Reportagem

De volta ao passado ou ao futuro?

Pandemia do novo coronavírus expôs as mazelas das sociedades e impõe ao mundo rever suas ações e projetar mudanças

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2020

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra | PARTE 1 | ed. 234 | maio de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro.
(Ailton Krenak, O amanhã não está à venda)

Vamos entrar numa máquina do tempo imaginária. Primeiro viajaremos a um passado recente – mesmo que, neste período de pandemia e quarentena, esse passado pareça muito distante. Em 27 de dezembro de 2019, a poucos dias para o Réveillon, o jornal El País publicou um texto com o seguinte título: “49 boas notícias para começar 2020 com otimismo”. Uma frase, extraída do primeiro parágrafo, dizia: “A maioria das pessoas acha que o mundo retrocede, e que nos dirigimos a uma espécie de caos, ainda que os dados deixem claro que essa percepção é falsa”. Dentre os itens listados para nos animarmos com o futuro do mundo, estavam a redução nos índices de analfabetismo, de mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida...

Quatro dias depois, em 31 de dezembro, boa parte dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta estava ocupada com os preparativos da festa da virada, enquanto uma informação corria o noticiário mundial: autoridades chinesas alertam à OMS sobre uma série de casos semelhantes à pneumonia, em Wuhan, na China. A euforia em deixar para trás 2019, que não foi um ano fácil, ofuscou a notícia e não abalou, para os otimistas, a esperança de que 2020 pudesse ser um sucessor condizente com nossos melhores pensamentos, objetivos e expectativas. Afinal de contas, eram poucos casos, não havia vítimas fatais, a China estava no outro lado do planeta e a ciência já havia contido a SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome), em 2003.

O que seria um fator determinante para que essa ocorrência perdesse o seu caráter episódico, local e se tornasse um seriíssimo acontecimento global seria exatamente um daqueles 49 itens listados para sermos mais otimistas em 2020: “As pessoas viajam muito mais. O número de turistas se multiplicou por sete nos últimos 45 anos. A Europa é o primeiro destino, mas a mudança na Ásia foi espetacular: o continente passou de receber 6 milhões de viajantes a receber 340 milhões”. Em poucos dias, o “novo”, que seria destinado ao recém-chegado ano, estaria popularizado no nome da tal “pneumonia”: “novo coronavírus”, também conhecido como SARS-CoV-2.

A SARS, como disse o epidemiologista Ali Khan, em 2006, “era muito contagiosa e letal, tivemos a sorte de pará-la”. Três anos depois dessa declaração do médico, em março de 2009, um novo vírus influenza A, o H1N1, foi identificado no México e se espalhou pelos EUA e resto do mundo. Recém-empossado, Barack Obama declarou ser uma emergência de saúde pública, alertou as agências federais para se prepararem para uma pandemia e liberou suprimentos médicos. Em abril de 2009, foi aprovado teste para detectar infecções e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças já havia começado a trabalhar para desenvolver uma vacina. Ao todo, 12.469 pessoas morreram por H1N1 nos Estados Unidos. Com relação ao Ebola, o governo norte-americano destinou US $ 5,4 bilhões ao combate à doença que afligia a África Ocidental. Quinze centros médicos contiveram o surto na região.

Naquele mesmo 2014 em que combatia o Ebola, Obama fez um alerta: “Pode e provavelmente chegará um momento em que teremos uma doença transmitida pelo ar, que é mortal. E, para lidarmos com isso de maneira eficaz, precisaremos criar uma infraestrutura – não apenas aqui em casa, mas globalmente – que nos permita identificá-la rapidamente, isolá-la rapidamente, responder a ela rapidamente, para que, se e quando uma nova cepa de gripe, como a gripe espanhola, surgir, daqui a cinco anos ou daqui a uma década, tenhamos feito o investimento e estaremos em vantagem para poder contê-la”. Não se sabe se o então presidente soube do alerta pelo serviço de inteligência do governo, que informa os presidentes sobre os desafios a serem enfrentados, ou pela revista científica American Journal of Public Health, que, em editorial de 2007, afirmou que a produção industrial de animais poderia ser a origem da próxima grande pandemia. Ou se Obama assistiu ao filme Contágio (2011), de Steven Soderbergh, que narra, prevê e explica esta epidemia que estamos enfrentando agora. Inclusive, com o animal silvestre como agente contaminador – resultado do desequilíbrio ecossistêmico.

Antes da transição do governo, o Conselho de Segurança Nacional norte-americano havia preparado um manual de 69 páginas, detalhando estratégias e recomendações para detectar e conter possíveis surtos, inclusive com orientações jurídicas, a exemplo do dispositivo de acionar a Lei de Produção de Defesa, para obrigar empresas privadas a produzirem suprimentos médicos em caráter de urgência. Até uma reunião entre os assessores dos dois presidentes foi feita. Mas Trump ignorou...

