Reportagem

Podem as poetas e poetisas do Sertão falar?

Um encontro com a poesia contemporânea de mulheres do Sertão do Pajeú

TEXTO JULYA VASCONCELOS 
ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS

02 de Outubro de 2020

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra | ed. 238 | setembro de 2020]

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Uma mulher sobe ao palco de óculos escuros e boné. Acompanhando-a, dois músicos mascarados como figuras tradicionais do carnaval de Triunfo, cidade do alto Sertão do Pajeú de Pernambuco, tocam nos sintetizadores e teclados. Ela balança o corpo sob uma base eletrônica e diz os versos de uma canção que flerta com o rap, o repente, a música eletrônica e a embolada. O som carregado de poesia da triunfense Jéssica Caitano, nascida no quilombo do Alto da Boa Vista, vem conquistando cada vez mais espaço na cena musical contemporânea.

Poeta, rapper, coquista, percussionista, militante LGBTQ+ e declamadora, Jéssica encarna a ponta da lança de uma renovação instigante da ancestral poesia pajeuzeira pelas mãos, sobretudo, das suas mulheres poetas – ou , como a maioria delas prefere ser chamada: Jéssica, Isabelly, Francisca, Elenilda, Bia, Anaíra, Odília, Carla, Thaynnara, Monique, Mariana, Dayane, Erivoneide, Andreia, Izabela, Clarissa, Ana Luiza, Milene: a lista é longa e não termina aqui. Na realidade, nem começa aqui.

Começa em Severina Branca, Mocinha de Passira, Celeste Vidal, Clene Valadares, Luzia Batista, Dulce Lima, Rafaelzinha. Mulheres que abriram, na marra, espaço entre as violas e os versos dos homens. A poesia do Sertão, majoritariamente masculina e escanteada pelos centros urbanos e pelas instituições, sob a etiqueta subalternizante de “poesia popular”, vem se impondo através de um grupo bastante heterogêneo de mulheres, mas que se fortalecem mutuamente dentro dessa cena, unindo sem conflitos a tradição, as influências contemporâneas, a performance, a rima, a oralidade e a força de uma poesia amolada durante séculos.

A performance de Jéssica é instigante. Ao mesmo tempo em que lembra o gestual do rap e toda sua carga urbana, revela, na impostação da sua voz e na construção rítmica, a herança emboladora e repentista do Sertão. A musicalidade impregnada na poesia do Pajeú é inconfundível. Ela canta:

“(...) Eu sou a Marcha das Vadias/ eu sou a luta e o protesto/ sou Laudelina Melo, sou Rosemari, eu sou Pagu/ sou Carlota de Queirós, Nísia Floresta, Mãe Calu/ Eu sou o corpo nu/ tô ocupando meu espaço/ sou Maria Joaquina/ venho de Tejucupapo/ eu sou dos mei dos mato/ sou da cidade, sou da lua/ sou a voz da faceiragem/ e de rolar no meio da rua/ minha rima é crua/ é modulada na frequência/ meu poema é inspirado/ na força da existência/ saca essa potência/ que nasce aqui do Pajeú/ segura a pisada, mana/ que eu vim pra dançar mais tu”.

A música Ragga do Sertão, que nasceu antes como um poema, ganhou os beats da banda Radiola Serra Alta. “Essa música era uma poesia que eu escrevi. E todas as minhas poesias, em algum momento, viram um flow, viram um coco, viram uma música, e continuam sendo também poesia”, explica a artista.

As contaminações entre música, palavra e performance não são novidade, nem no que diz respeito à gênese da poesia no mundo, muito menos no que tange à poesia produzida no sertão de Pernambuco, a qual, mesmo em suas versões escritas, carrega elementos que a colocam numa conjunção de ritmo, rima e uso de rígidas estruturas estróficas que imprimem uma intensa e característica musicalidade à palavra. Poesia dita e poesia escrita reanimam-se constantemente. Se isto, por um lado, pode soar rígido ou desgastado para alguns leitores de poesia contemporânea, por outro, traz à tona questões atuais relacionadas ao cânone, à memória, subalternização, diversidade e resistência cultural. E as poetas aqui mencionadas sabem muito bem onde estão pisando, de onde vieram e aonde querem chegar.

“É indispensável entender que qualquer tradição viva sempre está inserida em contextos socioculturais. Não é estática, é um processo, é dinâmica. Assim, a nossa poesia tradicional se mantém reconhecível enquanto tradição poética de memória longa porque é simultaneamente expressão poética do tempo presente”, pontua a escritora e pesquisadora Maria Alice Amorim. “Isso é símbolo de vitalidade, e sem isso essa tradição existiria apenas como expressão cultural do passado.”

TECNOLOGIA ANCESTRAL
A tradição poética do Sertão do Pajeú pernambucano – composto pelas cidades de Afogados da Ingazeira, Brejinho, Calumbi, Carnaíba, Flores, Iguaracy, Ingazeira, Itapetim, Quixaba, Santa Cruz da Baixa Verde, Santa Terezinha, São José do Egito, Serra Talhada, Solidão, Tabira, Triunfo e Tuparetama – nasce da cantoria de viola, que une a palavra em versos metrificados ao som do instrumento, criando embates de improviso poético oral.

Luna Vitrolira, poeta, pesquisadora da poética das vozes, e mestra em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com uma pesquisa sobre a identidade poética do Sertão do Pajeú, explica que há diversas possíveis origens para a tradição literária da região: “Aqui, a poesia se constrói muito através da cadência, desse lugar sonoro e musical. Isso tem, sim, relação com a própria origem da poesia na região. No entanto, na minha pesquisa, eu traço algumas diferentes versões dessa origem”.

Segundo ela, há a origem mística, associada ao mito de uma viola enterrada no leito do rio; a versão da família Nunes da Costa, de comerciantes e poetas imigrantes judeus, chegados ao Sertão fugidos da intolerância religiosa por serem cristãos novos, que seriam os primeiros cantadores de viola da região; e a do pesquisador Luis Soler, que identifica raízes árabes na cultura sertaneja, comparando os poetas glosadores aos beduínos do deserto.

