Perfil

Matheus Nachtergaele e o cinema pernambucano

É significativa a presença do ator paulistano na filmografia pernambucana

TEXTO Bruno Albertim

02 de Outubro de 2020

Monólogo-oração 'Processo de conscerto do desejo', dramaturgia criada a partir de textos deixados pela mãe do ator

Monólogo-oração 'Processo de conscerto do desejo', dramaturgia criada a partir de textos deixados pela mãe do ator

Foto Fábio Seixo/Agência O Globo

[conteúdo na íntegra | ed. 238 | outubro de 2020]

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No comecinho dos anos 2000, o paulistano Matheus Nachtergaele já era um novo Macunaíma brasileiro. O sucesso de seu anti-herói João Grilo na série televisiva O auto da Compadecida – dirigida por Guel Arraes, baseada na peça de Ariano Suassuna – abria-lhe as portas da popularidade nacional, quando aceitou o convite para apresentar, ao lado da colega Ingra Liberato, uma edição do Cine Ceará. A chamada “retomada do cinema brasileiro” nem entrava ainda na puberdade, quando, ali, do meio daquele grupo de jovens cineastas, atores e produtores ansiosos pelo cinema como projeto de país, descobriu aos gritos um já nem tão jovem caruaruense de rosto anguloso, frases luminosas e riso no canto da boca.

Ainda um boêmio aguerrido, depois de cada sessão dos filmes feitos por parte daquela audiência, Matheus se danava a flanar pelos bares de Fortaleza na companhia de Cláudio Assis. “Eu comecei a surtar na plateia, lembro de Ingra assustada, e Matheus ficou encantado com meus gritos”, lembra o próprio Cláudio. “Bebíamos até de manhã, depois eu ia descansar para apresentar as sessões da noite. Acho que ele continuava", ri Matheus. "A gente falava de futuro e de cinema até não mais poder.”

Numa dessas noitadas, Matheus percebeu algo mais aceso no novo amigo. “Eu achei o Cláudio um homem bom. É difícil de traduzir: um homem vocacionado. Sincericida, um pouco suicida até”, conta. “O que eu também era naquela época, um típico artista romântico, com uma certa vontade de morrer e me eternizar.”

Diante da cerveja já morna, Cláudio lhe fez o convite. Queria Matheus em seu primeiro longa. “Ali, fechamos o pacto de fazer o filme”, lembra o ator. Pouco tempo depois, ele estaria num set do Recife para dar corpo ao cozinheiro Dunga do hotel onde gravitam os personagens de Amarelo manga. Matheus faria o papel “bicha-quer-bicha-faz” que pertencera ao humorista Jeison Wallace no curta Texas Hotel, o embrião do longa.

Com o filme, Cláudio ganharia, dentre outros, o prêmio de melhor diretor da Associação Paulista de Críticos de Artes (APC). Era 2002. No ano seguinte, Nachtergaele voltaria ao mesmo Cine Ceará do primeiro encontro para receber o prêmio de melhor ator por Amarelo manga. Agora, quase duas décadas depois, numa pré-estreia online de Piedade, Matheus pôde ser visto como um executivo de pele branca, avermelhada de sol e homossexualidade disfarçada sob o terno. No roteiro, o apetite do ultracapitalismo sobre uma comunidade caiçara inspirada no drama nada fictício do Complexo Industrial do Porto de Suape.

Com estreia em salas físicas prevista para depois do isolamento social decorrente da pandemia, Piedade é o sétimo longa de Assis, também o sétimo filme do diretor em que Nachtergaele atua. Aos 51 anos, mais de 25 filmes no currículo, o ator – que fora aconselhado a desistir da profissão por Antunes Filho – tem agora a percepção da afinidade profunda que se estabelece entre ele, o diretor e o cinema produzido em Pernambuco, algo que não era mais que uma intuição naqueles primeiros goles.

