Curtas

Penitentes

Manifestação religiosa brasileira ressurge no livro 'Penitentes – Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo', estudo do fotógrafo paraense Guy Veloso

TEXTO Adriana Dória Matos

04 de Março de 2020

Penitentes de Pilão Arcado, BA, 2005

Penitentes de Pilão Arcado, BA, 2005

Foto GUY VELOSO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 231 fevereiro de 2020]

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“Adorei as almas!”
(saudação popular aos pretos velhos)

Era o começo do século XXI, exatamente 2002, quando o fotógrafo paraense Guy Veloso deu início ao trabalho de documentação de práticas religiosas que, a esta altura da História, pareciam ter desaparecido com o ingresso no futuro, o novo milênio. Nessas quase duas décadas, fomos conhecendo alguns dos resultados dessa pesquisa visual, de caráter antropológico, que tem como objeto de interesse as ordens de penitentes espalhadas pelo Brasil.

Expostas pela primeira vez em 2010, na 29ª Bienal de São Paulo, algumas dessas imagens causaram grande impacto, pelo teor arcaico e dramático que possuem, ainda mais quando vistas em grandes dimensões. Outras exposições e algumas publicações do fotógrafo em torno do assunto surgiram também nesse intervalo temporal, inclusive no livro Guy Veloso (Ipsis, 2016), que contempla um bom conjunto de 30 dessas imagens.

Agora, o tema ressurge no livro Penitentes – Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, que será lançado no 10º Foto em Pauta – Festival de Fotografia de Tiradentes, que acontece entre os dias 18 e 22 de março na cidade mineira. O fotógrafo foi contemplado com bolsa do Rumos Itaú Cultural 2017-18 para finalizar essa pesquisa (daí o marco temporal de 2002-2019 indicado para ela) e, por isso, o livro foi publicado com apoio do Rumos pela Tempo d’Imagem, editora cearense dedicada à fotografia.


Policiais acompanham confraria de Capela, SE, 2003. Foto: Guy Veloso/Divulgação

Desde o final do ano passado, Guy tem feito o gesto, que costuma repetir entre as pessoas que fotografa, de levar um retorno qualquer a elas, lembranças, presentes, fotografias impressas. Neste caso, ele levou exemplares do novo livro, o que está registrado na página Projeto Penitentes (projetopenitentes.wordpress.com), onde está, também, disponível o PDF integral da publicação, para qualquer um que se interessar por ela.

A relação de proximidade que Guy Veloso estabelece com os seus temas de predileção faz toda a diferença nos resultados que obtém. Por não se colocar à distância, numa posição de neutralidade em relação a eles, mas, ao contrário, por buscar a empatia e a confiança, o fotógrafo permanece mais tempo junto aos seus personagens e acaba por conhecê-los para além do que o registro rápido pode oferecer, criando laços com eles. Ao mesmo tempo que cultiva a proximidade, ele se mantém livre para desenvolver a própria interpretação a respeito dos assuntos que investiga. Nenhuma fotografia é neutra, sabemos, e o trabalho de antropologia visual que Guy Veloso encampa não escamoteia sua fascinação pelas manifestações de religiosidade mais arraigadas, sobretudo aquelas em que a ascese dos praticantes resulta em rituais carregados de teatralidade, mistério e, não raro, dor e êxtase.

É isso que observamos nas 94 fotografias reunidas em Penitentes – Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, que conta com a colaboração, na edição de imagens, de Rosely Nakagawa, curadora independente que acompanha esse projeto de Guy Veloso desde a participação dele na 29ª Bienal. Antes de comentar a seleção de imagens, podemos nos deter um pouco na imagem da capa, que se refere bastante ao que foi dito sobre a relação entre o fotógrafo e seu tema.

Trata-se de um detalhe, reproduzido em cianotipia, de uma mortalha da Ordem de Penitentes Sermão da Montanha, do município cearense de Caririaçu, que foi dada ao fotógrafo por um de seus integrantes, Antônio Cruz e Souza. Essa é uma das vestimentas e objetos de culto usados pelos penitentes que foram doados a Guy ao longo dos anos em que ele retornou aos locais para documentar tais práticas. Assim, junto a outras coleções de arte e objetos populares que mantém, Guy Veloso é hoje detentor de um importante acervo de imagens, vídeos e objetos de variadas ordens de penitentes, algumas das quais extintas.


