Artigo

As contradições de um agitador de consciências

Algumas reflexões a partir do filósofo e escritor basco Don Miguel de Unamuno e do filme 'Mientras dure la guerra', de Alejandro Amenábar

TEXTO EDUARDO CESAR MAIA E FRANCISCO JOSÉ CHAGUACEDA

01 de Junho de 2020

O ator Karra Elejalde interpreta Miguel de Unamuno. Nesta cena, abertura do curso de 1936, na Universidade de Salamanca

O ator Karra Elejalde interpreta Miguel de Unamuno. Nesta cena, abertura do curso de 1936, na Universidade de Salamanca

Imagem Teresa Isasi / Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 234 | junho de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Quem nunca fez de seu foro íntimo um campo de batalha, será um fanático e um intolerante sempre.

(Miguel de Unamuno)

Ali pelo final do ano passado – o ano zero da peste, que então ainda ignorávamos –, estreava na Espanha uma obra cinematográfica que, apesar de não ter recebido maior atenção da crítica brasileira, parece ter muito a nos dizer, e não somente do ponto de vista político. Mientras dure la guerra (Alejandro Amenábar, 2019) regressa à tragédia máxima da Espanha no século XX, a Guerra Civil, e o faz a partir de um episódio muito particular – quase lendário ou mítico, por tantas versões que já recebeu –, que teve como protagonista o filósofo e escritor basco Don Miguel de Unamuno (Bilbao, 1864/ Salamanca, 1936).

Autor de obras literárias difíceis de classificar, como Névoa ou A tia Tula, carregadas de especulação filosófica e de novas experimentações narrativas; e de ensaios filosóficos permeados de elementos religiosos e místicos entrecruzados a especulações mais estritamente filosóficas, como em Do sentimento trágico da vida, Unamuno fez parte, sempre com muita independência de ação e autonomia de pensamento, da geração de intelectuais que ficaria conhecida como “Generación del 98”, ano que marca o desastre colonial espanhol, com a perda de Cuba, Filipinas e Porto Rico após a derrota para os Estados Unidos.

Don Miguel foi uma figura central do pensamento espanhol do século passado, e também nome importante do existencialismo europeu – o movimento intelectual e literário que se tornaria filosoficamente hegemônico após a Segunda Grande Guerra, talvez pela melancólica sintonia com a traumática experiência europeia e pelos tempos de penúria que se seguiram. A maior parte das obras de história da filosofia costuma, esquematicamente, enquadrá-lo, assim, como um pensador vitalista e existencialista. Ainda que isso não seja de todo falso, é possível que não seja essa a melhor forma de lançar luz sobre a obra e a vida de um ensaísta e escritor tão singular. Talvez seja mais esclarecedor apresentá-lo como um pensador cristão dissidente, radicalmente personalista, muito mais próximo de Pascal, Kierkegaard ou Tólstoi do que de um Sartre ou um Heidegger.

Para além de todas atividades que exerceu – filósofo, poeta, romancista, dramaturgo, intelectual público, professor e reitor da Universidade de Salamanca –, ele foi fundamentalmente um homem engajado no debate das grandes questões de seu tempo. É tarefa difícil, como veremos, rotulá-lo politicamente com precisão. O filósofo e professor Manuel Garrido o considerou “um liberal com afinidades anarquistas que jamais abandonou a exigência de justiça social”. No entanto, a melhor forma de compreendê-lo talvez esteja para além dos conceitos e definições fixas – e o filme ajuda a fornecer essa imagem dramática de um pensador enfrentando um tempo de turbulências e enfrentando a si mesmo, aceitando as contradições entre pensamento e circunstâncias, entre razão e sentimento.