Aquele encontro mudaria não apenas o rumo das carreiras iniciantes de ambos, mas o do cinema pernambucano, revelado então como um dos mais consistentemente autorais do país.  “O cinema pernambucano é o representante mais forte do que seria esse novo potente cinema brasileiro. Paulo José diz que o Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo, mas filme europeu e americano, o Brasil faz mal”, ri. “E esse cinema é hoje o que é feito em Pernambuco: filmes de queixa e presságio”, diz Matheus, num dos momentos de uma conversa por videochamada para a realização deste perfil para a Continente, a partir de sua casa no Rio de Janeiro.

 “Agora, ao entender como participei ativamente dessa retomada, percebo como sou um coautor desse cinema”, diz Matheus, com uma voz mais temperada pela constatação do que por qualquer heroísmo tardio. “Nossa química se dá muito fortemente. Eu sugiro uma ideia, ele já vem com outra ideia. O que eu busco, ele traz antes mesmo que eu diga completamente”, concorda Assis. “E é claro que ele é o coautor de todos os filmes. Aliás, não só ele. Até o cara que carrega as malas tem que se sentir dono dos filmes, ou não funciona”, diz o diretor caruaruense, que tentou ser economista, jornalista, ator e tornou-se diretor ao constatar que “não serviria para nada” disso.  “Descobri que só funcionaria na vida fazendo o meu cinema: sério, honesto e vagabundo pra caralho.”

Nessa relação simbiótica com Assis, Nachtergaele aprofundava uma percepção surgida ainda ao vestir de comicidade Malazartes, o João Grilo do Auto da Compadecida: a de que seu talento deveria se expandir em busca de uma brasilidade possível e quase sempre negligenciada. Isso, amparado no fato de que o cinema deflagrado a partir de Pernambuco não é apenas um conjunto de narrativas, mas um projeto identitário.


Ao lado de Selton Mello em O Auto da Compadecida, direção de Guel Arraes. Foto: Divulgação

“Esse cinema tem esse projeto. Não é só um retrato, é também uma construção – e um pedido. A brasilidade, esse conceito móvel e em feitura, que se eu definisse numa frase a aprisionaria, está como motivador da ação”, diz ele, sobre um cinema que ainda se faz na consciência da guerrilha. “A sanha da indústria vai se fazendo também nesse tatear bonito sobre o que nos move e sobre a necessidade de ocupar as salas, sobreviver num mundo de mercado. De constatar que artistas, músicos, cineastas e atores – como Lima Duarte ou Flávio Migliaccio – que buscam construir essa brasilidade foram, com raríssimas exceções, pouquíssimo vistos nos cinemas”, ele diz. “Há um desejo do Brasil em saborear sua brasilidade, mas algo ainda nos cerca e nos impede: o ultracapitalismo, o narcomilicianismo pentecostal. Isso vinha sendo construído sem que tivéssemos percebido.”

ATOR À REVELIA
Filho do engenheiro e músico Jean Pierre Henri Leon François Nachtergaele e da poetisa Maria Cecilia Nachtergaele, Matheus entrou na faculdade de Artes Visuais aos 17 anos. Ao descobrir o paulistano Centro de Pesquisas Teatrais – CPT, abandonou o curso e se deixou magnetizar pela catequese do ultradisciplinado Antunes Filho, diretor que morreu ano passado.

Depois de um ano de ensaios da peça Paraíso Zona Norte, uma compilação de dois textos de Nelson Rodrigues (A falecida e Os sete gatinhos), Antunes afastou o Matheus do elenco a menos de 10 dias da estreia em São Paulo. “Ele disse que eu não tinha a menor vocação para ser ator”, lembra ele, não sem uma certa candura.

Matheus foi, então, afogar as mágoas do outro lado do Atlântico. Juntou as economias e se danou com um amigo a cantar música brasileira, a Madalena de Ivan Lins puxando coros bêbados pelas noites de cidades europeias. Quando o repertório e o projeto de autoexílio se esgotaram, voltou para São Paulo. Ignorou Antunes e prestou vestibular para a Escola de Artes Dramáticas (ECA) da Universidade de São Paulo. Não concluiu o curso.

