Perfil

Tiganá Santana

Pesquisador e músico baiano, com formação em Filosofia, tem aproximado sua obra da música e do pensamento produzidos na África

TEXTO Jocê Rodrigues

02 de Janeiro de 2020

O artista e acadêmico Tiganá Santana

O artista e acadêmico Tiganá Santana

Foto José de Holanda/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 229 | janeiro de 2020]

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Tiganá Santana
tem voz grave, conversa macia e gestos comedidos. Gentil, fala pausadamente e desenvolve a linha do pensamento como o escultor que lapida o mármore. Sem pressa, faz da linguagem o cinzel com o qual liberta, dá movimento concreto a figuras e conceitos abstratos. Dirige o diálogo com cuidado. Parece se preocupar em não atropelar frases, tempos e verbos na via expressa da conversação. Usa o tempo a seu favor e escolhe bem cada palavra, o que confere sempre um tom de profundidade ao que diz — mesmo que seja sobre algo banal.

Nascido em Salvador em 1982, foi criado para ser diplomata de primeira linha. Estudou de modo intenso e se dedicou por inteiro a trilhar o caminho apontado pela mãe Arany, uma das fundadoras do movimento negro na Bahia. Mas o destino tem seus caprichos e, depois desse empenho, percebeu que seu coração estava em outra direção. Não era de conflitos diplomáticos que queria cuidar, mas dos existenciais, desses que participam da geopolítica da alma. No fim, encontrou na música aquela que seria realmente sua estrada. Ou pelo menos, uma delas.

Tiganá fala diversos idiomas. Prefere chamar de línguas-pensamento. Inglês, francês, quicongo, espanhol e quimbundo são algumas delas, além de tatear no árabe e iorubá. Foi o primeiro compositor no Brasil a apresentar canções em línguas africanas. Acontecimento que não foi proposital, mas do qual muito se orgulha. Desde cedo traz em si o desejo de conhecer a verdade do mundo, ou de chegar o mais próximo disso. Por isso, foi fazer Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Por conta do espírito questionador, logo se viu incomodado, quando se deparou com algumas verdades bastante convencionais no ambiente acadêmico. Lá, além de aprender sobre Aristóteles, Platão e os pré-socráticos, aprendeu por conta própria que era necessário questionar o cânone.

“Nas faculdades de Filosofia, de um modo geral, há uma normatividade, principalmente eurocentrada dos estudos filosóficos. Inclusive, é vigente a ideia de que a filosofia é necessariamente um exercício de exclusividade ocidental-europeia, com origem grega”, explicou em entrevista à Continente, que se deu entre tilintares, pedidos e alaridos num famoso café da mais que famosa Avenida Paulista. “Eu prefiro, sinceramente, deslocar a ideia de filosofia para outras pertenças”, continua. “Por que falamos, por exemplo, de uma matemática que é presente entre os maias; por que falamos de religiosidade, espiritualidade ou religião de lugares diferentes do continente africano, dos ameríndios, dos asiáticos; mas, na filosofia, especificamente, a gente apenas se concentra num determinado lugar?” Uma pergunta que desconcerta e que muita gente prefere ignorar, dentro e fora da academia. Tiganá é assim, prefere abrir picada por entre a densa mata do consenso.

Mesmo que o sonho da mãe de vê-lo diplomata no Itamaraty não tenha vingado, Tiganá Santana ganhou o mundo ao seu modo — com letra, música e melodia. Aos 16 anos de idade, já se arriscava nas primeiras composições e acabou pegando gosto pela coisa. Conquistou espaço e público logo nos primeiros passos, com os álbuns Maçalê (2010) e The invention of color (2012), com letras em francês, inglês, quicongo e quimbundo. Em 2013, foi escolhido para uma residência artística no Senegal, promovida pela Unesco, e de lá voltou com o excelente disco duplo Tempo e magma, gravado com músicos senegaleses, arranjado com instrumentos tradicionais da música africana.