No entanto, é ao apontar para um quarto caminho que a pesquisadora apresenta uma construção cultural mais complexa para a região: “Precisamos entender a questão para além da perspectiva eurocentrada, que nos coloca sempre como herdeiros da poesia provençal, trovadoresca”. Ela destaca a cosmovisão afroindígena. “Quando vamos estudar a oralidade a partir desse lugar das contribuições da formação étnica no Brasil, percebemos que é preciso entender que o ritmo faz parte da pulsação do próprio corpo, e que a música é um desdobramento natural da rítmica do nosso corpo.”

As danças circulares, o toré, o coco, a capoeira, a ciranda, os ditados populares, os pregões, os cantos de trabalho, todas essas manifestações, segundo a pesquisadora, têm uma estrutura poética de rima e de canto a partir da oralidade. E um ponto interessante é que, ao construir textos orais estruturados por sonoridade e rima, há o objetivo principal da facilitação do registro pela memória. Uma estratégia de memória e resistência, de perpetuação.

A pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Julia Almeida, se dedica ao tema da literatura e da subalternidade. Ela observa que muitas instituições, como “as academias de Letras, as universidades e as editoras fazem parte dessa ordem que se impõe sobre a produção literária, que tem como um dos princípios o privilégio da escrita em detrimento da oralidade”. “A escrita como um bem simbólico prestigiado tem sido a chave para a entrada nessa ordem literária. Produções cuja matriz é a oralidade têm uma importância imensa em termos de recontar a história do país e de suas gentes, inseridas em meios onde a oralidade é a energia primeira da sociabilidade, mas encontram as barreiras de acesso produzidas pela ideologia da supremacia ou primazia da escrita”, pontua.

A mesma Jéssica que escreve e canta os versos citados no início desta reportagem evoca as avós e outras mulheres como base maior de suas influências: “Minhas influências são primeiramente minha mãe, Vó Preta e Vovó Pastora. E também Mãe Calu, Olindina, todas mulheres aqui do alto Sertão do Pajeú, que tiveram vivências incríveis e compartilharam comigo. Selma do Coco, Aurinha, Lindalva do Pandeiro, Vó Mera, Zabé da Loca, Lia de Itamaracá, Mãe Beth de Oxum, Vovó Cambinda. Essas são minhas referências”. O que mais a inspira a escrever é “a vivência no mato, na roça, os ensinamentos que recebi dos meus avós sobre a terra, os cuidados, o plantio, a semente crioula e todas as experiências que pude guardar na memória”.

Vó Preta era benzedeira
Do povo de antigamente
Vovó Pastora parteira
Dizinbuxa muita gente
Mainha foi lavadeira
E eu vim nascer cantadeira
Dizinlinhando repente

O filósofo e escritor martinicano Édouard Glissant referiu-se ao pensamento “arquipélago” em contraposição a um pensamento “continente”. Explicava-o como sendo uma espécie de abertura entre ilhas. Abrir as ilhas seria uma condição de sobrevivência, ou seja: cuidar das raízes, alimentá-las, ao passo que se abre ao mundo, às praias e a territórios outros. A poesia de Jéssica e das suas companheiras do Pajeú é como uma poesia-arquipélago, que se fecha e se abre numa dança sábia de conservação de uma cultura aliada à experienciação do “caos-mundo”, como diria Glissant.


Ilustração: Karina Freitas

A POTÊNCIA DO ENCONTRO
“Não há nada mais contemporâneo do que respeitar o passado. E, veja, tem total diferença entre respeitar e morar no passado”, diz Isabelly Moreira, cordelista, poeta e declamadora nascida em São José do Egito. “Nós precisamos olhar para os nossos antepassados para entender o que somos hoje, como chegamos até aqui, o que pretendemos com a nossa poesia. E, mais importante do que fazer poesia, é saber ouvir a poesia. Eu acredito que um povo que não narra a própria história só vai poder se conhecer na terceira pessoa. E nós, aqui no Pajeú, aprendemos desde cedo a aplaudir os nossos, a ler os nossos, a abraçar os nossos poetas na rua. Já temos todo um drama estrutural do ponto de vista da economia criativa e esses assuntos correlatos. Nós já somos tão escanteados por fazermos essa literatura dita ‘popular’, que unir é também uma estratégia de existência”, pontua.

Na fala de Isabelly, uma das protagonistas dessa nova geração, há tantos caminhos pelos quais poderíamos passear, que é até difícil escolher por onde andar com ela a partir de agora. Ela fala do poder de construir uma narrativa própria, da importância do respeito e da construção de memória dos povos, dos problemas estruturais relacionados aos habitantes da periferia e do interior, e da inferiorização da cultura “popular”. Não à toa, a poetisa de 27 anos, nascida em São José do Egito, é sempre citada, tanto no que tange à sua importância como escritora, quanto no que diz respeito à sua força agregadora. Ela é uma das articuladoras e pensadoras da poesia contemporânea da região. Formada em Direito, é ela quem chama as manas para a dança, como no poema/rap/repente de Jéssica.

Segundo Luna Vitrolira, o Sertão do Pajeú foi historicamente invisibilizado, como todos os sertões, mas lá ocorre algo como uma desobediência epistêmica que é extremamente interessante: “Ele (o Pajeú) levanta sua identidade a partir da bandeira da poesia, conseguindo alguma visibilidade e espaço, muito embora não seja uma literatura reconhecida na academia e que ainda seja tachada como ‘popular’, sendo folclorizada em contraposição à literatura oficializada, canônica”.

Em sua pesquisa, Vitrolira observa que, apesar de tudo isso, aconteceu o desenvolvimento espontâneo de um sistema literário que ela chama de autárquico (em contraposição ao canônico), porque é independente e autônomo.