Fez do grupo de Teatro da Vertigem sua nova escola. Estreou como o Satanás de Paraíso perdido, peça baseada no poema de John Milton e encenada numa igreja. No espetáculo seguinte,  atuaria num sanatório.  Não raro, o público saía com sintomas de pânico das sessões de O livro de Jó, peça que, além de muitas dores musculares, lhe rendeu os prêmios Shell, Mambembe e da APCA pela atuação, nu e coberto de sangue, do papel-título.

Além dessas experiências, tinha também as participações em Central do Brasil, de Walter Salles, e Kenoma, de Eliane Caffé, ao encontrar Guel Arraes num camarim de Marco Nanini. “Eu tinha ido cumprimentar o Nanini depois de uma sessão de O burguês ridículo, dirigido pelo Guel”, lembra. “Ele me disse que estava com um projeto e me convidou. Perguntou se eu já tinha lido o Auto da Compadecida. Na hora, não tive coragem de dizer que não tinha lido o livro. Mas o tinha em casa e, quando fui ler, percebi o tamanho da encrenca.” 

Naquelas páginas, Matheus se viu diante de um vaticínio: “Encontrei esse arquétipo, um típico homem nordestino sobrevivente aos poderes; talvez o arquétipo mais insistente seja esse anti-herói quixotesco, o arlequim desprovido de virtudes”. Com Guel, Matheus encontraria um novo panteão de arquétipos. Se, no Teatro da Vertigem, mergulhava no imaginário civilizatório e condicionante da cultura judaico-cristã, com a microssérie O auto da Compadecida, deparou-se com arquétipos das populações do Brasil. “Há alguma coisa que só o homem simples pode saber, e o (João) Grilo sabe.”

Pelo trabalho com Guel, Matheus entraria também para a TV. Não apenas com o sucesso estrondoso d’A Compadecida, mas em projetos por ele supervisionados: entre outras, as sitcoms Comédia da vida privada, Brava gente brasileira e, mais recentemente, as séries Cine Holliúdy e Todas as mulheres do mundo

“Na TV, estou com Guel assim como, no cinema, estou com Cláudio.” Dois pernambucanos, dois caminhos distintos. “Em comum, eles têm só o fato de serem pernambucanos com grande amor ao Brasil. O Guel é um obsessivo metódico, e o Cláudio, um obsessivo dionisíaco.”

Do primeiro filme com Assis, Nachtergaele guarda a lembrança de um prenúncio. “Como o Bacurau de Kléber (Mendonça Filho e Juliano Dornelles), os filmes de Cláudio trazem um presságio. Revendo outro dia Amarelo manga, lembrei a tontura do Chico Diaz, quando seu personagem entra num templo evangélico. Ali, talvez tenha havido um presságio e não percebemos. Um anúncio dessa milícia narcopentecostal que viria.”

Como um etnógrafo que faz do corpo seu caderno de campo, Matheus intuía que, a partir daquele encontro, abriam-se portas para investigar identidades subnotificadas. “Ali, eu tive a percepção muito clara.”

De Amarelo manga em diante, Matheus teria em si uma série de sujeitos que, grosso modo, são definidos como “homens do povo”. “A brasilidade é sempre algo em construção. Não seria possível defini-la tão rapidamente, sob o risco de perdê-la. O que percebo, e que continuarei fazendo, é ser um dos construtores dessa brasilidade. Como Lima Barreto, Caymmi, Machado de Assis, Mazzaropi, Grande Otelo e Suassuna foram construtores de brasilidades.”

Numa observação de convergências nessa trajetória, concluímos: não haveria o Cláudio Assis diretor de cinema que conhecemos sem Matheus Nachtergaele. Nem o Nachtergaele ator que conhecemos sem Cláudio Assis. Em Baixio das bestas (2006), Matheus faria um violento organizador de orgias numa Zona da Mata de Pernambuco em que a escravização sexual de meninas é uma realidade trágica.

