Tradução

Cartas de Emily Dickinson

TEXTO Júlia Côrtes Rodrigues

02 de Outubro de 2020

Imagem ARTE SOBRE REPRODUÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 238 | setembro de 2020]

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“Essa é minha carta ao Mundo/que nunca Me escreveu.” Esses versos da poeta estadunidense Emily Dickinson costumam ser tomados como metáfora privilegiada para sua obra, escrita em relativa reclusão ao longo do século XIX. Enquanto publicou apenas seis poemas em vida, a poeta da pacata cidade de Amherst tinha o hábito de enviá-los a seus correspondentes, incorporando versos à prosa epistolar. Suas cartas são, portanto, fundamentais para compreendermos sua poesia e sua interação com o outro, atravessada por uma construção fortemente literária mesmo na correspondência mais cotidiana e pessoal.

Emily Dickinson assinou mais de mil cartas, dirigidas a um grupo seleto de correspondentes. Entre os interlocutores mais importantes está Susan Gilbert, também escritora, que se casou com Austin Dickinson (irmão de Emily) em 1856. As cartas traduzidas aqui foram escritas antes do casamento, quando Gilbert vivia em Chicago. Apenas casada ela se instalaria em Amherst – na segunda carta, Dickinson faz referência a uma viagem de Austin relacionada ao arranjo matrimonial. Na correspondência com Gilbert, Dickinson exalta a amiga e lamenta sua ausência. Um afeto genuíno se deixa ler nessa linguagem densamente poética.

Como destaca a poeta Adrienne Rich, o vínculo entre mulheres nesse período podia ser carregado de proximidade intelectual e física, mas de uma forma distinta do que hoje compreendemos como afetividade lésbica. Embora muito já tenha sido especulado sobre a sexualidade de Dickinson, não é possível tirar conclusões definitivas a partir dos documentos disponíveis – e esse debate frequentemente esteve mais próximo da especulação escandalosa que da crítica literária. Parece seguro dizer apenas que Dickinson encontrou em Gilbert uma interlocutora admirável: a inteligência da amiga a inspirava e a poeta também se permitiu escrever a ela com elevadas doses de graça e inventividade.

Nas cartas, ainda, Dickinson refletiu amplamente sobre a natureza das posições sociais, provocando as expectativas construídas em torno das mulheres. Ao fim da primeira, Dickinson questiona, com admirável senso de humor, por que ela mesma não poderia participar da convenção do Partido Whig – não por interesse político, mas como pretexto para visitar a amiga – reivindicando, portanto, uma mobilidade que ainda era exclusivamente masculina. Na verdade, Edward Dickinson, pai de Emily, era o verdadeiro delegado da convenção – ele entregou a carta a Gilbert na ocasião da viagem. Na segunda carta, Dickinson também retrata sua inaptidão para as tarefas domésticas, com leve autoironia. Embora seja brincalhona em relação ao fato de que sua irmã Vinnie tira pó das escadas praticamente o tempo todo, Emily também sabia que seu arranjo familiar lhe garantia a independência necessária para se isolar e escrever – e nessa carta ela resume com belas imagens a dor e a delícia dessa solitude particular.

PARA SUSAN GILBERT (DICKINSON), 11 JUNHO 1852
Eu tenho somente um pensamento, Susie, nessa tarde de junho, que é você, e apenas uma prece; querida Susie, que é para você. Que eu e você de mãos dadas, como é com o coração, perambulamos por aí feito crianças, por entre bosques e campos, e nos esquecemos desses anos todos, e dessas preocupações tristes, e nos tornamos crianças de novo – quem dera assim fosse, Susie, e quando olho ao meu redor e me encontro sozinha, suspiro por você outra vez; um suspiro curto, suspiro em vão que não vai lhe trazer para casa.

Preciso de você mais e mais, e o mundo imenso se torna mais vasto, e entes queridos se tornam mais raros, a cada dia que você continua fora – sinto falta do meu coração maior; o meu próprio vai vagueando por aí, e chama por Susie – os Amigos são queridos demais para se separarem; Oh são raros demais, e quão cedo eles se vão lá onde você não pode encontrá-los, não nos deixe esquecer dessas coisas, pois lembrá-las agora vai nos salvar de muita angústia quando for tarde demais para amá-los! Susie, me perdoe, Querida, por cada palavra que digo – meu coração está repleto de você, há apenas você em meus pensamentos, no entanto quando procuro lhe dizer algo que não vale o mundo todo, as palavras me faltam. Se você estivesse aqui – e Oh se você estivesse, minha Susie, não precisaríamos dizer nada, nossos olhos iriam sussurrar por nós, e sua mão firme na minha, não recorreríamos à linguagem – tento lhe trazer para perto, eu persigo as semanas afora até que elas tenham partido, e imagino sua chegada, e estou a caminho pela trilha verde para lhe encontrar, e meu coração a tamanho galope que terei problemas para trazê-lo de volta, e o ensino a ser paciente, até que a Querida Susie chegue. Três semanas – não podem durar para sempre, pois com certeza elas precisam partir com seus irmãozinhos e irmãzinhas de volta a seu lar distante no oeste!

Devo ficar cada vez mais impaciente até que esse lindo Dia chegue, pois até agora, eu apenas estive de luto por você; agora começo a esperar por você.

