
 conto da Revolução dos Cravos. 
Imagem: Reprodução

 
José Mário Branco, autor de A cantiga é uma arma,
viaja pelo interior de Portugal com espetáculos voltados
à consciência política. Faleceu em novembro.
Foto: Rita Carmo/Divulgação

O jardim da revolução portuguesa comemorada por Chico Buarque demorou a florir e também foi regado pelas canções de protesto e por reações contra o governo. Chamada de canto de intervenção, a música de protesto em Portugal teve um papel fundamental na organização de grupos políticos, na conscientização popular e no dispositivo revolucionário. A revolução começou pouco depois da meia-noite do dia 25 de abril, quando, na programação da Rádio Renascença, foi executada a canção Grândola, vila morena, do compositor Zeca Afonso. A composição foi o dispositivo para os capitães saírem dos quartéis e deflagrarem a revolução. Das inúmeras canções de Zeca Afonso (muitos portugueses o classificam como o Chico Buarque de Portugal), essa marcha que leva o nome de uma pequena vila do Alentejo foi escolhida um mês antes, pelos próprios militares, após um concerto que reuniu diversos cantores de intervenção portugueses. A escolha se deu pelo estrondo popular que a canção despertou na apresentação no Coliseu de Lisboa e pelos versos que emanava:

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó Cidade
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto a igualdade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó Cidade

Várias foram as ligações entre o canto de protesto português e brasileiro. Gilberto Gil, Caetano Veloso e Zeca Afonso, por exemplo, estiveram juntos quando exilados em Londres. O próprio Zeca esteve no Brasil, em 1972, quando interpretou, no Festival Internacional da Canção, sua composição A morte saiu à rua, escrita para o padre Alípio Freitas, português que foi preso por resistência à ditadura militar brasileira e ficou quase 10 anos na cadeia.

Um dos mais populares cantores portugueses e ex-membro do lendário Quarteto 1111, José Cid gravou Volkswagem blues no seu primeiro disco solo, composição do baiano Gilberto Gil e Sérgio Godinho, um dos principais nomes da música portuguesa que foi preso no Brasil, em 1971.

O canto de intervenção Português, apesar de pouco conhecido no Brasil, é símbolo de resistência e celebração em Portugal. A importância de nomes como Manuel Freire (Pedra filosofal), Luís Cília, José Jorge Letría, Sérgio Godinho e José Mário Branco são equivalentes em terras lusas a Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivan Lins, Secos e Molhados e Chico Buarque, por exemplo, no Brasil.

Um dos aspectos que diferencia os movimentos musicais, além do êxito da Revolução Portuguesa, é a incursão ao interior do país feita pelos cantores portugueses. Mesmo após a revolução, os compositores se engajaram em viajar o país em uma série de debates, concertos em associações e ações inclusive teatrais para levar aos interiores a necessidade da conscientização política. É a partir daí que surgem vários coletivos, como o GAC – Vozes da Luta, que, tendo como seu principal representante o compositor José Mário Branco, gravou a canção A cantiga é uma arma:

A cantiga é uma arma
e eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria


Manifestações de repúdio culminaram na Revolução dos Cravos (abril de 1974), movimento que derrubou o regime salazarista. Imagem: Klaus Rose/DPA/DPA- Picture Alliance

Há também um episódio que atesta a atenção do governo brasileiro às dinâmicas políticas em Portugal. Em 9 de novembro de 1974, o ofício 165/74 – DOPS/CCP alertava sobre o perigo da canção Grândola, vila morena, gravada por Nara Leão, ser executada nas rádios e distribuída pelo país. O documento reconhece que a composição do português Zeca Afonso “foi a senha para o desencadeamento da Revolução em Portugal, e hoje, representa naquele país como que um símbolo nacional”.

CANTO DE RESISTÊNCIA
Para Gilberto Gil, as canções de protesto “demonstravam uma preocupação com a questão social, com os vários problemas ligados a condições de vida, sobrevivência, sustento, participação, compartilhamento entre indivíduos de comunidades e etc”. Importante intérprete do canto de intervenção português, Manuel Freire corrobora com as palavras de Gil e complementa: “era a música que fazia com que as pessoas intervissem no mundo que as rodeava de uma forma social mais ativa e que faz as pessoas pensarem um bocado”.

A forma de protestar nas canções nunca deixou de existir e muito menos deixou de ser uma arma. Entretanto, o acirramento das desigualdades, as hostilidades políticas, as perseguições a grupos sociais, o ressurgimento da censura e as restrições criadas pelo governo fazem com que os compositores e ouvintes se reapropriem deste conceito ou, pelo menos, de sua essência, para tornar a canção novamente esse instrumento político tão eficaz.

Em Portugal, por exemplo, no ano de 2011, quando o país estava no auge de uma severa crise econômica, a banda Deolinda compôs a canção Que parva que sou, apresentando-a, em seguida, ao vivo. Logo se tornou um imenso sucesso:

Sou da geração sem remuneração.
E não me incomoda esta condição.
Que parva que eu sou.
Porque isto está mal e vai continuar,
Já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou.
E fico a pensar:
Que mundo tão parvo,
Onde para ser escravo
É preciso estudar.
Sou da geração “casinha dos pais”.
Se já tenho tudo, p’ra quê querer mais?
Que parva que eu sou

A crítica reside nos modelos de socialização e de exploração da sociedade portuguesa naquele momento. A partir dessa canção, novamente, grupos portugueses com esse teor de composição começam a ser mais notabilizados e consumidos.

O caso do Brasil não é diferente, entretanto há um elemento a mais, e muito perigoso: a restrição das liberdades individuais, o aumento da intolerância e das explicitações dos preconceitos sociais e regionais. Mais uma vez, no país, começa-se a falar em canção de resistência, em canto de protesto e a cantiga volta a ser uma arma a favor da democracia.

Apesar de outros tempos, a necessidade de resistência é urgente e, como afirmava o poeta Camões “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. São tempos de resgate do Racionais MC’s, da enérgica fala de Chico César, das novas lutas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, após 40 anos.

A nossa geração de compositores do Brasil se inspira em quem defendeu a liberdade de criar, usando também a cantiga como arma. De norte a sul do país surge uma geração disposta a protestar e enfrentar através do canto. Dani Black (Trono do estudar), Bia Ferreira (Cota não é esmola), Emicida (Chapa, mãe), Bayana System (Lucro – descomprimindo), Flaira Ferro (Suporto perder) e tantos outros compositores se unem a uma frente ampla composta por atores, escritores e artistas plásticos para resistir. Quem sabe dessa vez a canção no Brasil não nos leva a um caminho mais seguro para a democracia? Mas, dessa vez, a cantiga é uma arma, e nós sabemos.

IVAN LIMA é pesquisador do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura Espaço e Memória (CITCEM) e doutorando em História na Universidade do Porto (Portugal). Licenciado e mestre em História, estuda a música brasileira há mais de uma década. Atualmente pesquisa sobre o canto de intervenção em Portugal e a relação com a música de protesto no Brasil.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.
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