Portfólio

Robert Irwin

Luz, espaço, percepção

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO, DE BRUMADINHO*

04 de Dezembro de 2019

Vista interna da nova obra permanente do Inhotim (MG) feita pelo artista. Sem título, tem 6,3 metros de altura por 14,6 metros de diâmetro

Vista interna da nova obra permanente do Inhotim (MG) feita pelo artista. Sem título, tem 6,3 metros de altura por 14,6 metros de diâmetro

Foto William Gomes/Inhotim/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

O sol desceu sobre o chão mais elevado do Inhotim, em Minas Gerais; espalhou-se em oito raios, fez abrir paredes e criou frestas por onde a luz pode entrar – e nós também. Não fosse ele (e as vigas de aço que a sustentam), talvez aquela construção octogonal tivesse agora suas paredes unidas pelas oito pontas do teto, por onde a energia solar atravessa e tudo transforma, a depender das oscilações lá de cima. Se não chove, então podemos presenciar um espetáculo quase espiritual: os triângulos de vidro do topo projetam-se sobre as paredes inclinadas de concreto, pintando-as de amarelo – graças ao efeito da luz natural sobre os “vitrais” mesclados com a mesma cor. Em alguns momentos, como ao meio-dia, os raios preenchem toda a parede, em “um tipo de experiência pictórica criada inteiramente pela natureza”. As aspas são do atual curador-chefe do Inhotim, Allan Schwartzman, mas a obra em questão é de outro estado-unidense: Robert Irwin, um desses grandes artistas veteranos em atividade.

Da geração dos norte-americanos dos anos 1960-1970 que ajudaram a dar um giro na história da arte ocidental, borrando fronteiras estéticas e conceituais, Irwin se mantém ativo no alto dos seus 91 anos. Desde a abertura do Inhotim, em 2006, ele alimenta o sonho de ter um de seus trabalhos instalado neste que é considerado o maior parque expositivo de arte contemporânea do mundo. O desejo se tornou realidade no mês passado e, hoje, o visitante que chegar ao ponto mais alto dos 140 hectares circuláveis do instituto vai se deparar com a construção ao ar livre da mandala escultórica de 6,3 metros de altura por 14,6 metros de diâmetro. Eis a nova obra permanente do parque e uma das crias mais recentes de seu autor.


Vista externa da obra de Irwin no Inhotim. Atenção ao efeito do sol a pino.
Foto: Leo Lara/Inhotim/Divulgação

No trabalho, os limites entre artista e natureza se fundem, o que torna este um dos exemplares mais interessantes da coleção do Inhotim. Além disso, o site-specific (instalação pensada para o lugar) sintetiza vários dos elementos artísticos da trajetória de Robert Irwin, não obstante único em relação ao seu conjunto. Em um gesto de maturidade, o artista estabelece um diálogo inventivo e dinâmico com a paisagem do Inhotim, incluindo criações como o “Som da Terra” (Sonic pavilion), de Doug Aitken, ou as vigas (Beam drop), de Chris Burden – este que, por sinal, já foi aluno do artista. Ao mesmo tempo, Irwin celebra e aprofunda toda a poética que vem desenvolvendo desde que resolveu explorar as múltiplas possibilidades do espaço, em suas dimensões tangíveis e etéreas, ao elaborar uma conexão simples e sofisticada entre céu e terra, criando uma espécie de dispositivo feito para “reter” a energia do sol.

Em outros ambientes como este e mesmo em objetos, Robert Irwin vem expandido o campo de observação do espectador por meio da relação entre luz e espaço, nome, aliás, do movimento artístico do qual é um dos pioneiros e expoentes – o Light and Space. Para alguns críticos e historiadores da arte, o agrupamento de artistas como ele, James Turrell, John McCracken e Larry Bell aconteceu como um aceno, desde a Califórnia dos anos 1960-1970, ao Minimalismo. Nesse caso, a resposta artística teve mais a ver com a vivência na costa oeste dos Estados Unidos, e sua luz particular, e menos com o ambiente urbano, industrial e de consumo de Nova York, centro de minimalistas como Donald Judd e Dan Flavin. Existem, portanto, pontos de encontro e distanciamento entre os dois movimentos.