Sobre esse assunto, Maria Alice Amorim observa que “existem regras e paradigmas nas poéticas de tradição oral. E tais modelos são vivos e cambiantes, conforme a sua prática em contexto. Então, esses cânones não podem ser estabelecidos e/ou predefinidos de fora para dentro. São orgânicos e protagonizados por poetas que vivem tais práticas, que têm voz própria e não são subalternos. Os poetas são os protagonistas, cujos processos de criação artística são vivências que brotam de dentro para fora”.

A estratégia de existência e o não permitir ser narrada, mas narrar-se, tem eco no pensamento de Glissant, para quem os povos que irrompem na contemporaneidade constroem sua modernidade à força. Sendo que as artes e a literatura têm a função essencial “na propulsão do imaginário utópico de suas coletividades; do contrário, estas correm o risco de não se nomear, de calar sua voz, sua identidade e seu projeto criativo. A ameaça uniformizadora dentro da totalidade-terra: a emergência de pensar a diversidade dentro da confluência das culturas”, conforme escreve Enilce do Carmo Albergaria Rocha, no prefácio de Introdução a uma poética da diversidade.

“Eu tô no mesmo barco das outras poetisas da minha geração. E se nós estamos hoje podendo discutir sobre os enfrentamentos às dificuldades, inclusive de espaço, é porque muitas outras poetisas vieram antes de nós e enfrentaram esses mesmos problemas. Então, agregar uma poetisa que está surgindo não é só abraçar a literatura de alguém, mas é fortalecer a poesia do Pajeú. Nenhum grupo cresce fragmentado. É um ato artístico e político alargar esses caminhos, apoiando-nos umas às outras, e eu acredito muito nisso”, explica Isabelly Moreira, que também integra o grupo musical As Severinas, com as poetisas Monique D’Angelo e Marília Correia.

Ao mesmo tempo em que observa a importância política de manter-se conectada às raízes da poesia pajeuzeira, Isabelly alimenta a si e às poetas ao seu redor de um afiado discurso feminista, que contamina a prática do grupo e suas próprias poéticas. Estas são as duas primeiras estrofes de Cotidiana, poema devastador de Isabelly:

“Nós mulheres morremos todo dia/ Pelas mãos de maridos, namorados./ O jornal sanguinário anuncia:/ Mortes, mortas, destinos desgraçados./ Uma ossada encontrada num terreno;/ Um pulmão perfurado leva um dreno;/ Na cintura: uma faca dele, nela;/ Os sinais de defesa em cada mão,/ Ironia cruel da criação/ Quando a fêmea fratura uma costela// Justo nela? Do elo em criatura!/ Sim. O barro que faz é o que enterra/ E o homem que beija é o que tortura/ E que tenta explicar da vez que erra/ Joga a culpa pra ela e para o ciúme/ Culpar vítima aqui virou costume./ Sinto nojo da frase de um carrasco/ Que vomita jargão de um bem eterno/ E o que foi paraíso vira inferno/ Se a palavra do amor se torna asco”.

A poeta e feminista negra americana Audre Lorde, no ensaio A poesia não é um luxo (do livro Irmã outsider, traduzido em 2019 no Brasil pela Autêntica Editora), fala sobre a importância de ver a vida não apenas como um problema a ser resolvido, mas também de vê-la a partir das suas forças ocultas, da ancestralidade, da experiência e de uma visão não europeizada de mundo.

Ao defender o encorajamento das mulheres poetas, e alçando a poesia a um lugar de necessidade vital, Lorde diz que “devemos encorajar constantemente umas às outras a nos aventurar nas ações hereges que nossos sonhos sugerem e que são desmerecidas por tantas das nossas ideias antigas. Na linha de frente da nossa passagem à mudança existe apenas a poesia para aludir à possibilidade tornada real. Nossos poemas articulam as implicações de nós mesmas, aquilo que sentimos internamente e ousamos trazer à realidade (ou com o qual confirmamos nossa ação), nossos medos, nossas esperanças, nossos mais íntimos terrores”.

Para Lorde, para Moreira, para Caitano, para tantas mulheres poetas e poetisas, principalmente as que habitam as feridas do mundo pós-colonial e suas periferias, “a poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência”.

O VENTRE DA POESIA

Minha filha – nunca
o possessivo
soou
tão belo

(Clene Valadares)

“A poesia estava na vida, desde sempre, não apenas pelas raízes pajeuzeiras e as fortes tradições literárias sertanejas. Vim de um ventre de poeta, mainha trazia e transformava tudo em narrativa. Passou a vida contando histórias, suas, do mundo, políticas, curiosas... Com uma riqueza de detalhes, de maneira emocionante cheia de conexões, que, às vezes, parecia que não ia voltar pra história inicial. Ela me transmitiu essa consciência do ato criativo. Anotava as canções que me via cantar. Perguntava, ‘Ai, de quem é essa música?’. E quando eu dizia que não era de ninguém, que estava brincando, ela dizia, ‘que lindeza, Aí, você que está criando, né?’ – sutilmente trazendo à consciência a qualidade desse fazer”, conta a multiartista Anaíra Mahin, de São José do Egito.

Graduada em Ciências Sociais, com formação em Artes Cênicas e Plásticas, além ser arteterapeuta em formação, Anaíra é poeta, palhaça, compõe músicas, pinta. Não é fácil enquadrá-la, mas talvez seja mais fácil compreendê-la quando conhecemos a sua história com Clene, sua mãe. “Essa escrita libertária dela, e toda a experiência e narrativas que me deixou nessa vida, não tem como não ser. Desse modo também as influências dela me chegaram, sejam as da poesia popular, nas quais São Jose do Egito se fazia e se faz permear, mas também as referências mundiais, com o crivo do olhar feminista, africanista, ecológico, enfim, das bandeiras que ela empunhava. Referente a isso, fui me encontrando em algumas literaturas e me emociona muita coisa, principalmente as escritas por mulheres; mas têm muitos homens sabedores também, que chegam a arrancar esse choro transcendente. Tem muita gente boa viva e próxima, compondo, escrevendo, glosando, cantando.”