Quando Cláudio se preparava para filmar Febre do rato, uma fábula sobre um dos alter egos do próprio diretor – Zito, um poeta anarquista e marginal –, hospedado num hotel em Olinda para as filmagens marcadas para poucos dias depois, Matheus anunciou que não mais interpretaria o protagonista. “Entendi que não poderia ser aquele homem.” O ator diz ter tido um acesso súbito de maturidade. Percebia que, estando um pouco mais fora do filme, estaria mais dentro dele. Insistiu que o papel do poeta Zizo deveria ser do então novato Irandhir Santos.


Parceria com Cláudio Assis: Matheus atua em sete longas
dirigidos por ele. Foto: Cristina Granato/Divulgação

“De última hora, o chamado para ser o poeta – que era o próprio Cláudio Assis – me pareceu muito mais afetivo do que consciente. Eu achava que Irandhir estava com a energia certa para o personagem, firmando-se como ator pernambucano. Não era tão íntimo do Cláudio, ainda, para ser seu alter ego. Mas resolvi me arriscar a perder o personagem.” Não sem algum susto, Irandhir recebeu o roteiro com as rubricas sobre a personagem das mãos de Matheus. “O próprio Irandhir lembra disso com vivacidade, tinha a ver com o fato de que ele – pernambucano, mais parecido fisicamente e se firmando no cinema nacional – tinha que ser o personagem.”

Com a produção quase febril, o planejamento foi refeito às pressas. “Ficou aquela coisa estranha, seria a primeira vez que eu não faria um filme. Reli o roteiro e disse que queria fazê-lo. Aí, pedi para fazer o Pazinho, que tinha sido escrito para um ator negro. Ele ia convidar o Antônio Pitanga.” Cláudio lembrou ao ator que se tratava de um personagem negro. Matheus insistiu: “Ele é o melhor amigo do poeta, como eu sou teu e vai ter essa história de amor por uma travesti”. “Foi um dos melhores personagens que fiz, apesar de não ser um protagonista. O Pazinho era um personagem calado, observador. Com ele, pude ver o filme como nunca tinha visto antes, ver o filme por dentro.”

Da negativa, veio a clareza: “Mais fora do filme, eu seria um coautor de cinema de Cláudio”. Ele se filiava a um modo de fazer cinema que, embora sob a assinatura do diretor, é essencialmente coletivista. “Não construímos esse cinema apenas através dos personagens, mas também através de como discutimos nosso cinema, conversamos sobre nossas vidas passo a passo. Os filmes são também frutos dos nossos encontros. Jamais assinaria como codiretor, sou feliz atuando. Mas ali pude acompanhar o trabalho do Irandhir em cena, o jogo entre Cláudio e Walter (Carvalho, diretor de fotografia), o trabalho genial da Renata Pinheiro como diretora de arte. Pude sentir muito mais. Hilton Lacerda como roteirista. Todos os poemas do Zizo foram escritos pelo Hilton.”

Matheus constatou: “Se eu tivesse que revelar uma característica do Cláudio é o fato de que ele tem uma admiração profunda por cada pessoa da equipe, apesar do jeito até meio turrão, meio tosco”.

COMO DIRETOR
Quando Matheus sentiu-se impelido a dirigir seu primeiro longa-metragem, levou consigo a trupe pernambucana conhecida nos sets de Claudão. Rodado numa cidade ribeirinha amazônica, A festa da menina morta (2008) traz suas impressões sobre a peregrinação anual de romeiros pelas bênçãos de uma defunta infanta que fala pela boca de um jovem beato.

“Havia a insistência nos atores de origem local, como a Dira Paes, ou o pajé pajaguara e o caboclo que dança break, que é um caboclo do Rio Negro.  E tinha Hilton comigo no roteiro. Renata  fazendo a arte, com Karen Araújo e Ananias Caldas. Tinha muita gente desse cinema brasileiro mais vivo que mora em Pernambuco, assim como tinha representantes de São Paulo, como a Kitty Fel, minha assistente de direção.”  Em síntese, diz o ator sobre sua incursão na direção: “Me pareceu bonito ter isso com as pessoas com quem eu fazia os filmes frequentemente, de levar uma parte delas para a Amazônia. Para também ir nos tateando até lá”.