Criado nas praias californianas em cima de uma prancha de surfe, Irwin começou pintando quadros abstratos expressionistas e, como os colegas da “arte mínima”, resolveu se libertar das amarras bidimensionais rumo ao desconhecido. “Ele começou a fazer arte com foco no processo ordinário de percepção. Não pegar algo específico, como a representação, mas criar uma experiência. Inicialmente, em forma de objetos (discos) em que as bordas eram borradas e a percepção se expandia, invadindo o espaço a partir da luz. Depois, no fim dos 1960, a partir de trabalhos imersos no ambiente”, historiciza o curador Allan Schwartzman.


Untitled (dawn to dusk), 2016, exterior da instalação. Coleção permanente da Fundação Chinati, Texas, EUA. Foto: Philipp Scholz Rittermann/Cortesia da Fundação Chinati

A guinada de Irwin à arte contemporânea se deu logo após sua exposição individual de 1957, sobre a qual ele conta no vídeo A few things about Robert Irwin, do Lacma (Los Angeles County Museum of Art): “Percebi que tudo que eu estava realizando era uma porcaria. Foi um momento alarmante, porque as portas se abriram, todos os meus amigos entraram e ‘Oh, que legal!’, mas, ao mesmo tempo, eu já sabia que nada daquilo valia”. Ao rejeitar o cubo branco e o emolduramento da arte, viajou por um tempo pelo deserto e, a partir daí, se entregou ao vazio espacial. Alguns de seus primeiros site-specifics ou site-conditioned, como costuma nomear, chegaram a levar centenas de pessoas para ver salas vazias de museus com interferências sutis de luz e espaço elaboradas por ele.

Curioso é que, enquanto Irwin se dera conta do sentido esvaziado de suas telas, o próprio Minimalismo passava a ser tachado, por alguns críticos, como “vazio” ou “literal”, em alusão ao seu caráter formalista, quase sempre ensimesmado na geometria e nas cores chapadas de objetos sem metáfora. Mas era outra lógica artística que se anunciava, sob os ecos de Marcel Duchamp. “O caráter abstrato, não-composto, não-referencial do Minimalismo oferecia uma considerável resistência aos métodos regulares de apreciação da arte”, escreve o crítico inglês Michael Archer, em seu livro Arte contemporânea: uma história concisa (ed. Martins Fontes, 2012). Robert Irwin não ficou de fora disso, mas vale lembrar: se ele tivera um flerte com os aspectos minimais da arte, seu voo solo viria a ultrapassar qualquer filiação.

Vemos em Irwin obras untitled, como é de praxe no movimento minimalista – o próprio trabalho do artista no Inhotim é assim, sem título. Vemos em Irwin também um diálogo com a arquitetura e obras de pintores do abstracionismo geométrico – caso de Barnett Newman, cuja série pictórica Quem tem medo do vermelho, amarelo e azul foi recriada por ele em versão tridimensional. Vemos ainda uma relação direta com criações de Dan Flavin, que refazia espacialidades a partir de tubos de luzes coloridas fluorescentes – impossível dissociar peças de Irwin, como All that jazz (2011), Faust (2015) e Mint condition (2015), pertencentes a coleções de galerias como a Pace ou a Sprüth Magers, dos experimentos iniciais de Flavin com a mesma luz, nos anos 1960. Mesmo assim, cada um, à sua maneira, traçou o próprio percurso.