Segundo ela, sua mãe era uma personalidade excêntrica e artística, de certa forma malcompreendida pelas bandas do Pajeú, mas que circulava nas rodas dos poetas marginais do Recife. “Clene, tu és um E.T.”, recorda que alguém disse certa vez a sua mãe, que ria da história.

Maria Clenice Viana Valadares, nascida em 1946, foi poeta, professora, capoeirista, artista, ativista, membro-fundadora do PT em Pernambuco e integrante do movimento de Mulheres de Pernambuco, dentre outras atividades. Durante a ditadura militar, exilada, passou por 32 países. “Ela contava que, na ditadura, vivia mordendo os lábios, com medo de ser exposta. Tinha uma mecha branca no cabelo que contava que escondia, que cortava, que pintava para não ser reconhecida”, relata Anaíra.

“Ela era realmente a pessoa mais sabida que eu já conheci, falava um bocado de línguas. Lia vários livros ao mesmo tempo. Aqui em casa, já no fim da vida, leu um monte de livro que eu nunca tinha lido. Revisitou uns Jorge Amados, uns livros sobre Alexandre da Macedônia. Era muito leitora, escreveu comentários nos livros que lia. Os livros pelos quais ela passou ficaram marcados, porque ela deixava as opiniões escritas, não se continha, nada passava batido para ela”, rememora a filha.

Clene faleceu em 2019 antes que pudesse ver seu primeiro livro publicado, organizado por Anaíra e um grupo de amigas, que reviraram seus cadernos e papéis soltos em busca dos versos que foram ficando para trás. “Ela contava muito das andanças e da dimensão política dos exílios que viveu e a escrita dela traz isso. No entanto, por esse anonimato que entendia necessário e pelos fluxos geográficos, grande parte dessa obra se perdeu”, explica.

O projeto do livro ganhou recentemente um edital de fomento e deve sair em breve, sob o título de Sendo Maria também, que destino me convém?. “Numa abordagem não linear, separado por temas que tocam a autora, visualizamos o Sertão do Pajeú e as disparidades do coronelismo; de sua infância e juventude; da família tradicional brasileira e suas contradições no tocante ao lugar das mulheres na vida privada dos lares; os Estados Unidos na ascensão e tensões das lutas modernas pelos direitos civis; os movimentos políticos no Brasil frente à ditadura; a luta do povo negro e indígena por meio de sua cultura e paradigmas de resistência”, diz o texto que apresenta o livro e nos dá uma pista do que é a poesia de Clene que, sendo mulher do Pajeú, foi também do mundo inteiro.


Ilustração: Karina Freitas

Ela usou sua experiência de vida e ativismo como matéria-prima da poesia. Foi aluna do poeta Cancão (alcunha de João Batista de Siqueira), de Célia Siqueira, mas foi também aluna da University of Tennessee nos EUA. No Sertão, “era a menina branca filha de político e industrial, no Sul e Sudeste de seu país, era a cabocla baiana paraíba, e, fora da pátria, na Europa ou EUA, a mulher negra brasileira latina índia cigana”, diz a biografia na página do Instagram sobre o seu livro (@sendomariatambem). Apesar de profundamente conectada com a cidade de São José do Egito, para a qual voltou depois das andanças pelo mundo e lá permaneceu por muitos anos, Clene era uma crítica ácida do machismo da cena poética egipciense. “Era um ambiente muito machista, masculinista, inclusive em relação às temáticas. Ela observava que havia uma forma de poesia que era aceita e outra que não, e talvez ela se sentisse parte dessa forma não aceita”, pontua Anaíra.

Há uma história muito conhecida sobre Mocinha de Passira, uma das primeiras mulheres a conseguir entrar na cena da cantoria de viola do Pajeú, natural de Afogados da Ingazeira. O cantador Diniz Vitorino, em uma edição do Festival de Repentistas em Gravatá, se dirige a Mocinha, cantando:

De mulher pra me enfrentar
Eu só conheço Mocinha
Se existe um rei do repente
Ela deve ser rainha
Ruim é que o rei é pinto
E mulher de Pinto é Galinha

Ela retruca:

Pinto e pinto, eu sou Mocinha
E se acaso um for galinha
Mulher de pinto não é pra cantar nem pôr 
É pra dar picada em frango
Da pena mudar de cor

“A misoginia e o machismo na ambiência da poesia tradicional, improvisada ou não, é um aspecto que se manteve cristalizado por centenas de anos. E diria que, às vezes, de maneira excessivamente evidente e agressiva. Compreendemos que existe um contexto sociocultural asfixiante para nós, mulheres, e por isso temos que ir à luta, sempre. Sabemos também que essa mudança de mentalidade é um processo que leva tempo e envolve gerações“, reflete Maria Alice Amorim.

Bia Marinho, poetisa e cantora consagrada de São José do Egito, vem de uma família de poetas: é neta de António Marinho e filha de Louro do Pajeú. Ela pontua que nascer em uma família na qual quase todos são poetas e “vivem para e de poesia” foi uma grande sorte, pela “oportunidade de ter minha base reforçada e fortalecida para saber enfrentar esse preconceito”.

Ela observa que muitas mulheres dos anos 1940, 1950 e 1960 foram desencorajadas a mostrar sua arte, “porque artista muitas vezes foi sinônimo de puta”. “Então, acredito que muitas não tinham estrutura emocional para enfrentar tanto peso. Sem deixar de registrar, claro, que tivemos muitas poetisas guerreiras, destemidas, que sempre fizeram de sua arte sua grande arma e com ela peitaram esse desafio e derrubaram muitas barreiras.”