No set de Amarelo manga, Matheus havia conhecido uma atriz negra, madura, de origem sertaneja. Fazia a moradora do fictício Texas Hotel, masturbando-se com o nebulizador enquanto os demais hóspedes pranteavam a morte do dono do estabelecimento. Era Conceição Camarotti. “Algumas das pessoas que mais aprendi a amar no mundo estão em Pernambuco. Conceição é uma delas, uma grande amiga de vida, de arte e de intimidades profundas.” Alguém capaz de corporificar esse Brasil por ele investigado. “A gente fica tentando definir o que é uma brasilidade, e ela vive na Conceição, por exemplo. Essa cabocla que, com alegria, vive num Brasil terrível, a menina que fugiu com o circo, que acaba se casando com um branco, produtor de hegemonias.”

Para Conceição, Matheus reservou, com a delicadeza de um relicário, um papel no seu A festa da menina morta. “No filme, me dediquei muito para que ela mostrasse seu grande trabalho como atriz. Foi muito essa a minha função como diretor, fazer todo mundo dar um passo junto”, conta. Depois da estreia na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, a Conceição que pouco saíra de Pernambuco correu o mundo em festivais, premiações e teses.


Cena do filme Baixio das bestas (2006). Foto: Gilvan Barreto/Divulgação


Filme Big Jato (2016). Foto: Asley Ravel/Divulgação

OUTRAS DIREÇÕES
Se preferiu menos protagonismo na Febre do rato, Nachtergaele dobraria sua presença no filme inspirado no romance autobiográfico de Xico Sá, Big jato (2016), em que assume dois papéis. Trocava de roupa e maquiagem para interpretar o Tio Nelson boêmio e seu irmão, cujo trabalho era esvaziar fossas pelo Sertão.

A ideia da produtora Camila Valença era um ator para cada personagem. Rodado em três semanas, o orçamento apertado do filme começou a inviabilizar a escalação. “A produção conseguiu desenhar de maneira que eu fizesse todo o tio Nelson num dia e, depois, o velho. Só no último dia, uma cena de puteiro”, diz Matheus, indicando os caminhos para a distinção entre os dois personagens. “Esse é um filme pouquíssimo visto e extremamente gostado por quem viu. Quando ele for para a TV aberta, não tem quem segure ele, é um filme delicioso.”

Da convivência com pernambucanos, Matheus foi construindo relações para além dos sets de Cláudio. O ator já tinha ficado bem-impressionado com as escolhas arriscadas de Jura Capela em seu musical heterodoxo Jardim Atlântico (2012), quando percebeu que o diretor, vez ou outra, o rondava. Jura lhe contou que pretendia adaptar A serpente, de Nelson Rodrigues. Meio surpreso, o diretor ouviria de Matheus: “Você não vai me chamar?”.

“Talvez por timidez ou insegurança, ele não fez o convite”, diz o ator. Construíram o filme juntos, Matheus empolgado por ser um texto de Nelson Rodrigues. “Acho que é um puta trabalho de ator meu. Um personagem para o qual eu provavelmente não seria recrutado, se não fosse pelo Jura, um personagem testosterônico rodriguiano. Pelo lugar-comum em que se dão as escalações, dificilmente um diretor carioca me escalaria.”

Para Jura, importava menos o biotipo que as musculaturas internas do intérprete: “Queria um filme com poucos atores, poucos cenários. E vi que Nelson escrevia já como quem monta um filme. Tinha que ser alguém que tivesse um pleno conhecimento disso, Matheus iria me dar esse argumento de cena”.

Primeiro texto de teatro esboçado por Nelson Rodrigues e, curiosamente, o último a ser publicado, A serpente traz as obsessões que fariam do autor um Dostoiévski da língua portuguesa: o escrutínio minucioso da ambiguidade humana, o diagnóstico das paixões violentas rompendo a rigidez de convenções, a evidência de hipocrisias em moto-contínuo.