Sua música se caracteriza pela sutileza, pelo casamento harmonioso entre arranjo e voz. Quase sempre conduzidas pelo pulso da música africana, algumas canções de Tiganá abusam do silêncio e das cadências lentas, enquanto outras exibem ginga em ritmos compassados e bem- construídos. A parte percussiva fica, curiosamente, a cargo do violão, que se destaca não apenas pela forma que é tocado, mas também pelo timbre e pela textura que possui. Batizado de violão-tambor, o instrumento foi modificado pelo próprio músico para que pudesse soar mais grave, mais cheio e para que se misturasse melhor com o tipo de frequência emitida por sua voz. Essa sonoridade aparece mais forte em músicas como The invention of color, Bwanana, Encarnações em Kodya e, especialmente em Mon’ami – uma dolorosa e bonita elegia sobre uma mãe que pranteia a morte do filho à beira do mar.

Como letrista, Tiganá não se conforma com o lugar-comum. Não aproveita ganchos, não recicla discursos e não segue modas. Sem se deixar levar pelo puro intelectualismo, busca inspiração naquilo que o cerca em seu cotidiano (suas leituras, suas experiências e seus questionamentos) e consegue a proeza de unir espiritualidade, razão e coração.

Cosmopolita, com frequência recebe convites para viajar para dentro e fora do país. Na ocasião do nosso encontro, por exemplo, estava com viagem marcada para uma pequena turnê em Paris, para apresentar o repertório do disco novo, Vida-código, que traz uma proposta diferente dos trabalhos anteriores. A começar pela formação, que inclui instrumentos como guitarra e piano elétrico. Seus discos têm sido lançados pelo selo sueco Ajabu!. De um outro selo alemão, recebeu o convite para revisitar o clássico disco O milagre dos peixes, de Milton Nascimento. Enquanto isso, no Brasil, Tiganá ainda é tesouro a ser descoberto.

JOGANDO SEMENTES
Na vida, Tiganá Santana foi cultivando amizades. É sempre descrito pelos amigos como alguém culto, elegante e generoso. É querido e respeitado como pensador, como artista que pensa pouco na rima e mais nos rumos. Na caminhada do existir, vai jogando sementes. Assim vão brotando os amigos, que não hesitam em exaltar seu talento, personalidade e cuidado para com o próximo.

Por conta dele, a cantora Virgínia Rodrigues desistiu de desistir. “Tiganá é uma pessoa muito especial como ser humano, não só na minha vida mas também na vida de muitas pessoas”, diz com voz encorpada e tom firme a mulher de personalidade forte. “É uma pessoa de uma nobreza e de uma grandeza que eu sinceramente nunca vi em ninguém. Tiganá é a pessoa responsável por eu continuar a cantar.”


Tiganá em show. Foto: José de Holanda/Divulgação

Quando o conheceu, Virgínia já tinha tomado a dolorosa decisão de não fazer mais música. E ninguém sabia disso, nem o próprio Tiganá. Só ela e Deus. Com a proximidade entre os dois, veio também o desejo de trabalharem juntos e o músico foi logo tratando de dar o incentivo que faltava. Desse jeito nasceu Mama Kalunga, disco de renascimento dela em que Tiganá assina a direção artística e a composição de algumas músicas. “Como artista, ele é de uma sensibilidade e de uma grandiosidade ímpar”, continua Virgínia, em tom terno. “As coisas que ele escreve me emocionam demais. Tem uma voz belíssima. Além de seu grande talento, da sua grande nobreza como artista e como ser humano. Para mim, Tiganá é um gênio. Da geração dele, não conheço ninguém melhor e muito menos que tenha me emocionado o quanto ele me emociona.”

São Paulo é uma cidade voraz, capaz de dragar qualquer coisa ou pessoa num curto espaço de tempo. Imagina o que ela é capaz de fazer com um músico negro, nordestino e recém-chegado. Por sorte, Tiganá é hábil em atrair boas companhias e tem contado com a ventura dos encontros benfazejos antes mesmo de se mudar para a cidade, em 2010.

