Curtas

Coletânea Augusto Rodrigues

O legado do caricaturista, artista, educador e fotógrafo ganha agora uma publicação da Cepe Editora, em quatro volumes

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Julho de 2020

Augusto Rodrigues começou sua trajetória profissional no 'Diario de Pernambuco'

Augusto Rodrigues começou sua trajetória profissional no 'Diario de Pernambuco'

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 235 | julho de 2020]

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Numa festa de aniversário de seu filho, Antonio Carlos, Augusto Rodrigues convidou os adultos a deixarem o apartamento, ficando apenas as crianças com lápis e tintas nas mãos. O comando: elas poderiam pintar e desenhar livremente, nos móveis, nas paredes, em qualquer lugar. O resultado foi uma imagem que nunca saiu da cabeça do seu filho: “Poucas vezes vi Augusto Rodrigues, meu pai, sem um lápis ou um pincel na mão”. Essa história prosaica e intimista revela um pouco da personalidade desse pernambucano que, ao longo de sua vida, viveu rodeado de livros, desenhos, esculturas, pinturas, artistas, escritores, jornalistas... e crianças.

Falecido em 1993, Augusto Rodrigues deixou um enorme legado que ganha, agora, uma publicação da Cepe Editora. Idealizada e organizada pelo seu filho Antonio Carlos Rodrigues, a coletânea divide a produção de Rodrigues em quatro eixos principais: caricaturista, artista, educador e fotógrafo. Os quatro volumes – bem-cuidados e vastamente ilustrados – podem ser comprados individualmente ou em conjunto, numa caixa, e refletem a relevância e a potência da sua trajetória na cena artística e intelectual brasileira.

Nascido em 1913, o jornalista, artista, caricaturista, fotógrafo, educador cresceu num ambiente instigante. Seu pai era dentista, mas encontrava tempo para escrever para suplementos literários, traduzir poetas franceses, além de ser um colecionador de pinturas e desenhos. O chamado para o jornalismo chegou muito cedo, aos 13 anos, quando se juntou ao primo Nelson Rodrigues e fundou o tabloide Alma Infantil. Profissionalmente, Augusto começou a atuar no Diario de Pernambuco, em 1933. Não demorou muito para, em 1935, deixar o Recife e se instalar no Rio de Janeiro.

Trabalhando para os Diarios Associados, teve suas charges publicadas em mais de 20 jornais. Os brasileiros puderam acompanhar os principais acontecimentos da Segunda Guerra Mundial através dos seus traços. José Hamilton Ribeiro destaca que o grande lance genial de Rodrigues teria sido perceber que a humanidade, naquele momento, dependia da figura de Adolf Hitler, tornando-o seu personagem símbolo. “Quando rabisco a carantonha de Hitler, meu fim é sempre combater a tirania, através da ironia ou do grotesco”, afirmou certa vez Rodrigues. Foram inúmeros desenhos com o personagem, sem repetições. Para Ribeiro, os traços simples e com muita malícia eram acessíveis a todos. Boa parte desse material do período da Segunda Guerra e outras ilustrações estão reunidas num dos volumes da coletânea e mostram por que Rodrigues foi considerado um dos maiores chargistas de sua época.

Noutro volume, foi reunido seu trabalho artístico. As obras mostram a fluidez dos seus traços, especialmente nas silhuetas femininas, mas também apresentam situações nas quais esse mesmo traço ganha um peso maior, num grafismo mais forte. O apreço pelas figuras humanas e por situações do cotidiano parecem caras ao artista, seja qual for seu campo de expressão. É o uso das cores que mais diferencia as pinturas de Augusto Rodrigues dos seus desenhos, dominados em sua maioria pelo traço preto. Entre o material selecionado para a publicação, destaca-se uma série desenvolvida durante a década de 1970, na qual o artista retrata os passos do frevo. A torção dos corpos e seus movimentos parecem saltar do plano bidimensional das obras.

 

 
Coletânea organizada por Antonio Carlos Rodrigues foi editada pela Cepe Editora

Nesse volume dedicado ao artista, percebe-se o trânsito de Rodrigues na cena da arte moderna brasileira, participando de movimentos de vanguarda e também daqueles ligados à cultura popular pela qual, ainda muito jovem, se interessou.

Foi ele quem, durante uma viagem ao interior de Pernambuco, na busca por artistas populares, conheceu Vitalino e foi responsável pela divulgação do trabalho do mestre para além dos limites de Caruaru.

Foi ainda com os pincéis e lápis na mão que Augusto Rodrigues lutou junto com artistas, educadores e pensadores, pela inserção da arte no currículo escolar. Em 1948, fundou a Escolinha de Arte do Brasil, num pequeno espaço cedido pela Biblioteca Castro Alves, no Rio de Janeiro. A ideia se espalhou e as escolinhas se multiplicaram em todo o país e América Latina, inclusive no Recife. A relevância dessa atuação no campo da educação foi referendada pelo próprio artista que, em entrevista a Clarice Lispector, afirmou que essa teria sido a experiência mais reveladora de sua vida.

Defendia vorazmente a sua liberdade e a do outro, e acreditava que ser livre era fundamental no processo de aprendizagem da criança. Dizia ele: “Uma criança não é um ser morto para ser ressuscitado, mas um ser vivo a ser estimulado, para a descoberta do viver em plenitude”.

A fotografia é o foco do quarto volume da coletânea. No final dos anos 1950, terminada a guerra, Augusto Rodrigues mudou-se para o famoso Largo do Boticário, no Bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Era um local único, sua arquitetura, a mata e o rio tornavam o ambiente misterioso e atraente. Artistas, jornalistas, fotógrafos, modelos, sambistas circulavam por lá e Augusto acompanhou tudo isso também fotografando. É esse recorte que o livro nos apresenta, o olhar amoroso do artista por aquele cenário.

A caixa com os quatro volumes chega para ocupar uma lacuna na documentação e registro desse grande personagem que foi Augusto Rodrigues e que nos deixou um vasto legado artístico, mas que, antes de tudo, conseguiu ser um agente modificador do seu tempo. Clarice Lispector, quando o entrevistou, assim escreveu: “Era uma vez um homem bom, muito inteligente, cheio de talento para desenho e fotografia, e amor ao próximo. Este homem se chama Augusto Rodrigues e mora num dos lugares mais bonitos do Brasil, o Largo do Boticário, entre árvores e pássaros e borboletas”.

MARIANA OLIVEIRA, jornalista, editora assistente da Continente.

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