Uma dessas mulheres foi Severina Branca, nascida no povoado de Serrote Pintado, também em São José do Egito, que nos anos 1970 criou o mote clássico: “O silêncio da noite é que tem sido/ testemunha das minhas amarguras”. Severina era prostituta, analfabeta, desrespeitada pelos homens, abandonada pelas ruas da cidade. E, nesse caminho confuso e difícil, abriu espaço para as mulheres das novas gerações, assim como Rafaelzinha, Mocinha, Dulce Lima, Luzia Batista abriram, cada uma à sua maneira, veredas possíveis dentro dos espaços restritos dos círculos poéticos. Luzia, por exemplo, já escrevia sobre o machismo:

Mulher começa a sofrer
já depois do casamento
com pouco mês de casada
já vem o constrangimento
o marido não lhe entende
e ela se arrepende
de ter feito o juramento

“Aqui ela está falando de machismo, de patriarcado. Está fazendo uma denúncia. A gente acaba falando a mesma coisa, só que de maneiras diferentes, de pontos de vista diferentes”, diz Isabelly, que comenta a importância do resgate dessas poetisas e de como alguns de seus enfrentamentos têm eco na vivência de mulheres até hoje. “As mulheres sobreviveram. Como poetas. E não existem novas dores. Já as sentimos antes”, escreve Audre Lorde. “E escondemos esse fato no mesmo lugar onde temos escondido o nosso poder.”

Partindo desse ventre artístico, feminista e excêntrico da mãe, Anaíra, apesar de optar inicialmente pelas Ciências Sociais, passou a transitar por bandas, grupos de teatro e declamações. Hoje morando em Vitória de Santo Antão, tem dois filhos e vem deles parte da sua inspiração criativa: “Atualmente, as inspirações mais frequentes têm sido as crianças. Esmeralda vai fazer seis anos, Omar com um ano e meio, já era um contexto de isolamento mesmo antes da quarentena. Pouco antes da chegada de Omar, tinha minha mãe comigo, já adoecida, em processos que afetavam a memória e a corporeidade, uma experiência bem forte que também pulsou para a escrita”. Ela conta que produz à medida que passa por experiências fortes, “mas também tenho produzido por encomenda e tem sido bom. Escrever é um exercício que carece um cuidado”.

Anaíra e Clene são duas mulheres poetas que destoam da tradição da poesia rimada e metrificada, como várias outras da região, que também mergulham em versos livres e bebem de influências diversas. O Pajeú marca sua presença, como bem observa Anaíra, às vezes na temática, às vezes em um improviso, ou numa mistura de formas que gera outros objetos, numa liberdade subversiva da tradição que também é geradora da melhor poesia: “Nos cordéis que faço, sempre misturo sextilhas, décimas, oitavas, sétimas, para que tenham mais nuances no texto. Normalmente são textos que coloco em cena. Eu acho que é boa essa mistura e acho que cada vez mais isso vem ocorrendo”.

Assim como com Anaíra e Clene, a poesia como herança familiar é algo muito forte no Pajeú. Mulheres como Bia Marinho e Ana Luiza Passos também são exemplos de gerações e mais gerações de poetas que nascem numa mesma família e carregam consigo a importância de uma linhagem.

Bia Marinho é da família de verdadeiras lendas do Pajeú. Como foi dito, é filha de Louro, neta de Antonio Marinho, ao que se acrescente ser sobrinha de Dimas e Otacílio Batista. Seus filhos também são poetas e músicos. Bia, que além de poeta de bancada, é cantora e compositora, conta que conviveu com a poesia desde o seu nascimento. “As nossas canções de ninar eram escritas por meu pai exclusivamente pra nós. No batizado, em cada aniversário, primeira comunhão... aliás, em todos acontecimentos importantes de nossas vidas, ganhávamos poesias de presente!”, conta.

Apesar de fazer parte de uma linhagem de improvisadores, Bia não se enquadra em um estilo enquanto poeta. “Eu escrevo mais dentro dos estilos do repente, mas também dou uma passeada por outros terreiros. O verso (linha) da minha poesia tem o tamanho necessário para que o recado seja dado. Eu tanto escrevo em sextilhas, sétimas, décimas, decassílabos, soneto, poesia livre ... como, no meu caso de intérprete, também canto forró, frevo, eu amo interpretar uma canção, uma cantiga brejeira. Canto tudo que me alcança a alma.”

Ana Luiza Passos é uma das mais jovens poetas dessa nova geração do Pajeú. Com 18 anos, vem de uma família com muitos poetas e poetisas – seus avós, Beatriz Passos e José Silva, a tia Cármen Beatriz Passos, a prima Simone Passos. Cresceu decorando poesias, aos 13, aprendia métrica com a tia e o pai, Lamartine.

Já Monique D’Angelo, que gravou o seu primeiro disco recitando poemas ainda aos 11 anos, não vem de uma linhagem de poetas. No entanto, é filha de um “apologista”, que são os grandes apreciadores de poesia no Sertão, verdadeiros arquivos vivos sempre em busca de novos versos.

“Eu ficava, como toda criança, brincando, e, quando meu pai começava a dizer versos, eu parava imediatamente o que estava fazendo, pedia que ele repetisse até eu conseguir memorizar. Ia pra casa da minha avó materna todos os dias. Lá tinha um vizinho que morava de frente pra casa dela e eu ficava fazendo uma peleja, ele dizendo versos de um lado e eu de outro, como se a gente estivesse competindo ali.”

A apreciação da poesia é cultural e familiar no Pajeú. Nas ruas, é comum as pessoas se cumprimentarem e dispararem um “bom-dia, poeta”, sem que sejam poetas de fato. É como um cumprimento genérico.

IMPROVISO É COISA DE MULHER
Um silêncio, posto no meio do caminho entre a tensão e a excitação, tomou conta de uma sala no Espaço João Macambira (São José do Egito), em janeiro deste ano, numa mesa de glosas em homenagem aos 105 anos de Louro do Pajeú, uma das lendas da poesia do Sertão. Há seis pessoas na mesa, coberta cuidadosamente com uma toalha branca rendada, sentadas lado a lado e dispostas de frente para um público de pessoas interessadas em ouvir e ver a poesia enquanto ato.