Entre as andanças que fez pelos redutos artísticos da capital paulista, topou numa festa com a cantora e compositora Alzira E. “Eu nunca tinha ouvido falar nele, e nem ele em mim. Ele sabia, talvez, alguma coisa da minha família, mas aí a gente se bateu assim e ficamos muito amigos”, puxa de memória a artista integrante da família Espíndola. “Quando conheci o Tiganá, falei para as pessoas que a única pessoa por quem senti uma coisa parecida foi quando ouvi o Milton Nascimento pela primeira vez. E isso foi lá por 1972”. A admiração cresceu e a amizade também. Hoje, os dois são parceiros em pelo menos 16 canções.

PENSADOR CONGOLÊS
A contribuição de Tiganá Santana para o mundo é mais que artística. Ela é também intelectual e social. Para além da qualidade musical impecável, sua energia se movimenta por zonas que ultrapassam o cantar. Seus interesses se ligam também à força do falar, do dizer, do enunciar e do interpretar.

Tiganá teve o primeiro encontro literário com o pensador congolês Bunseki Fu-Kiau, morto em 2013, através do livro A cosmologia africana dos bantu-kongo, um acontecimento formador e transformador. Escrito originalmente em inglês, o texto foi publicado pela primeira vez em 1980, quando ele já se encontrava radicado nos Estados Unidos.

Antes disso, já tinha ouvido falar dele por meio de Makota Valdina, a mais representativa intermediária entre Fu-Kiau e o Brasil. Foi ela a responsável por construir a ponte que o ligou à Bahia. Ao organizar um ciclo de palestras com ele em 1997, em Salvador, chamou a atenção para a riqueza das palavras e para o forte intercâmbio cultural entre Brasil e o continente africano que elas possibilitam.

Tiganá e Valdina se conheceram quando ele ainda era criança. Com a convivência, acostumou-se a chamá-la de tia. Foi a convite dela que começou a frequentar o terreiro Tanuri Junsara, onde ia assistir às celebrações para a força-energia-nkisi que, na tradição religiosa bantu no Brasil, é chamada de Ndembwa, Dembwa, Tempo ou Kitembu. Tema ao qual rende homenagem na música Dembwa – 10 de agosto, do álbum Maçalê.

A primeira impressão que Tiganá Santana teve ao ler Fu-Kiau foi a de que aquele conhecimento precisava urgentemente ser alardeado e compartilhado. Era preciso fazer com que aquela voz alcançasse mais pessoas no Brasil. O problema é que não havia nenhuma tradução disponível no mercado. Por iniciativa própria, decidiu assumir a tarefa de traduzir o livro. Disciplinadamente e sem nenhuma pretensão, passou a dedicar seis horas do seu dia a esse desafio.

Em 2013, durante um jantar com o amigo Álvaro Silveira Faleiros, Tiganá viu seu plano ganhar maiores proporções. Álvaro é professor do Programa de Estudos da Tradução, do Departamento de Letras Modernas na USP. A princípio, Tiganá não pretendia contar que estava traduzindo o livro. Mas, para a sua sorte, mudou de ideia e, ao final do jantar, contou ao amigo sobre a empreitada e lhe explicou quem era o tal de Fu-Kiau e qual era o conteúdo do livro que estava traduzindo com tanto afinco. Quando compreendeu a profundidade do que estava em jogo, Álvaro sugeriu que ele se inscrevesse para a prova do mestrado na USP. Caso o rapaz fosse aceito, Faleiros seria o seu orientador. O projeto foi aprovado e logo no exame de qualificação foi mandado diretamente para o doutorado.

O intuito da tese era mostrar como as palavras podem trazer em si mesmas um mundo conceitual completo, que inclui outros modos de pensar, de entender e de habitar o universo que nos cerca. Através da palavra, aprendemos a ler o mundo. “Aprender é um processo acumulativo de codificar e decodificar culturas, portanto, é necessário estudar a língua que expressa essas culturas”, escreveu o filósofo.