Sua radical e inamovível autonomia intelectual, além do ânimo de polemista, trouxe-lhe uma série de problemas políticos e pessoais durante toda a vida. Foi destituído – pela primeira vez – da reitoria da Universidade de Salamanca pelo Rei Alfonso XIII em 1914; depois, foi condenado ao desterro pela ditadura de Primo de Rivera, em 1924; e, já em 1936, ano em que transcorrem os eventos retratados na obra cinematográfica, Unamuno enfrenta – num debate dentro da universidade da qual era novamente reitor – o general legionário franquista Millán Astray. É este, por sinal, o episódio para qual toda a narrativa do filme se encaminha.

EQUÍVOCOS E ACERTOS
Parece-nos prudente enfatizar que Mientras dure la guerra deveria ser visto antes como dramatização inspirada em eventos reais do que como um projeto de reconstrução documental da história. Foi justamente a matéria-prima historiográfica da narrativa que gerou mais polêmica na Espanha: o filme recebeu críticas severas de alguns investigadores especializados naquele período histórico e, posteriormente, essas críticas também foram fortemente rebatidas por outros jornalistas e historiadores. As discussões históricas e ideológicas geradas têm, evidentemente, grande interesse em si mesmas; contudo, para além de qualquer consideração objetiva – foi ou não foi exatamente assim que aconteceu? –, é preciso destacar que o objetivo do diretor não parece ser propriamente deixar um relato fidedigno sobre a história, mas fornecer o retrato de um personagem singularíssimo agindo e reagindo a determinadas situações e adversidades do seu tempo.

A obra padece ainda de algumas falhas cinematográficas evitáveis, como um pouco de esquematismo no encadeamento narrativo e certo artificialismo na apresentação de alguns personagens, que são retratados de maneira simplificada em comparação, principalmente, com o detalhamento de matizes e profundidade psicológica e intelectual do protagonista – o que causa a sensação de que o diretor foi incapaz de superar a tentação, até certo ponto compreensível, de investir quase tudo na grande figura humana que foi Don Miguel, interpretado magistralmente por Karra Elejalde. O ator consegue conferir dignidade a qualquer gesto, e até mesmo a qualquer relutância, de seu personagem. Por outro lado, se alguns dos coadjuvantes tivessem recebido uma maior atenção e melhor caracterização psicológica, teríamos uma medida mais justa para dimensionar a verdadeira estatura do próprio protagonista.


O filme se passa em 1936, ano em que teve início a Guerra Civil Espanhola.
Foto: Teresa Isasi/Divulgação

Apesar de tudo, sem lugar a dúvidas, o resultado final é mais do que aceitável e a obra possui méritos inegáveis. O diretor, Alejandro Amenábar, ganhador de um Oscar de melhor filme estrangeiro por Mar adentro, acertou ao mostrar de maneira complexa – sem julgamentos prévios ou idealizações heroicas – as contradições do pensamento e da atuação pública de Unamuno, um filósofo que deliberadamente se utilizava de paradoxos e explorava as incoerências entre razão e vida. Além disso, como contraponto dramático, Amenábar destaca a personalidade hábil, porém carente de escrúpulos e de dúvidas – baseadas num dogmatismo forjado no militarismo e numa certa concepção (fanática e intolerante) de religião – do futuro ditador Francisco Franco. Da oposição sugerida subliminarmente entre as personalidades radicalmente contrastantes do filósofo e do ditador, surge a problemática mais interessante e reflexiva da película: o fracasso do diálogo e a corrupção da linguagem, primeiras vítimas da polarização radical que antecede a situação de guerra.

Como mencionado antes, a história narrada gira ao redor de um fato amplamente conhecido, ainda que cheio de lacunas e coberto de incertezas, da vida de Unamuno: seu discurso na abertura do curso universitário de 1936, diante de algumas das máximas autoridades da Espanha nacionalista, em um grande auditório da Universidade de Salamanca, da qual era reitor naquele momento. Como dizíamos mais acima, toda a narrativa se dirige para esse clímax, no qual Don Miguel de Unamuno, que havia antes apoiado o golpe de estado militar acreditando numa retomada da ordem política e na preservação de certos valores essenciais que estariam ameaçados, percebe de maneira definitiva que cometera um grave equívoco.