Diante da cena, remetemo-nos ao estudioso das poéticas orais Paul Zumthor, que aborda o aspecto corpóreo da poesia falada: “ressonância infinita que faz cantar toda matéria”. Porque é por esse momento de rompimento com o silêncio e da voz ecoando no espaço (como som-elemento, como coisa) que o público espera.

Sentados, são quatro poetas, um coordenador e apenas uma poetisa, como gosta de ser chamada Francisca Araújo, uma jovem escritora e glosadora negra. Numa mesa de glosas, modalidade da poesia oral de improviso, há sempre o momento do silêncio, que dura não mais que alguns poucos minutos. O breve intervalo entre a comunicação do mote (dois versos que devem fechar o poema de todos os glosadores, que geralmente é composto por 10 versos) e a apresentação dos poemas na voz dos artistas. “A balança da justiça/ nunca pesa o que devia”, comunica o mote o coordenador da mesa. O processo criativo se dá por completo nesses minutos: alguns poetas movem os lábios em silêncio, olham para o teto buscando algo, tensionam o corpo. Francisca parece cair absolutamente para dentro de si. Os olhos firmes, o corpo firme, nada titubeia ou balança. Os cabelos presos no alto. No máximo, olha pra baixo algumas vezes como se buscasse uma coisa perdida. Está pronta. Fica de pé, segura o microfone, a respiração é intensa, mas firme como seu corpo:

Por hora condena e prende
Sem dar direito à defesa
E para o rumo da incerteza
Tem muitas vezes que perde
Com isso por certo ofende
A nossa democracia
Usando de covardia
Finda tornado-se omissa
A balança da justiça
Nunca pesa o que devia

Antes que sua voz alcance os últimos versos, a plateia grita, aplaude. Francisca é ovacionada, como uma atleta que vence os 100 metros rasos. A tendência de sacralizar a letra, a escrita, como observa Zumthor – cujo pensamento é trazido novamente como referência –, não tem espaço aqui. A poesia de Francisca é muscular. “Cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a energia desse sopro, com o otimismo da matéria, converte a questão em anúncio, a memória em profecia, dissimula as marcas do que se perdeu e que afeta irremediavelmente a linguagem e o tempo”, diria Zumthor.

Seu primeiro poema foi composto aos 14 anos. Ela pouco conhecia sobre regras métricas e estruturas de estrofes, conhecimento imprescindível para a tradição da região. Ela é dos poucos casos em que não há poetas na família. Aos 19, começou a pesquisar os estilos estróficos, lia muitos poemas e ficava atenta à organização de cada um deles, suas lógicas, seus arranjos, como se observasse jogos de armar. Seu pai, Cícero, sempre cantou e tocou violão pela casa, o som ligado nos programas da Rádio Pajeú, nos quais se ouviam cantorias, aboios e toadas.

Francisca desenvolveu o costume de contar mentalmente a quantidade de versos do que ouvia, orientava-se pela disposição das rimas. Virou uma estudiosa: “Quando decorava alguma estrofe que gostava, eu anotava e ficava comparando com o que tinha estudado, na tentativa de relacionar cada gênero com o estilo de composição utilizado”. E assim, sozinha, também aprendeu as sextilhas, as septilhas e todos os gêneros praticados pelos cordelistas.

“Quando ouvi falar pela primeira vez em uma mesa de glosas, eu não fazia ideia do que se tratava. Eu tinha acabado de entrar nas redes sociais e vi uma postagem relacionada a esse evento”, conta Francisca, que estuda Pedagogia e é professora do município de Iguaracy, cidade onde nasceu e vive. Foi procurando vídeos no YouTube e assistindo às mesas que percebeu que “aquilo era irrealizável para mim”.

As mesas de glosa tiveram origem nas rodas de poetas, que se sentavam em bares, na rua e, a partir de motes, começavam a improvisar em forma de embate, sem o acompanhamento de instrumentos como a viola ou o pandeiro. É um dos espaços mais fechados para a presença feminina dentro da grande constelação de modalidades de poesia do Pajeú. Quando viu as mesas pela primeira vez, Francisca não vislumbrava a possibilidade de uma mulher estar ali. A primeira mesa com a presença de mulheres aconteceu apenas em 2013. Elenilda Amaral, Dayane Rocha e Mariana Teles foram as primeiras a desbravar o terreno inóspito, onde o mote “mulher nova, bonita e carinhosa/ faz o homem gemer sem sentir dor” é tido como um grande clássico.


Ilustração: Karina Freiras

“A cantoria é a modalidade de improviso que historicamente menos acolheu a presença feminina. Sempre ouvi falar de Mocinha de Passira, mas ocasionalmente. Recordo o nome de Luzia Batista, de São José do Egito, que, quando mais jovem, foi impedida de seguir a carreira de repentista, sentenciada pelo machismo em uma relação conjugal, mas que cantava de improviso. Ser mulher e atuar em um setor que majoritariamente é marcado pela presença masculina ainda é desafiador, isso é um fato. Parece que, a cada mote lançado nas mesas, todo mundo espera mais de nós. É a sensação que temos”, comenta Francisca.

Francisca participou pela primeira vez de uma mesa apenas em 2016. Foi a quarta mulher a participar de um desses encontros, de um pequeno universo de cinco poetas que atualmente realizam embates poéticos. É, também, a primeira e única mulher negra a colocar o pé nesse espaço.

“O crescente aumento da discussão sobre representação e representatividade me faz refletir sobre a responsabilidade de atuar nesse cenário. Reconhecer a importância da conquista do lugar de fala e da apropriação de valores e historicidade da nossa ancestralidade é fundamental para reafirmar direitos e liberdades, utilizando a arte como instrumento precursor. Se, de um lado, há uma atitude afirmativa para desconstruir preceitos machistas, há, por outro lado, a necessidade de resistência e enfrentamento do código racista. Ao passo que os movimentos discorrem sobre a elaboração de novas condutas, a poesia ecoa para denunciar e tornar-se voz latente”, defende a poeta, tida por muitas delas como um dos grandes talentos da cena.