Jura faria um filme verborragicamente teatral em branco e preto sobre a tragédia cotidiana de duas irmãs casadas no mesmo dia. Como uma não conseguisse consumar o casamento, outra resolve lhe ceder o marido. Por sugestão de Matheus, Jura convidou a atriz que, segundo o próprio Nelson, melhor corporificava seus textos. Lucélia Santos interpretou as duas irmãs.

Foi um encontro tardio e muito esperado. “A Lucélia é bem responsável por eu ser ator. Muito jovem, tinha me apaixonado por ela, a quem ia ver sempre no cinema com meu pai. E ela acabou sendo responsável pelas poucas vezes em que eu fiquei sozinho com meu pai na vida”, diz Matheus. Do filme, ambos saíram com um desejo. “Quero ainda fazer um Nelson no teatro com Lucélia”, conta Matheus.

Matheus passou o carnaval de 2019 em Pernambuco, novamente por conta do cinema. Em Caruaru, interpretava o protagonista de Carro-rei, filme inédito de Renata Pinheiro. “Matheus corporificou esse cinema de um Brasil profundo. Como somos a periferia, temos um contato mais direto com esse Brasil. A gente não utiliza uma forma midiática mais palatável. Ele tem esse interesse, ele é a corporificação disso. Tanto que, quando partiu para fazer seu primeiro filme, foi no coração da Amazônia. No Alto Rio Negro”, pontua a diretora.

Das filmagens, Matheus saiu com uma fé renovada – “Ali percebi que o que gosto mesmo é de ser ator” – e encantado com a diretora. “Um dos defeitos de que o cinema pernambucano pode ser acusado é de um leve machismo. E a Renata está levantando um bastião bonito. Quando eu a conheci, era uma artista plástica talentosíssima, já aprendendo direção de arte. Renata é uma barroca-tropicalista e ao mesmo tempo cyber, uma mulher moderna e também do Brasil profundo”.


Cena de A Febre do Rato (2011). Foto: Daniela Nader/Divulgação

O TEATRO COMO ORAÇÃO
Matheus foi criado pelos avós. Cresceu acreditando que a mãe havia morrido no seu parto. Aos 16 anos, seu pai o chamou para uma conversa. Jean Pierre sentia já segurança para a revelação. Sua mãe se matara aos 22 anos, quando Matheus tinha apenas três meses de idade. “A ausência dela foi apenas um dos aspectos fundamentais da minha gênese. Cresci marcado pela presença da morte”, diz.

Naquele encontro, Matheus recebeu do pai uma pasta com 30 poemas datilografados pela poetisa Maria Cecília Nachtergaele. Em 2016, ele começaria a rodar o Brasil com o monólogo-oração Processo de conscerto do desejo, a dramaturgia costurada a partir dos escritos maternos. É esse o lugar onde mais quer estar a partir de agora. “Pretendo muito ainda fazer essa gira com os poemas da mamãe”, diz ele, que já esteve com o espetáculo por três vezes em Pernambuco. Depois do filme com Renata Pinheiro, diz ter saído com mais vontade de fazer teatro.

“Não me desinteressei em absoluto pelo cinema, mas voltei a me interessar pela cerimônia do teatro. Então, diminuí um pouco a quantidade de filmes. Sempre fiz pelo menos dois ou mais filmes por ano. Eu estou gostando da ideia de entrar na reta possível da sabedoria junto com as pessoas nos teatros. Ocupar esse espaço, sou um ator bom para isso”, ri. “Vai além da minha vontade: a pessoa é para o que nasce. É onde eu estou mais útil.”

Pelo teatro, diz ele, abandonou há quase 10 anos a proverbial boemia. “Quero utilizar meu corpo, quero me cuidar para isso, parei com tudo para continuar sendo ator. Foi uma decisão muito vocacionada entre um romantismo inútil e uma atividade mais concretamente poética. Eu estava muito poeta nas mesas de bar e muito cansado na hora de atuar. E, aí, reverti esse jogo.”