Juazeiro, BA, 2019. Foto: Guy Veloso/Divulgação

Ele conta, no texto que escreveu para o livro: “Através dos anos, fui estreitando relações com as irmandades, o que é comum em meus projetos, todos necessariamente de longa duração. Em 2004, recebi de presente um manto do decurião Joaquim Mulato, de Barbalha-CE, o que deu início a uma coleção de batinas de penitentes do Nordeste. Desde então, ganhei 90 delas. (…) São túnicas cerimoniais autênticas, com símbolos e cores que apontam cada confraria, usadas para exprimir seu imaginário mágico-religioso e afirmação identitária”. Ele diz também que nunca lavou essas peças, algumas das quais usadas em rituais de autoflagelação. “Pelos ícones (cruzes, corações, orbes, sóis, rosas etc.) presentes, é possível avaliar as diferenças simbólicas entre as fraternidades e regiões”, continua.

Assim, a pesquisa que Guy Veloso realizou junto às irmandades, algumas delas secretas, expande-se para além da fotografia, visto que ele se aprofundou no tema a ponto de ter-se tornado especialista, colecionador e integrante. Sobre isso, ele conta, também em Penitentes: “Na Bahia tive meu melhor presente. Após anos seguidos documentando em Juazeiro a ordem de Alimentadores das Almas ‘Atrás da Banca’, também conhecida como ‘Corujão da Madrugada’, fundada em 1901 e liderada há 31 anos por Dona Jesulene Rodrigues Ribeiro (carinhosamente chamada de Nenezinha), fui convidado por ela a ser oficialmente iniciado na irmandade. Assim, passei a ter todas as responsabilidades e privilégios dos outros discípulos, ganhando acesso paulatino aos seus expedientes e segredos. Experimentei documentar ‘de dentro’ uma prática religiosa secular, o que resultou, creio, numa fotografia mais próxima tanto física quanto emocionalmente daquelas pessoas. E de mim mesmo”.


Irmandade Atrás da Banca, Cemitério de Juazeiro, BA, 2014. Foto: Guy Veloso/Divulgação

Em contato com Penitentes – Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo entendemos o estar próximo a que ele se refere. O enquadramento é imersivo, subjetivo. Como os cortejos ocorrem quase que exclusivamente à noite, há várias fotografias noturnas, sombrias, detalhes de corpos e objetos significativos, closes, percepções sutis e mesmo prosaísmos curiosos de quem fica muito tempo por ali, como na foto em que ele capta um menino que brinca de plantar bananeira na parede de um cemitério, enquanto seus familiares prosseguem em peregrinação religiosa.

Ver este livro é também prestar atenção nas legendas que Guy Veloso preparou para ele, de forma detalhista e cuidadosa, muito elucidativas sobre o que acontece nesses ritos. Da mesma forma, o texto que escreveu para a publicação é claro e informativo a respeito das práticas penitentes a que ele teve acesso (assinam textos também Rosely Nakagawa e o professor de Filosofia Guilherme Ghisoni da Silva). Embora a maior parte das imagens selecionadas para esta publicação registrem irmandades existentes, ou extintas, no Nordeste, com ênfase em algumas da Bahia, do Ceará, de Sergipe e Alagoas, ele pontua ter encontrado irmandades congêneres em todo o Brasil.


Capa do livro 
Penitentes – Dos ritos de sangue
à fascinação do fim do mundo.
Imagem: Reprodução

E mais, em 2017, Guy Veloso participou da Biennial of the Americas, ocorrida no Museo de Las Americas, em Denver (Colorado, EUA), com a exposição Penitents: world end rituals of faith, com a qual também se apresentou como integrante de uma irmandade e pôde encontrar penitentes norte-americanos, corroborando a ideia de que, mesmo em gradual desaparecimento, essas ordens nos indicam que permanecem entre nós o desejo de se comunicar com o sobrenatural, neste caso, exercendo o dever de encomendar almas.

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Extra:
Ouça nosso podcast com o fotógrafo (Trópicos #cinco)
Baixe gratuitamente o livro Penitentes – Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, em formato PDF

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ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

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