“O governo Obama contratou o desenvolvimento de respiradores de alta qualidade e baixo custo. A empresa foi rapidamente comprada por uma maior, que marginalizou o projeto – estava competindo com seus próprios respiradores, que eram mais caros – e depois se voltou para o governo e disse que queria sair do contrato, pois não era lucrativo o suficiente. Isso é capitalismo selvagem. Não apenas o capitalismo, mas o capitalismo neoliberal. Fica pior. Em janeiro e fevereiro deste ano, quando os serviços de inteligência dos EUA estavam batendo na porta da Casa Branca, dizendo: ‘Ei, há uma crise real. Faça alguma coisa’, o governo Trump estava exportando respiradores para a China e outros países, para melhorar a balança comercial. Isso foi em março. Agora, os mesmos fabricantes e companhias aéreas que enviaram os respiradores estão trazendo de volta, com o dobro de lucro”, lamenta Noam Chomsky, em entrevista publicada na Jacobin Brasil.

Apenas em meados de março, o governo Trump passou a fazer pedidos em massa de máscaras N95, respiradores mecânicos e outros equipamentos. “Nós basicamente perdemos dois meses”, criticou Kathleen Sebelius, secretária de Saúde e Serviços Humanos do governo Obama, à Associated Press. “Perder” significar perder vidas. Até o fechamento desta matéria, os EUA estavam próximos de chegar ao número de 100 mil mortos pela Covid-19 (em quatro meses), em vias de duplicar o número de 56 mil norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã (em 10 anos de participação no conflito), que era, até então, um dos maiores traumas de um país conhecido por seus investimentos astronômicos na corrida espacial e em material bélico. “Mas não se pode atirar em vírus”, como bem disse o filósofo francês Luc Ferry.

Durante esses dois meses perdidos, Trump minimizou o vírus, divulgou informações equivocadas, fez propaganda da hidroxicloroquina, aconselhou a população a tomar desinfetante, contradisse seus consultores científicos e pôs a culpa no governo Obama pela falta de respiradores, EPIs e outros suprimentos médicos. Também ignorou pedidos de países aliados para realizar um plano de combate coordenado globalmente à pandemia, abdicando, talvez sem perceber, do papel de liderança mundial que o país vinha assumindo nos últimos 75 anos. Sua estratégia protecionista (para dizer o mínimo) “America First” foi bem-exemplificada na interceptação de respiradores e máscaras comprados por outros países, pagando o triplo do preço. No começo de abril, Alemanha, França e Brasil foram prejudicados pela pirataria moderna trumpista, cujo saldo são mais mortes. Para ficar em um exemplo, Rui Costa, governador da Bahia, tentou comprar, para o Consórcio Nordeste, respiradores da China, mas estes ficaram retidos nos Estados Unidos. A segunda compra não foi entregue. Devido à ação de Trump, a compra de respiradores virou um grande leilão internacional.

Seguindo o modelo trumpista, mas sem ter o mesmo cacife, o presidente Jair Bolsonaro promove um caos na condução da crise sanitária no Brasil, contrariando as orientações do então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, que ganhou projeção midiática durante as semanas iniciais da pandemia no país, simplesmente por defender as orientações da Organização Mundial de Saúde. O substituto, Nelson Teich (que renunciou ao cargo 28 dias depois), em reunião com governadores, acabou por revelar que não sabia onde e como comprar os respiradores – o produto mais procurado no combate ao novo coronavírus. Ele havia anunciado um investimento de R$ 658 milhões para que empresas brasileiras possam produzir os equipamentos. No entanto, o secretário de saúde baiano Fábio Vilas Boas afirmou que a indústria nacional não conseguiria atender com a velocidade e a qualidade necessárias.

O Brasil perdeu um tempo precioso, logo no início da pandemia. O protocolo nos aeroportos, para os que chegavam do exterior, era o de medir a temperatura. Se não estivesse alta, o viajante entrava no país. Tempos depois, descobriu-se que os assintomáticos são os maiores transmissores do vírus. Em Pernambuco, o primeiro local a registrar foco da doença foi Boa Viagem, bairro de classe alta da zona sul. As vítimas eram turistas que voltaram da Itália. Depois, a transmissão passou a ser comunitária. “Foi um erro deixar que houvesse, livremente, o trânsito de pessoas que vinham de países que reconhecidamente já estavam em situação de transmissão comunitária, como Itália, Espanha e Estados Unidos, que, até pouco tempo, ainda estava aberto. E também essa questão de só isolar os sintomáticos. Foi um erro, mas não se tinha a noção das pessoas assintomáticas como possíveis transmissores. Hoje, acredito que, pelo menos, de 50% a 70% da transmissão ocorra por pessoas que não têm sintomas. Mas, com a experiência asiática, eles chamaram a atenção de que era importante que todos usassem máscara e a OMS reconheceu”, explica a infectologista Vera Magalhães, que foi professora titular de doenças infecciosas durante 30 anos na UFPE, com experiência no combate à Aids, cólera e H1N1.

O governo brasileiro, além de não usar o tempo em seu favor, já que teve dois meses para acompanhar os desdobramentos da doença nos outros países, aprender com as estratégias e experiências alheias, também vem cometendo gritantes erros inéditos. “Sob a liderança do Mandetta, o Ministério da Saúde, pelo menos, ouviu o que os especialistas estavam falando. Então, agora, a grande dificuldade é exatamente a de existir mais de uma opinião. Os especialistas, de uma maneira geral, estão convencidos de que deve haver o isolamento e o lockdown. Mas, o presidente da República fica estimulando as pessoas a saírem de casa e ele próprio sai sem máscara, inclusive estava aparentemente com uma infecção, que não foi explicada. Então essas informações contraditórias prejudicam”, destaca a médica.