Maria Alice Amorim observa que há uma importante mobilização e atuação das poetas nas mesas de glosa, “como uma articulação com a qual logramos provocar, reivindicar, gerar esse câmbio de mentalidade. E considero que cada vez mais tem sido uma articulação firme e estruturante, alicerçada em ações afirmativas como o protagonismo feminino em mesas, em publicações de poesia, em debates e seminários; como as provocações às reflexões e o posicionamento explícito em defesa da liberdade, da igualdade e livre expressão, especialmente quanto às questões de gênero”.

Além da glosa, Francisca escreve. É uma poeta de bancada de mão cheia, como é costume falar na região. Compõe sobretudo sonetos. “Minha poesia carrega muitas inquietações; por vezes, ela é bastante intimista. Costumo compor sobre a paisagem sertaneja, sobre amores e saudades, e também trago uma poética engajada na abordagem de temáticas sociais. Fico inquieta quando passo muito tempo sem compor um verso novo.”

Além de Francisca, as irmãs Elenilda e Erivoneide Amaral, Dayane Rocha e Milene Augusto também participam atualmente em mesas de glosas. Por enquanto, elas são as únicas mulheres na modalidade.

O PAJEÚ E O MUNDO INTEIRO
“A diferença é que eu acredito que não seja confortável para a classe mais abastada comparar a poesia de Patativa do Assaré, um cara da roça, a um Carlos Drummond de Andrade”, diz Thaynnara Queiroz, poetisa, declamadora e cordelista de Afogados da Ingazeira. Juntamente com Carla Santana (de Tabira) e Francisca Araújo, toca o projeto Clube de Cordel, um clube de literatura popular que tem o objetivo de diminuir o fosso entre a literatura dita clássica e a literatura dita popular. “Isso eu acredito que seja um reflexo dessa nossa divisão social, e pra mim dá no mesmo, as duas coisas são grandes referências, têm grandiosidade, têm uma primazia que pra mim não faz sentido colocar em categorias diferentes”, explica Thaynnara.

A associação é um ponto de partida para os poetas e cordelistas lançarem seus trabalhos, como explica Carla Santana, e “visa também garantir que a população tenha acesso à produção desses artistas e, assim, despertar o gosto pela literatura de cordel”. Além de ajudar na formação artística com cursos de produção e, por fim, possibilitar aos poetas uma renda. Também iniciamos nesse período de quarentena a produção de lives pelo Instagram @clube.do.cordel, sobre diversas temáticas que precisam ser exploradas em torno da poesia mundial e regional como instrumentos de combate às opressões”, completa.

Para Thaynnara, existe um desconhecimento da cena literária do Sertão, “que tem a mesma complexidade de qualquer cena literária, com a diferença, talvez, de que a gente aprende isso desde muito cedo e é convocado a participar criando”. A poetisa começou a ler espontaneamente aos três anos, e não muito tempo depois já recitava poesia. Quando Thaynnara menciona essa convocação precoce é de algo entranhado na tradição do Sertão do Pajeú que está falando, de maneira inclusive institucionalizada.

O cânone “autárquico” é ensinado nas escolas municipais da região.Várias poetisas comentaram que se lembram de apresentar trabalhos em versos na escola e de irem descobrindo também, nessas situações, a sua veia poética. Muitas compuseram suas primeiras quadras e sextilhas no espaço escolar, e passaram a conhecer as obras dos principais poetas da região. É comum. Tanto a formação doméstica como a formação escolar estão imersas nesse estado de poesia do Pajeú.

Segundo os pesquisadores Carlos Nogueira, da Universidade de Vigo, e Veronique da Silva-Semink, da Universidade Nova de Lisboa, que estudam manifestações de literatura oral e trovadoresca, a poesia oral (e acrescento aqui a poesia que tem sua origem na oralidade, como o caso da poesia do Pajeú) não pode ser compreendida fora da estrutura social em que se vive, e nem o funcionamento da comunidade pode ser integralmente apreendido sem um conhecimento da sua poesia de transmissão oral.

“A poesia oral, como as tradições em geral, só existe porque cumpre funções. Refletir sobre este aspecto é também pensar sobre o contexto social e cultural da performance literária, a idiossincrasia dos poetas-intérpretes e do grupo social, as diferentes espécies, a linguagem e o estilo, as circunstâncias da composição, da transmissão e da recepção dos textos”, escrevem no artigo em coautoria Poesia oral tradicional e funcionalidade. “Para melhor percebermos a poesia oral, devemos, por isso, na medida do possível, identificar as funções que ela cumpre no âmbito das experiências coletivas.”

Neste sentido, toda essa mistura intensa entre vida e poesia que observamos no Sertão parecem fazer parte de uma estrutura que escapa às questões meramente literárias, assim como escapa igualmente às questões unicamente sociais e identitárias. É uma trama intrincada que serve à construção de uma humanidade ancorada na arte da palavra dita e escrita. “O significado estético, social e pragmático da atividade poética não pode ser explicado se não se considerar que o que está envolvido é uma necessidade a partir da qual o ser humano usa e desenvolve convenções artisticamente marcadas para criar e manipular ativamente a sua própria existência e o mundo em redor”, concluem os pesquisadores.

Carla, por exemplo, lembra a avó sempre rabiscando poemas em um caderno, fazendo versos, apaixonada por cantoria. “Como sempre estava com ela, acabava indo junto assistir aos festivais de violeiros e cantorias. Escutávamos no rádio, todas as noites antes de dormir, CDs de grandes nomes como Valdir Teles, Zé Carlos do Pajeú, Sebastião Dias, Sebastião da Silva etc. Assim, passei a infância e início da adolescência sendo uma apreciadora da poesia”, relata. O que, para uma criança urbana, seria no mínimo incomum, para as meninas e meninos do Pajeú, é só parte da infância.