Nesse ponto vem a catarse: diante do general franquista Millán Astray e da esposa de Franco, Carmen Polo, Unamuno levanta então o olhar, suporta com firmeza o temor da situação, recupera a torrente de seu diálogo interior e, finalmente, pronuncia um breve discurso. Não se sabe exatamente o que foi dito naquela rápida intervenção. Muito foi escrito sobre o assunto, mas nenhum consenso foi estabelecido. O ponto central da diatribe, contudo, sabe-se que foi de repúdio radical à guerra e às palavras de ordem dos falangistas, incluído aí Millán Astray, que evocavam violência e morte. O reitor lançou sua única arma – seu verbo e retórica – diretamente contra aqueles que enchiam o auditório e, talvez, também contra si mesmo.

Um dos relatos mais verossímeis sobre o discurso, reproduzido de maneira irretocável no filme, coloca na boca de Unamuno a seguinte sentença: “Vencer não é convencer – exclamou – e vocês vencerão porque têm força bruta em demasia, mas não convencerão porque, para isso, é preciso persuadir, e para persuadir necessitam de algo que os falta: razão e direito na luta”.

A partir desse episódio, e isso é algo não abordado no filme, Unamuno permaneceu recluso em sua residência, perdendo novamente o posto de reitor. Faleceu no dia 31 de dezembro desse mesmo ano de 1936, depois de viver confinado em casa por três meses, enquanto a “pandemia” da guerra e as escaladas dos totalitarismos assolavam tudo ao seu redor. A Guerra Civil Espanhola – incivil, segundo Don Miguel – foi um dos momentos mais dolorosos em sua vida tão atribulada por perdas, desterros e conflitos.

Mientra dure la guerra apresenta, de maneira concentrada, Unamuno em momentos de dúvida e de afirmação, de hesitação e de ímpeto, de temor e de coragem e, por fim, de grandes equívocos e de nobres tentativas de (auto) correção. A lição para nossos dias transparece em cada contradição e em cada reavaliação que o pensador faz das conjunturas (cambiantes como o rio de Heráclito): é um ato de desinteligência ficar prisioneiro das ideias – sejam alheias ou as nossas. As circunstâncias da vida humana por vezes mudam de maneira tão radical e imprevisível, que se manter fiel a um ideal prévio pode ser sinal não de coerência, mas de estupidez ou fanatismo. Contra a ideocracia – o governo das ideias –, Unamuno preconizava a atitude de aceitar o elemento contraditório constituinte do real como dinâmica do nosso pensamento.

UNAMUNO NO ESPAÇO
O filme de Amenábar não foi o único a recuperar a figura de Miguel de Unamuno nesses últimos meses. Aqueles que porventura acompanham a série do universo Stark Trek, Picard, recordarão que o livro mais importante do filósofo espanhol, Del sentimiento trágico de la vida, é citado mais de uma vez, em diversos capítulos, pelo personagem do capitão Cristóbal Ríos, de origem hispânica, evidentemente. Com isso, talvez, os criadores da série televisiva tenham somente querido adornar a história com a referência a um pensador exótico ou, pensando melhor, é possível que tenham apostado no valor da obra de Miguel de Unamuno como exemplo de busca de um diálogo sincero consigo mesmo e com o mundo, ou universo, plural e contraditório. E pelo elemento trágico da narrativa: a luta incessante e sem resolução entre racionalidade científica, impulsora de grandes conquistas humanas pelo universo, mas incapaz de oferecer um sentido último à vida e uma justificação pessoal para a existência.

 

EXTRA: Comentário (em espanhol) sobre a produção do filme.




EDUARDO CESAR MAIA, crítico cultural, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e professor da graduação em Comunicação Social, ambos da UFPE.

FRANCISCO JOSÉ CHAGUACEDA, mestre em Filosofia pela Universidade
de Salamanca.

*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

Publicidade

veja também

Buen camino!

Uma paixão assimétrica

De volta ao passado ou ao futuro?