No dia 15 de março, o presidente da República participou de manifestação contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, em Brasília, e, nove dias depois, fez o fatídico pronunciamento, em cadeia nacional, chamando a doença de “gripezinha”. Segundo o estudo Mais do que palavras: discurso de líderes e comportamento de risco durante a pandemia, do economista Tiago Cavalcanti, professor da Universidade de Cambridge, em parceria com Nicolás Ajzenman e Daniel Da Mata, da Fundação Getúlio Vargas-SP, a postura do governante diante da pandemia pode ser responsável por, pelo menos, 10% dos casos e também das mortes. De acordo com o estudo, que monitorou 5.570 municípios e 60 milhões de celulares, a defesa do relaxamento da quarentena aumentou em até 30% a circulação de pessoas nas cidades onde o político teve mais ou menos 50% dos votos no primeiro turno em 2018. A estimativa é de que o comportamento de Bolsonaro tenha levado 1 milhão de pessoas de volta às ruas, e isso foi computado apenas nos 10 dias seguintes aos fatos aqui mencionados.

Para a infectologista Vera Magalhães, além da informação contraditória, ainda existe a dificuldade de a maior parte da população permanecer em casa, visto que precisa buscar, através do trabalho informal, o sustento e o alimento do dia. “Cem milhões de pessoas precisam da renda emergencial. É um número muito grande de pessoas que não têm como sobreviver e vai ter que sair de casa. Às vezes, não é nem falta de orientação ou de convicção do isolamento social, mas a completa impossibilidade de se manter sem trabalhar”, pondera.

***

A pandemia escancarou o abismo social que persiste em muitos países. Embora tenha sido dito por vários especialistas, líderes internacionais e até a cantora Madonna, que a Covid-19 é democrática e equalizadora, que mata ricos e pobres, que não discrimina brancos e negros, ela pode matar, mas não da mesma forma e não na mesma quantidade. Um exemplo disso: a mortalidade da Covid-19 é de 2,4% no Leblon, bairro com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio de Janeiro, e de 30,8% na favela da Maré e arredores.

As estatísticas evidenciam que, nos Estados Unidos, negros e pobres são os que mais morrem da doença. O Bairro do Bronx, com a maior porcentagem de população negra e a menor renda da cidade, e concentra 17% das pessoas de Nova York, tem 23% dos mortos. Na cidade de Nova York, os negros eram 22% da população e 28% dos mortos, até meados de abril. Em Michigan, são apenas 14% da população, mas têm taxa de 40% das mortes. Em Louisiana, são 32% da população e chegam a 70% dos mortos. Dentre os fatores, estão: falta de plano de saúde, de acompanhamento médico, comorbidades como pressão alta e diabetes (resultados de má-alimentação e sedentarismo), trabalho externo e moradia próxima a fábricas, devido à segregação racial. Além disso, há relatos de negros sendo parados nas ruas pela polícia, porque estão usando máscaras.


No Brasil inteiro, enquanto a pandemia se alastrava, imensas filas se formavam nas agências da Caixa Econômica Federal para retirada de auxílio emergencial. Foto: André Coelho/Getty Images South America/Getty Images via AFP

No Brasil, onde a velada segregação racial concentra a maior parte dos negros e pobres em comunidades superpopulosas e afastadas dos grandes centros, algumas delas vêm tentando driblar a falta de políticas públicas para as favelas. Paraisópolis, em São Paulo, é um dos exemplos. Através da União de Moradores, da Associação das Mulheres de Paraisópolis e do G10 das Favelas (grupo que reúne líderes de 10 grandes favelas no país), a comunidade contratou duas ambulâncias particulares, dois médicos, dois enfermeiros e três socorristas. Os profissionais se transferiram para o lugar e estão morando temporariamente em uma casa cedida. Segundo os moradores, o Samu não estava chegando ao local, que tem ruas estreitas e muitos becos – em um deles, nove jovens que iam a um baile funk foram mortos pela polícia, em dezembro de 2019. Na comunidade de 100 mil moradores, 240 deles receberam treinamento para ajudar nos primeiros socorros.

Os recursos para compra de equipamentos e contratação dos profissionais foram obtidos através de financiamento coletivo na internet – que contou, inclusive, com divulgação e arrecadação a partir da live do cantor Guilherme Arantes no dia 11 de abril. Até agora, foram arrecadados R$ 390 mil. A intenção é chegar a R$ 1 milhão. Cada equipe de emergência, composta por sete pessoas, incluindo dois médicos, recebe por dia R$ 6 mil e faz entre 20 a 30 atendimentos diários. Com a ajuda da Secretaria de Educação e da Vigilância Sanitária, foram abertos também, em duas escolas estaduais, centros de acolhimento de pacientes confirmados, para que não contaminem suas famílias. São 500 leitos para casos menos graves da Covid-19.