Faust (Robert Irwin, 2015), luz + sombra + reflexo + cor, 182,9 × 440,1 × 10,8 cm. Visão da instalação na galeria Sprüth Magers, Los Angeles, 2018. Foto: Robert Wedemeyer/Cortesia do artista e galeria Sprüth Magers

O uso da luz como dispositivo de percepção – que, na verdade, também é o uso da sombra e das cores – atraiu Irwin desde a pintura e foi adquirindo um sentido cada vez mais amplo e diáfano em suas obras tridimensionais. A luz natural ganhou relevo e encontrou formas, o que podemos ver com mais clareza em instalações imersivas de larga escala, como Excursus: homage to the square³ no Dia:Beacon, em Nova York (2015), e nas obras monumentais do Inhotim e da Fundação Chinati (Untitled dawn to dusk, 2016) – espaço importante de arte contemporânea criado pelo artista Donald Judd em Marfa, no Texas. Seja qual forma apresente, o princípio parece um só: ativar nossa percepção visual, espacial e sensorial, a partir do nosso repertório de lembranças e vivências estéticas. Isso não é pouco.

“Irwin produziu um variado e considerável corpo de trabalho. Suas pinturas e discos dos anos 1960 expandiram a pintura enfatizando o ato de ver. E este ato de ver é direcionado a diferenças mínimas em cor, texturas, mudanças na luz do objeto, entre outras. Isso desafia as capacidades e os interesses de quem vê, seja vendo uma pintura vermelha com duas linhas vermelhas, instalações teladas que captam as mudanças da luz do dia, ou o céu sobre nós que nos lembra dessas mudanças e impactos relevantes em nossas vidas. Irwin apresenta as ferramentas para tamanhas descobertas na forma de pinturas e objetos enquanto o trabalho real tem que ser feito pelo espectador”, analisa Marianne Stockebrand, editora do Catálogo Raisonné do artista. Segundo disse à Continente, a publicação digital será, quando finalizada, o registro mais abrangente da trajetória do californiano desde o início até o presente, com lista e comentários de centenas de obras, como pinturas, objetos, instalações, projetos e “propostas formais”.


Público observa instalação em discos do artista na exposição da National Gallery, 2018, Singapura. Foto: Roslan Rahman/AFP


Visitantes do Inhotim interagem com a instalação temporária Black³, em 2018.
Foto: William Gomes/Inhotim/Divulgação

Entre eles, vale lembrar, está um projeto único para os jardins do museu The Getty Center, em Los Angeles, pensado para oferecer paisagens efêmeras de imersão onde a experiência varia conforme a mudança da paisagem. Como podemos ver, a relação com o meio ambiente é bastante cara a ele. Voltando ao Inhotim, nos damos conta disso outra vez: seu objeto tridimensional se comporta como um dispositivo arquitetônico e fotográfico – ora assumindo a forma de uma catedral que “se abre”, ora de uma flor que “desabrocha”, ou mesmo de um diafragma, se assim quisermos imaginar. Tudo isso favorece inúmeras descobertas e sensações a cada visita. De fora, a fruição é uma; de dentro, ela se amplia, nos revelando janelas para o cinturão verde do instituto que é um oásis em meio à devastação mineradora da cidade de Brumadinho, que este ano sofreu uma das maiores tragédias ambientais do país, com o rompimento da barragem da Vale.

E assim Robert Irwin nos diz, no vídeo do Lacma: “O papel do artista é lidar com o mundo. Nós estamos aos poucos destruindo este planeta. Se nós realmente o amássemos e fizessémos dele parte importante de nossas vidas, não estaríamos fazendo o que estamos fazendo. Mas, primeiramente, é uma apreciação e uma arte lançada”.


Sem título (2017-2018). Visão da instalação na galeria Sprüth Magers, Los Angeles, 2018. Foto: Robert Wedemeyer/Cortesia do artista e galeria Sprüth Magers


Vista dos jardins projetados por Robert Irwin para o Getty Center, museu de Los Angeles, EUA. Foto: Philippe Renault/hemis.fr/AFP

-----------------------------------------------------------------------------
Extra:
Leia nossa matéria O lado verde de Brumadinho
-----------------------------------------------------------------------------

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural, mestre em Sociologia e editora da Continente Online.

*A jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim.

Publicidade

veja também

O lado verde de Brumadinho

Fora das roupas, dentro das almas

Matos, pragas e ervas daninhas