Para Fu-Kiau, o idioma é “o instrumento mais importante do ser humano para a comunicação cultural e aprendizado social de padrões e comportamento”. Para ilustrar a sua ideia, no livro traduzido por Tiganá, ele escolheu e analisou diversas sentenças em linguagem proverbial e as usa como chaves para adentrar o denso, vasto e complexo pensar africano (chamado por Tiganá de “pensamento-cultura”). Através de imagens e de representações gráficas sobre o universo, Bunseki expõe o funcionamento da cosmologia banto e explica como a mesma é indissociável da vida em sociedade. “Nada na vida diária da sociedade Kongo está fora de suas práticas cosmológicas.” Assim acontece com o casamento, o divórcio, por exemplo, que simbolizam determinados padrões.

Durante sua vida, Bunseki também foi severo crítico da maneira como alguns costumes dos bantu-kongo foram transmitidos ao Ocidente por viajantes europeus despreparados, que não entendiam nada das sutilezas da língua. Alguns desses conceitos transmitidos aos ocidentais foram os de “lei” e “crime”, uma má interpretação que gerou consequências até mesmo para os próprios povos africanos. “Um dos problemas africanos mais cruciais, o que leva à anarquia dentro de muitos governos africanos contemporâneos e, portanto, não pode ser negligenciado, é a total ignorância do povo africano, no que tange ao seu próprio conceito de lei e crime”, escreveu Fu-Kiau.

Diferentemente da engessada linguagem jurídica ocidental, na cultura Kongo não se diz “cometer um crime”, mas, sim, “carregar um crime” (nata n’kanu). Em quicongo, não “sente-se uma dor”, mas “vê-se uma dor” (mona mpasi) e, enquanto um ocidental “fuma um cigarro”, o Mukongo vai “beber um cigarro” (nwa saka/nsûnga). Tais diferenças podem parecer banais, à primeira vista, mas fazem toda a diferença. Nas palavras de Fu-Kiau, esses jogos de palavras são a chave para o entendimento científico ou intelectual. Quando eles não são levados em conta, torna-se impossível conhecer outra cultura, outro modo de pensar.


Foto: José de Holanda/Divulgação

Traduzir Bunseki Fu-Kiau é uma iniciativa inédita no Brasil. Uma atitude que puxa o fio para uma importante discussão sobre tradução negra e sobre como a história é contada. “Entrar nessa chave de pensamento é entrar num outro universo, que também tem ligação conosco, com o que se chama, grosso modo, de cultura brasileira”, pontua Tiganá.

O livro traduzido na tese deve ganhar edição em breve e Tiganá planeja traduzir ainda outras obras de Fu-Kiau. Antes do falecimento de Makota Valdina, que aconteceu no dia da defesa da tese, Tiganá havia conseguido com ela mais de 400 páginas de manuscritos inéditos do filósofo. Textos que dão ancoragem a sua obra posterior. Além de Bunseki Fu-Kiau, Tiganá pretende verter para o português outros autores com os quais ele dialoga, como o também congolês Zamenga Batukezanga.

Tiganá Santana é um especialista em perceber as coisas do mundo. Seu interesse não é só pela simples palavra, mas por seus variados sistemas de significados. Nele, cantar e traduzir integram o mesmo exercício ontológico. Afinal, são ferramentas com as quais se pode conhecer e interpretar os mundos interior e exterior. Na própria perspectiva bantu-kongo, o ser humano é visto como um sistema de sistemas (mûntu i kimpa kia pimba), possível apenas pelo conjunto de relações sociais concretas que ele constrói. No fim, não existe diferença entre cantar, pensar e traduzir, pois todas são formas de desvelar mundos.

JOCÊ RODRIGUES, escritor e jornalista. Colabora com publicações culturais de várias partes do Brasil.

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