Durante a pandemia, ficou demonstrado o poder paralelo existente nas favelas, seja pela ausência ou pela ineficiência das ações governamentais. “Não deixa de ser curioso observar que, no Rio, em muitos territórios dominados por facções, a regra determinada pelos grupos ligados aos mercados de drogas é diminuir a circulação de pessoas, mesmo quando autoridades estatais não implementam o isolamento social recomendado por cientistas e profissionais de saúde. E há ameaça do uso da força pelas facções, em caso de desobediência. Parece que esses grupos entenderam que seus lucros devem ficar em segundo plano para que os padrões de mortalidade pela Covid-19, em áreas tão sensíveis, sejam controlados, garantindo o funcionamento do negócio no futuro. Em áreas dominadas por milícias, a interrupção dos ganhos relacionados ao controle das vendas de bebidas alcoólicas, gás de cozinha, água, que resultou do fechamento do comércio, tem levado os chefes milicianos a pressionarem os comerciantes a reabrirem seus estabelecimentos para que os mecanismos de extorsão, típicos das organizações milicianas, possam prosseguir”, analisa o sociólogo José Luiz Ratton, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, e coordenador do NEPS/UFPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Segurança da UFPE).

“Aqui está todo mundo atemorizado, tentando fazer de tudo pra se manter em quarentena”, revela a antropóloga Cris Pankararu, que se encontra no território indígena em Pernambuco, onde foi confirmado um dos dois primeiros casos da Covid-19 em indígenas no estado. “Um problema recente é a questão do acesso a esse auxílio emergencial, que faz com que as pessoas saiam de suas casas, porque a necessidade é grande, as famílias numerosas. Um valor como esse, R$ 600, para muitas pessoas pode ser pouco, mas é a tábua de salvação para muitas famílias. Aí começa esse entra e sai na aldeia. E também os municípios aqui demoraram a decretar quarentena. Existem medidas de acompanhamento, de policiamento, de entrada e saída, para impedir que esse mal chegue por aqui”, afirma Cris, que é representante indígena pelo Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, do Ministério do Meio Ambiente, desde 2017.

Para a antropóloga, os hábitos indígenas não se enquadram dentro da medida de isolamento social recomendada pelas entidades médicas. “A gente tem que estar junto, a gente sempre anda ‘de mói’. Está sempre andando em bando. E no Amazonas também é assim. Então, um indígena nunca sai sozinho do seu território, está sempre acompanhado. Primeiro, porque tem medo de sofrer algum tipo de agressão, e aí não tem quem peça ajuda; segundo, pra ajudar a impedir alguma coisa, ou ir atrás de alguma coisa, levar alguma coisa pra aldeia, nunca está sozinho. Por isso também essa incidência está aumentando”, explica.

Para ela, os indígenas também deveriam estar listados no grupo de risco da Covid-19. “Pela baixa imunidade, por outros hábitos, pela distribuição geográfica, por todos esses problemas. Então, foi uma iniciativa nossa começar um movimento de impedir visita de parente, de ficar em casa, de fechar as aldeias, de cobrar EPIs e testes rápidos, porque se essa doença chegar nos povos indígenas, dizima uma população. Os povos precisam trafegar nos rios, como na Amazônia. Alguns vão precisar se deslocar de barco ou de helicóptero, enfim, o que seja. É muito longe. De barco, é de uma semana a mais navegando. Quer dizer, é o tempo que, se a pessoa tiver alguma complicação, vai morrer no trajeto.”

As comunidades, com essas atitudes independentes, contribuem para não agravar o quadro do sistema de saúde pública, que já está colapsado em vários estados, devido ao aumento da quantidade de casos graves e mais o longo tempo necessário para a recuperação, que, dura, no mínimo, três semanas. Essa situação de insegurança e medo está levando a população ao desespero. Em Belém, um dia antes da abertura do Hospital Aberlado Santos, destinado a tratar a doença, várias pessoas tentaram abrir à força o portão. Logo em seguida, um homem, que estava com sua esposa passando mal dentro do carro, derrubou a estrutura de ferro com o automóvel em alta velocidade. Outro vídeo, que circula na internet, mostra uma mulher sendo expulsa de um ônibus na Bahia a empurrões e pontapés, porque, segundo o post, tossiu sem máscara.

Por conta do colapso no sistema de saúde pública e das regras impostas para escolher qual paciente poderá ter direito a um respirador, já há uma campanha pela fila única, que abrangeria hospitais públicos e privados, pois há suspeitas de que os particulares ainda tenham leitos disponíveis e estejam negando atendimento – não há transparência nesses números. O Conselho Nacional de Saúde fez um anúncio em favor da implantação da fila única, no dia 22 de abril: “O CNS recomenda ao Ministério da Saúde e às Secretarias Estaduais de Saúde que procedam à requisição de leitos privados, quando necessário, e sua regulação única a fim de garantir atendimento igualitário durante a pandemia. A expertise brasileira acumulada na regulação dos transplantes pode ser expandida e adaptada para a realidade da Covid-19”. Foi assim que aconteceu na Itália e na Espanha. Na Inglaterra nem existe essa discussão, porque o sistema é público.

***

Exatamente para tentar evitar esse colapso e achatar a curva epidêmica, a pandemia trouxe consigo a quarentena e uma quebra na noção que tínhamos da realidade. A vida, como ela é ou era, de repente, se transformou: comércio, consultórios, academias, cinemas, teatros, estádios, escolas, salões de beleza, parques, praias, escritórios foram fechados. Quatrocentos e vinte milhões de crianças e jovens ficaram sem aulas. Grande parte do trabalho presencial migrou para as residências. Os campeonatos estaduais, o Campeonato Brasileiro, a Libertadores da América, a NBA, a Olimpíada do Japão foram adiados. Festivais de música, cancelados ou adiados. Ruas antes lotadas de gente, como a 25 de março e a Times Square, viraram desertos. A TV Globo interrompeu suas novelas e passou a exibir reprises de antigas. A Netflix, com 182 milhões de assinantes, superou a Disney (fechada) em valor de mercado. Tom Hanks apareceu nas redes sociais anunciando que foi infectado na Austrália durante uma filmagem. Estreias cinematográficas, programadas há anos ou meses, tiveram que ser canceladas, adiadas ou migrar para plataformas de streaming.