Seu teatro, à sua maneira, se estabelece como oração. “Eu pretendo que o teatro seja não apenas o teatro que faço com meus pares, mas que, aos poucos, ele ocupe o lugar da prece libertadora; que, aos poucos, ele substitua as religiões moralistas, é um trabalho de formiguinha. Desde O livro de Jó, pretendo que ele substitua essas religiões mortas, que seja um ato de fé totalmente lúcido, sem dogmas, que seja o lugar da aceitação da pergunta, em vez da afirmação de mentiras tranquilizadoras.” 

Com a deflagração da pandemia do novo coronavírus, Matheus tinha passagens marcadas para o Recife. Viria com Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas e quase 20 atores para uma temporada da vertiginosa e biográfica comédia Molière. “Nossa imensa vontade é retomar as apresentações, mas não sabemos quando será possível. Não penso em abandonar o Brasil e ficar de fora dando entrevistas corajosas. Quero botar a mão na massa.”

Dentre os projetos ainda em fase de desejo, está um novo monólogo. “Está surgindo um novo texto, uma resposta ao que nos aconteceu, não só com a peste, mas a destruição do sonho. O teatro tem uma oração tesuda, a liberdade e o tesão do livre pensamento”, diz ele.

“A religião é uma invenção, o mundo não é por si só místico, o que é místico é também uma invenção. Assim como um pai de santo vai jurar que ficou possuído, posso jurar que eu fico possuído pela Maria Cecília, mas tanto eu quanto ele sabemos que há algo de muito bonito e inventado em prol da catarse.”

Outro dos projetos de Matheus Nachtergaele é percorrer o país com A onça, os guinés e os cachorros, conto orquestral com texto de Ariano Suassuna e música assinada pelos maestros Clóvis Pereira e Cussy de Almeida, interpretado pela Orquestra Sinfônica Brasileira e narrado por ele. “Fizemos algumas apresentações no Rio ano passado e queremos conseguir um edital para circulação.”

PIEDADE, ATÉ AQUI
Com o isolamento social, Piedade acabou tendo uma inesperada recompensa. “Em três dias, as sessões online fizeram um público bem maior do que teríamos em alguns meses em salas convencionais”, diz o ator. Mas o desejo agora da equipe é de ver o primeiro longa de Assis com Fernanda Montenegro nas grandes telas para as quais foi feito. Foi Nachtergaele, aliás, o responsável pela presença da atriz (com quem já encenara um Tchecov no teatro), no filme.

Cláudio tateava ainda a escolha da atriz para a personagem quando Matheus lhe fez a sugestão. “Ele estava inseguro, achava que ela poderia não topar porque ele é muito cafuçu. Quando a convidei, Fernandona disse: ‘Obrigado por ter me feito esse convite, fiz filmes lindos sobre a realidade do Brasil, mas sempre por homens brancos, ricos, maravilhosos, mas agora estou fazendo um filme brasileiro com um brasileiro’”.


O filme Piedade (2019), no qual Matheus contracena com Cauã Reymond. Foto: Suzanna Tiere/Divulgação

“No Piedade”, diz Matheus, “pela primeira vez, faço um personagem que vem de outro mundo, um gay de armário, que nega suas brasilidades”. Ao lado da determinação de se dedicar ao teatro dos pequenos gestos vem também o desejo de estar de novo num set com Claudão. “Tenho o projeto sobre um filme de uma cidade de anões que se recusam a crescer diante do projeto de uma empresa americana de lhes fazer crescer por meio de um tratamento. E Matheus já disse que quer estar nele. Ainda não sei como vou fazer para filmá-lo como um anão. Mas vou”, afirmou Cláudio, deixando escapar uma risada.

“Existem algumas características no cinema do Cláudio que são lindas e eternas. Uma delas é o respeito muito grande pela beleza do ofício do ator”, comenta ainda Matheus Nachtergaele, para quem filmar é, também, rezar uma outra e mesma oração. “Tenho descoberto que a vida só começa depois do terceiro sinal. Atuando é quando me sinto vivo.”

BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana).


Extras:

'Piedade', de Cláudio Assis
Entrevista concedida por Matheus Nachtergaele durante a nossa cobertura do 52º Festival de Brasília. O texto, assinado por Luciana Veras, fala sobre Piedade, longa assinado por Claudio Assis.

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