Querida Susie, eu me esforcei para pensar em algo que você iria adorar, em algo para lhe mandar – e no fim das contas vi minhas pequenas Violetas, elas me imploraram para que as deixasse partir, então aqui estão – e junto delas como Instrutor um pouco do gramado cavalheiro, que também implorou pelo favor de acompanhá-las – elas são apenas pequenas, Susie, e temo que sem perfume agora, mas elas vão lhe falar de corações acalentados em casa, e de algo leal que “nunca dorme ou dormita” – coloque-as sob o travesseiro, Susie, elas vão lhe fazer sonhar com céus azuis, e sua casa, e o “país abençoado”! Você e eu vamos nos encontrar com “Edward” e “Ellen Middleton”, em algum momento quando chegar em casa, e vamos descobrir se certas coisas a esse respeito são verdadeiras, e, caso sejam, o que é que nos aguarda!

Agora, até logo, Susie, e Vinnie lhe manda seu amor, e mãe o dela, e eu acrescento um beijo, timidamente, a menos que alguém esteja aí! Não deixe que vejam, certo, Susie?

Emilie

Por que eu não posso ser uma Delegada na grande Convenção do Whig? – eu não sei tudo sobre Daniel Webster, e a Tarifa, e a Lei? Assim, Susie, eu poderia lhe ver, durante uma pausa na sessão – mas eu não gosto nem um pouco desse país, não devo ficar mais aqui! Delenda est os Estados Unidos, Massachusetts e tudo mais! 

abra-me com cuidado 

Excerto de uma carta da poeta norte-americana para
W. Austin Dickinson. Imagem: Acervo Armherst College
Digital Collections/Reprodução

27 NOVEMBRO – 3 DEZEMBRO 1854
Susie – é pouca coisa dizer o quanto se sente só – qualquer um pode fazê-lo, mas usar a solidão junto ao peito por semanas, quando você dorme, e quando você acorda, sempre faltando algo, isso, nem todos podem dizer, e me desconcerta. Eu pintaria um retrato que provocaria lágrimas, se eu tivesse uma tela, e a cena seria – solitude e as figuras – solitude – e luzes e sombras, uma solitude cada. Eu encheria um cômodo com paisagens tão solitárias, que os homens iriam parar e chorar ali; e então correriam com gratidão para casa, de volta a um ente querido. Hoje está sendo um dia bonito, bem quieto e azul. Hoje à noite, as crianças coradas estão brincando no Oeste e amanhã vai fazer mais frio. Em tudo enumero você. Quero pensar em você a cada hora do meu dia. O que você está dizendo – fazendo – quero caminhar com você, enquanto vemos o que não foi visto. Você diz que caminha e costura sozinha. Eu caminho e costuro sozinha. Não vejo muito a Vinnie – ela está sempre tirando pó das escadas!

Nós saímos muito pouco – uma ou duas vezes por mês, zarpamos em sedas – paramos nos pontos principais, e então aportamos de novo – Vinnie navega para fazer transações comerciais, mas chegar à ancoragem é o máximo que consigo fazer. O Sr. e a Sra. Dwight são um raio de sol para mim, que noite alguma apaga, e sigo com minhas jornadas semanais até lá, para a revolta de Austin e a raiva de minha irmã. Eu o ouvi dizer “chamas de perseguição” – acho que me queimaram!

Eles são doces e amáveis, e uma coisa, querida Susie, sempre perguntam por você.

Tarde de domingo. Eu a deixei por um bom tempo, Susie, isto é, em caneta e tinta – meu coração prosseguiu. Fui chamada lá embaixo para entreter alguma visita – dei o ar da graça pesarosa, eu temo, e creio que agi assim. Há um alto – pálido temporal de neve correndo pelos campos, e se inclinando à minha janela – não vou deixar esse sujeito entrar! Estive na igreja o dia todo com um segundo vestido e botas. Tivemos dois sermões tão preciosos do Sr Dwight. Um sobre descrença, outro sobre Esaú. Sermões sobre descrença me atraem desde sempre. A Ação de Graças foi celebrada por todo o estado na semana passada! Acredite, comemos um peru e dois tipos de torta. Fora isso, nada mudou. Pai foi à noite de Ação de Graças. Austin vai amanhã, a não ser que a tempestade o impeça. Ele vai lhe ver, Querida! Algo que não posso. Ah se pudesse! Nós não fomos à “noitada” de Ação de Graças – devido à nossa tristeza pela partida do pai. Sua irmã lhe dará detalhes. Abby está muito melhor – andou a cavalo todos os dias até que a neve chegou, e agora sai à rua que nem outras meninas – Abby parece mais gentil, mais afetuosa, do que antes. Erne Kellog deseja ter notícias de você. Eu dei a ela seu recado, e lhe dou o dela igualmente. Erne continua com Henry, embora nenhum vínculo externo ainda os tenha unido. Edward Hitchcock, e o bebê, e Mary passaram a Ação de Graças aqui. Eu convidei Mary e ela gentilmente apareceu e o bebê está fazendo bem a ela. Mary perguntou por você com bastante ternura e queria lhe mandar seu amor quando eu escrevesse. Susie – se fosse você – bem – bem! Devo parar, Irmã. As coisas seguiram, e continuam seguindo. “Criancinhas, amem umas às outras.” Nem toda vida é pra viver, nem toda morte é pra morrer.

Susie – nós todos lhe amamos – Mãe –Vinnie – eu. Tanto! Sua irmã Harriet é nossa amiga mais íntima. Na última noite do turno, John lhe mandou seu amor. Não tenho notícias de Mat há meses. “Dizem que a ausência conquista”. Ela me arrasou. Mãe e Vinnie mandam seu amor. Austin levará o dele.

JÚLIA CÔRTES RODRIGUES, leitora, professora e tradutora. É mestra em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cursa doutorado na mesma instituição. Publicou A terra devastada, sua tradução do poema de The Waste Land, de T. S. Eliot, pela Lumme, em 2017. Desde 2016, alimenta o blog de tradução literária Conversa entre ruínas. Contribui regularmente para a revista Mallarmargens e apresenta o Poemo Podcast. 

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