Pais, filhos, parentes, amigos, colegas de trabalho passaram a se falar apenas pelo celular ou computador. A rotina normal de quem trabalhava, estudava e curtia o final de semana com diversão e lazer foi, de repente, interrompida. O cotidiano de quem ficou em casa passou a abranger o assustador noticiário, dar like no pão caseiro dos amigos no Instagram e fugir ou ser fisgado por uma das infinitas lives que pipocam nas redes sociais. Como se fosse o roteiro do filme Feitiço do tempo (1993): todo dia acontecem as mesmíssimas coisas, enquanto o protagonista, interpretado por Bill Murray, a princípio confortável com a rotina, percebe a repetição e tenta enlouquecidamente quebrar o ciclo.

Os dias passaram a ser uma linha contínua, como apontou o psicanalista Carlos Ferraz, professor de Psicologia da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), em entrevista ao Trópicos, podcast da Continente. O resultado dessa espera, dessa expectativa, em meio à luta diária pela sobrevivência munida de álcool gel e máscara de pano, é que aumentaram os casos de crises de ansiedade, síndrome do pânico e depressão.

“A gente já vinha, mesmo na vida como ela era, sentindo – isso é tema de livros, congressos, debates na OMS – que a nova forma de sofrimento, de patologia na contemporaneidade, tinha mais um acento ansioso ou depressivo, os chamados quadros de pânico, de crise de ansiedade generalizada e os quadros depressivos, com todas as variantes que têm dentro desses quadros. O transtorno de ansiedade tem como característica uma expectativa eterna, como se ela fosse contínua de que algo ruim pode acontecer, de que vou ter uma perda iminente, de que vou sofrer um dano, de certa maneira ter um prejuízo. A ansiedade é uma reação diante da expectativa de um perigo ou a expectativa de um dano, que parece iminente”, explica Ferraz.

“Nessa situação, o mal-estar da vida cotidiana se tornou mais agudo. Ele injetou intensidade na ansiedade e na depressão cotidiana. As pessoas estão mais vulneráveis, na medida em que se viram tolhidas de uma série de coisas que davam sentido à existência: ir trabalhar, para alguns hoje, é impossível; perda da renda, e a falta de sociabilidade presencial, por mais que a gente tenha acesso às redes sociais. Como é uma pandemia que não anuncia seu término, a gente fica sem noção de amanhã, sem a dimensão da temporalidade, que é tão importante para organizar a vida. Fica sem a dimensão do futuro, ficamos aprisionados numa espécie de aqui e agora, só que em estado de espera”, observa.

Segundo estudo realizado pelo Instituto de Psicologia da UERJ e o Hospital Yale New Haven (EUA), a pandemia está provocando um aumento de problemas de saúde, especialmente nos que precisam trabalhar fora, o que inclui profissionais de saúde, entregadores, motoristas e caixas de supermercados, pois se veem mais vulneráveis à contaminação. As mulheres são as mais propensas a sofrer com ansiedade e depressão no período, pois ainda acumulam tarefas domésticas e cuidados com os filhos, que podem estar ou não com aulas remotas. No caso da depressão, as principais causas são a idade avançada, a consciência do baixo nível de escolaridade e o receio de transmitir a infecção às pessoas do grupo de risco. A pesquisa foi feita entre os dias 20 de março e 20 de abril, com 1.460 pessoas de 23 estados.

Em O mal-estar da civilização (1930), Sigmund Freud aponta como as três fontes de sofrimento da humanidade: “A prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade”. A pandemia do novo coronavírus reúne essas três fontes e ainda as potencializa com os problemas, incertezas e desesperanças do mundo contemporâneo. “O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos”.

Embora o isolamento, obrigatório ou não, tenha o potencial de ser uma fonte de sofrimento, para Freud, isolar-se pode servir também como um resguardo de si: “O deliberado isolamento, o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas. Compreende-se: a felicidade que se pode alcançar por essa via é a da quietude. Contra o temido mundo externo, o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento, querendo realizar sozinho essa tarefa. É verdade que existe outro caminho melhor: enquanto membro da comunidade humana, e com o auxílio da técnica oriunda da ciência, proceder ao ataque à natureza, submetendo-a à vontade humana. Então se trabalha com todos para a felicidade de todos. Mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida em que o sentimos, e nós o sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo”.

A ansiedade, no contexto da pandemia, também se origina no fato de que, pela primeira vez, em muito tempo, o mundo inteiro, de uma só vez, não pode contar com a fé na ciência, como afirma o historiador Yuval Noah Harari, autor do best-seller Sapiens (2011): “O mundo moderno foi moldado pela ideia de que os humanos podem passar a perna na morte ou derrotá-la. Foi uma atitude nova e revolucionária. Ao longo de quase toda a história, os humanos se sujeitaram à morte, sem reclamar. Até o final da Idade Moderna, as religiões e as ideologias, em sua maioria, encaravam a morte não como nosso destino inevitável, mas como a principal fonte de sentido da vida. (…) Para os cientistas, a morte não é um decreto divino – é apenas um problema técnico”.

***

Em meio à falta de uma resposta disponível da ciência para conter o inimigo invisível, os seres humanos passam a contar de novo com a fé também no invisível, na esperança de uma proteção, cura, tratamento viável ou vacina (no momento, há mais de 100 estudos em desenvolvimento, alguns já em testes). Mesmo com todas as igrejas fechadas e com o depósito de confiança nas pesquisas científicas que estão em curso, é possível que, pós-pandemia, haja uma guinada religiosa, num país que já se encaminha para ter uma maioria evangélica – no último Censo, de 2010 (o deste ano foi cancelado devido à epidemia), já havia cerca de 42,3 milhões de evangélicos no país.

Durante este período da pandemia, as emissoras de TV e rádio evangélicas vêm aumentando os sermões e orações em torno da situação extrema que vivemos. Enquanto isso, os pastores Edir Macedo e Silas Malafaia, provavelmente temendo a diminuição dos dízimos, posicionaram-se contra o isolamento social, recebendo uma resposta à altura do presidente Jair Bolsonaro, que, em 26 de março, listou as igrejas como serviço essencial (decisão revertida pela Justiça); assim como salões de beleza, manicure, academia de ginástica, em 11 de maio, surpreendendo até o então ministro da saúde Nelson Teich (que anunciou sua demissão no dia 15 de maio).

Se haverá um aprofundamento do alcance das religiões, o próximo Censo poderá confirmar, mas, de alguma forma, Jair Bolsonaro está encontrando, neste contexto, um meio de manter a conexão com o eleitorado evangélico, que garantiu sua eleição em 2018. Talvez a sua tentativa de deixar abertas as portas das igrejas e templos, durante a pandemia, soe como um sinal aos fiéis e eleitores de que a resposta divina estaria ali e não foi permitida, pelos “ímpios”, a salvação. Segundo pesquisa do DataFolha, a aprovação da condução da crise sanitária por Bolsonaro foi de 41% entre os evangélicos, maior que os 33% da população em geral, no começo de abril.

Essa aprovação ainda é um dos trunfos de Bolsonaro para se manter no poder – Dilma Rousseff tinha 11,4%, no último levantamento, antes de ser afastada do cargo, em 2016. “A popularidade dele não é baixa, 30% dentro de uma situação como essa, de crise completa, não é uma popularidade baixa. Pode ser que ele não consiga crescer muito mais do que isso. Mas ele também não vai cair muito mais do que isso. Os nazistas, para ganharem a eleição, precisavam de 33%. Eles vão com Bolsonaro até o fim. Até a destruição do país”, afirmou o filósofo Vladimir Safatle, em entrevista à Continente, em novembro do ano passado, sete meses antes de ser instaurado este caos sanitário no país, agravado pela política bolsonarista.

A pandemia, encarada como a gota d’água para a saída de Bolsonaro, é, por outro lado, outro fator que mantém, por ora, seu mandato, pois o povo não pode tomar as ruas em manifestações (panelaços e projeções em prédios não são suficientes) e o Congresso Nacional está desarticulado, trabalhando de forma remota. Até o fechamento desta edição, 31 pedidos de impeachment de diversos partidos encontravam-se na mesa de Rodrigo Maia – segundo o presidente da Câmara, “não são prioridade”. Ao tentar garantir-se no poder, Bolsonaro vem flertando com militares, milícias e parte da população para um autogolpe. Até agora, os sinais do alto-comando das Forças Armadas são ambíguos. O plano B é apelar para o centrão, para evitar a consolidação do impeachment. Enquanto isso, as eleições municipais se aproximam e ainda não há uma definição de como acontecerão ou se acontecerão na data prevista.

O governo Bolsonaro, que queria pagar apenas R$ 200,00 como auxílio aos desempregados e achou oportuno dar a “última palavra” em R$ 600,00 (depois que a oposição no Congresso apresentou a proposta de R$ 500), fez um agrado aos militares com a distribuição de um “coronavoucher” de R$ 600 para 189.695 militares da ativa, da reserva, pensionistas e anistiados, totalizando R$ 113.816.990,00. O Ministério da Defesa declarou, em nota oficial, que “verifica a possibilidade de recebimento indevido de valores referentes ao auxílio emergencial, concedido pelo Governo Federal no período de enfrentamento à pandemia do coronavírus, por integrantes da folha de pagamentos deste Ministério”.

***

Enquanto estamos neste estado de suspensão pela expectativa do como será o amanhã, faremos uma viagem ao futuro, para tentarmos obter algumas projeções. Uma delas refere-se ao fato de que a pandemia escancarou todos os males do neoliberalismo. A época das máscaras desmascarou o sistema econômico. A iniciativa privada não dá conta da epidemia. É o sistema público de saúde, em todo o mundo, que está segurando a avalanche da Covid-19. Um exemplo icônico: o primeiro-ministro britânico Boris Jonhson foi tratado em um hospital público e elogiou os enfermeiros que o trataram, especialmente dois imigrantes – um fato irônico para um país que aprovou o Brexit, com vistas também a repelir a imigração, que foi e será muito afetada com o fechamento das fronteiras entre os países.


No final de abril, nos EUA, enfermeira prepara paciente para procedimento cirúrgico a bordo de um navio-hospital, integrado ao sistema médico de Nova York para aliviar a rede, tomada pela Covid-19. País registra 100 mil mortos. Foto: US Navy communication specialist 2nd class Sara Eshleman/WIKIPEDIA

No Brasil, é possível que haja uma revisão, tanto sobre as brechas na indústria nacional (a escandalosa falta de fabricantes de equipamentos, como respiradores, deixando o país à mercê de não confiáveis fornecedores internacionais), quanto sobre o investimento em saúde pública. “Acho que, pelo menos, vai ser muito importante o reconhecimento do valor do SUS. Acredito que vá haver maior investimento e, ao menos, a demonstração do valor desse sistema de saúde. Agora, é importante também se discutir publicamente a questão da Emenda Constitucional 95. Não estou vendo muita discussão sobre ela. Acho que seria o momento para rever o Teto dos Gastos (aprovado durante o Governo Temer, em dezembro de 2016, cujo corte na ciência impactou a contribuição das universidades no combate ao vírus). E, mesmo que isso não seja revisto, um maior investimento na saúde pública é mandatório, se a gente quiser sobreviver como nação”, aponta a infectologista Vera Magalhães.

Mas esse investimento ainda pode depender da recuperação da economia do país, que estará bastante vulnerável, seguindo a tendência mundial. Em artigo para o New York Times, o economista da Universidade de Nova York, Nouriel Roubini, especializado em análise financeira, indicou que o choque para a economia global da Covid-19 foi mais rápido e mais severo que a crise financeira global de 2008 e até a Grande Depressão. “Nos dois episódios anteriores, os mercados de ações caíram 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, as grandes falências se seguiram, as taxas de desemprego subiram acima de 10% e o PIB contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer”, escreveu.

Roubini reforça que, na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas: “Em outras palavras, todos os componentes da demanda agregada – consumo, gasto de capital, exportações – estão em queda livre sem precedentes. Enquanto a maioria dos analistas previam uma desaceleração em forma de V – com a produção caindo acentuadamente por um trimestre e depois se recuperando rapidamente no próximo –, agora deve ficar claro que a crise da Covid-19 é algo totalmente diferente. A contração que está em andamento agora parece não ter a forma de V nem de U nem de L (uma desaceleração acentuada seguida de estagnação). Pelo contrário, parece um I: uma linha vertical que representa os mercados financeiros e a economia real em queda”.

Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial e a Grande Depressão, a maior parte da atividade econômica não foi paralisada, como ocorreu globalmente, e em especial na China, nos Estados Unidos e na Europa. Nos EUA, até agora, 33 milhões de trabalhadores perderam seus empregos por conta da pandemia – sendo os negros e latinos os mais atingidos, porque são os que mais trabalham no setor de serviços (restaurantes, bares, hotéis), que foi o primeiro a fechar e o que terá maior dificuldade em reabrir.

Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, a crise da Covid-19 deixará 12,6 milhões de pessoas desempregadas no país, dobrando a taxa atual, que poderá chegar a 23,8%, sem contar com os informais. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou que mais da metade dos 3,3 bilhões de trabalhadores em todo o mundo correm o risco de perder seus meios de subsistência ainda neste segundo trimestre.

“Mas o melhor cenário pressupõe várias condições. Primeiro, os EUA, a Europa e outras economias fortemente afetadas precisariam implementar medidas generalizadas de teste, rastreamento e tratamento com Covid-19, quarentenas forçadas e um bloqueio em larga escala do tipo que a China implementou. E, como pode levar 18 meses para que uma vacina seja desenvolvida e produzida em larga escala, antivirais e outras terapias precisarão ser implantados em grande escala. Como tal, o risco de uma nova Grande Depressão, pior que a original – uma Depressão Maior – aumenta a cada dia”, avalia Nouriel Roubini.

Para ele, a crise poderá renovar conflitos no Ocidente e envolver, ao menos, quatro potências: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. “Os inevitáveis ataques cibernéticos ao processo eleitoral nos EUA podem levar a um resultado final contestado, com acusações de manipulação e a possibilidade de violência e desordem civil”, prevê o analista.

A crise da pandemia abalou as estruturas do neoliberalismo e as soluções apontadas por muitos especialistas passam bem longe da cartilha de Milton Friedman, e foram até defendidas em editorial do Financial Times: “Reformas radicais – invertendo a direção política predominante das últimas quatro décadas – precisarão ser postas à mesa. Os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e procurar maneiras de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na agenda; os privilégios dos idosos e ricos postos em questão. As políticas até recentemente consideradas excêntricas, como renda básica universal e impostos sobre a riqueza, terão que estar no pacote”.

Ou seja, a era, disseminada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, pode estar com seus dias contados. Mas isso deve depender do quanto a pandemia atingir os países em áreas como saúde, economia, política e, principalmente, consciência da população. O historiador econômico Walter Scheidel, no livro O grande nivelador: violência e a história da desigualdade, da Idade da Pedra ao século XXI (2017), identifica quatro tipos de eventos que reformulam as sociedades, diminuindo as desigualdades econômicas e estabelecendo uma nova ordem: grandes guerras, fracassos do Estado, revoluções e pandemias letais.

Ao que parece, um indicador de que os erros podem não ser corrigidos é que, mesmo com a catastrófica condução da crise, a popularidade de Trump ainda está alta: 49%, em março, e 43%, em abril. “Se Trump for reeleito, será uma completa tragédia. Se Biden for eleito, não será maravilhoso. Mas, de qualquer forma, você precisa fazer o que é possível (votar em Joe Biden) e não está fora de alcance”, afirmou Noam Chomsky, na mesma entrevista para a revista Jacobin Brasil. “Se pensarmos um pouco, a questão central é óbvia. Então, talvez as pessoas façam isso ou talvez fiquem hipnotizadas pelo vigarista no cargo. Recebo cartas de trabalhadores pobres que dizem: ‘Vocês liberais estão trazendo todos os imigrantes para roubar nossos empregos e Trump está nos salvando’.”

Portanto, Chomsky não está tão otimista com uma mudança no sistema capitalista e um milagroso investimento em políticas de bem-estar social. “Eu vivi a Grande Depressão. Por isso, tenho essa longa barba branca. Na década de 1920, o movimento trabalhista foi totalmente esmagado. Dê uma olhada em David Montgomery, um historiador do trabalho. Um de seus grandes livros é The fall of the house. Nos anos 1930, começamos a retomar as lutas. O Comitê de Organizações Industriais, que organiza as greves, foi uma grande ameaça para a burguesia, pois veio a seguinte ideia na cabeça dos trabalhadores: ‘Não precisamos dos chefes Nós podemos administrar esta fábrica nós mesmos’. Isso gerou algumas reações. Aconteceu um governo compreensivo que implantou o New Deal. Um historiador trabalhista muito bom, Erik Loomis, estudou o caso e salienta que momentos de mudança positiva quase sempre foram liderados por um movimento trabalhista ativo e as únicas vezes que conseguiram foram quando houve um governo relativamente compreensivo ou, pelo menos, tolerante.”

***

Um aprofundamento da recessão no Brasil (que assiste ao dólar bater recorde em cima de recorde sobre o real), ou uma depressão na economia, pode aumentar os índices de violência. Durante esta pandemia, enquanto alguns estados registram um número menor de violência urbana, em outros, como o Ceará, aumentou o número de homicídios. Para o sociólogo José Luiz Ratton, é importante destacar que, desde setembro de 2019, os homicídios vêm crescendo em 20 dos 27 entes federados brasileiros.

“Para compreender as mudanças e permanências nas relações entre pandemia e crime, precisamos ser capazes de identificar e compreender um conjunto de padrões e mecanismos causais que atuam de forma concomitante neste momento. Em Pernambuco, no Ceará, no Distrito Federal e em São Paulo, houve elevação das taxas de homicídio relacionadas ao funcionamento dos mercados ilegais. Tais tipos de assassinato têm uma lógica ‘local’, incrustada no território, com alta proximidade entre a residência do autor, da vítima e o lugar de ocorrência do crime. É sensato pensar que tais lógicas criminais foram pouco afetadas pelo eventual isolamento social, em consequência da pandemia, se é que ela ocorreu de forma relevante nos territórios de grande vulnerabilidade social onde tais homicídios são mais prevalentes”, coloca.

Para Ratton, uma convulsão social não é uma hipótese descartada, caso permaneçam o aumento da pobreza e a falta de perspectiva de melhora, durante a pandemia e depois dela. “A eventual ocorrência de saques pode ser considerada uma forma de ação coletiva provável em reação a um contexto extremo de escassez e de limitação crescente das formas usuais de sobrevivência (mesmo que precárias) de setores expressivos da população. Me parece, contudo, que um aumento expressivo de saques urbanos ou rurais só ocorrerá em situações em que a redução do acesso de setores das camadas populares à alimentação e a padrões aceitáveis de sustento familiar atinja uma situação-limite, que pode não estar distante”, considera.

Para manter a ordem na sociedade, ele defende que o governo federal deve apresentar alternativas efetivas que assegurem dignidade aos mais pobres e àqueles que não tem mais trabalho remunerado. “Acesso à água, à comida e à saúde, com a extensão, até o final da pandemia, dos auxílios emergenciais já concedidos; o aumento da eficiência no pagamento de tais auxílios; a concessão de empréstimos para pequenos e médios empresários, nas cidades e na zona rural; tolerância com a inadimplência de pagamento de aluguel, luz, água, gás etc”.

Isso vai depender da sensibilidade de – ou pressão sobre – um governo que instaurou no país o falso dilema “salvar vidas X salvar a economia”. A ideia da “reabertura da economia” levou o presidente da República (e parte do empresariado) a defender, seja em constrangedores pronunciamentos, entrevistas ou gravações de celular, o afrouxamento da quarentena para estabelecer um isolamento vertical – que abrange apenas doentes e pessoas dos grupos de risco. Felizmente essa insensatez (e desumanidade) não surtiu efeito nos governos estaduais e municipais, que vêm mantendo a medida restritiva desde meados de março e até o lockdown. A referência para a população que pode quarentenar e não faz parte do 1% mais rico do planeta deveria ser o que postou o rapper Snoop Dogg, em seu perfil no Instagram: “Não saia, até eles abrirem o campo de golfe, o clube de campo, a quadra de tênis e raquetebol e o salão de bronzeamento”.

Continua aqui.

Publicidade

veja também

De volta ao passado ou ao futuro? [parte 2]

“Ações compensatórias podem evitar uma convulsão social”

“Todas as medidas anti-indígenas continuam a todo vapor”