As influências de Thaynnara vêm de todos os lados. A estudante elenca Jorge Amado, Érico Veríssimo e Clarice Lispector, que conheceu desbravando a biblioteca da sua mãe, professora de Matemática e grande leitora; e Lygia Fagundes Telles, Hemingway, Mario Benedetti, Paulo Leminski, Drummond, Dedé Monteiro, Francisca Araújo, Isabelly Moreira, Dulce Lima, Dayane Rocha, Brecht, Maiakóvski e Manoel de Barros. Literatura canônica e literatura pajeuzeira na mesma frase, sem distinção.

TEATRO É POESIA, POESIA É TEATRO
Um vídeo antigo, de quando Odília Nunes tinha apenas 10 anos de idade, chegou em suas mãos por esses dias. Era uma festa de Dia das Mães, ela recitava um poema com um pedaço de papel nas mãos, lendo os versos. Talvez um pouco nervosa, talvez feliz. Talvez em uma escola, talvez em outro lugar qualquer, não é possível saber muito bem, sua memória não lhe traz detalhes. Ela se emociona, pois não tinha essa lembrança tão antiga da sua relação com a poesia. No entanto, “quando eu vi esse vídeo, eu com 10 anos, foi impressionante escutar a minha voz naquela gravação, recitando aquela poesia que eu não me lembrava... eu retornei àquele dia. Retornei àquele papelzinho que eu estava lendo enquanto declamava aquela poesia”.

Odília Nunes é poeta cordelista, palhaça, bonequeira, atriz. Nasceu em Tuparetama, onde ficou até os 17 anos, depois passou pelo Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Recife, e, há alguns anos, retornou ao Sertão, fincando os pés na zona rural de Ingazeira.

“É desde muito cedo que vem essa vontade de perceber a poesia, acho que mais do que escrever. Eu tenho lembranças de ver a poesia desde muito cedo, de ver nas coisas do dia a dia. Eu lembro a minha tartaruga, a morte de um passarinho. Eu lembro a poesia que era essa cena. Uma criança miúda segurando um passarinho morto nos braços e de pensar na morte, mas com poesia. Eu sinto a poesia viva desde muito cedo”, conta Odília, para quem a poesia invade o modo como vivencia o mundo, assim como invade o seu teatro, os bonecos, a palhaçaria.

Paul Zumthor, a essa altura, perguntaria: “Toda literatura não é, fundamentalmente, teatro?”. Para Odília, tudo o que vive é fundamentalmente poesia, mas é no teatro “onde eu construo poesias mais livremente, é onde eu tento colocar a poesia de forma ilustrada, gestual”.

Foi no Rio de Janeiro, estudando Teatro, que percebeu que era uma atriz de teatro, pesquisadora das tradições populares e que não sabia declamar nenhum cordel. Assim, decidiu fazer o movimento de resgate das suas raízes. “E foi quando eu me apaixonei por Chico Pedrosa, que é uma grande referência. Essa vontade que Chico tem, e que eu vejo muito em mim, que é de contar histórias. E por que não contar isso rimado, metrificado? Então, com 27 anos, eu criei uma personagem chamada Cordelina, uma boneca gigante que deveria recitar cordéis. Acabou que essa boneca ficou pronta e nunca recitou. Mas o teatro me fez olhar para as minhas raízes.”

A poesia de Odília é narrativa, imagética, teatral. Escreve sobre uma mulher de Exu que decidiu ser mãe sozinha, sobre um tornado em Ingazeira, sobre um convite recusado à morte: “‘Não amei suficiente!’/ Foi como justifiquei./ Depressa lhe expliquei/ Os sonhos que trago em mente./ E ela, tranquilamente,/ Se dispôs a escutar./ Desembestei a falar/ Pois sonho em mim não tem fundo./ Recusei em não profundo,/ Na terra quero ficar”.

“A poesia do Pajeú vai muito além e a gente não sabe quase nada dela. Ainda! Mas eu sinto que, aos poucos, tem muita coisa acontecendo e eu estou muito feliz de estar no Pajeú neste momento. Tem muita gente fazendo cinema, dançando, fazendo poesia. O que eu acredito é que existem muitos cantos, existem outras formas de cantar. Ela (a poesia do Pajeú) existe, ela é potência, eu não a nego, eu a busco, eu a amo, pra mim é um desafio fazê-la e acredito na abertura”, afirma Odília, apontando, como todas as vozes aqui amalgamadas, para a vitalidade das raízes e a potência da abertura.

Por fim, deixamos a palavra com Isabelly:

“Eu vejo por muitas vezes tacharem a poesia do Pajeú como engessada, por seguir regras específicas dos estilos escritos. Porém, seguir a regra da poesia popular também é quebrar a regra de um pensamento que insiste em manter a nossa poética distante das academias, distante dos livros de literatura. Não adiantaria escrever sem regra, se o problema fosse esse, e não falar a língua do povo. E falar para o povo não entender. O que nós precisamos fazer é fazer do nosso jeito, e respeitar, aplaudir, recepcionar as outras tantas variações e estilos poéticos existentes. Do mesmo modo que a gente quer que a nossa poesia passe por outras porteiras também. Sem esse estigma, sem essa bobagem de estar diferenciando quem é poeta maior, quem é poeta menor, qual a poesia mais valiosa. Mas de tirar um pouco dessa capa dura das instituições e também ouvir a poesia popular, também ouvir a sabedoria popular e adentrar, não ficar longe. Porque interior é mais profundo, interior não é 100 quilômetros na beira do Recife, não, da capital. Interior é vir pra dentro, é caminhar pela rua, pelos becos, é conhecer, é ver o modo como a gente vive. E aí, talvez, se comece a entender um pouco da nossa literatura”.

JULYA VASCONCELOS, jornalista, escritora e curadora.

KARINA FREITAS, designer, ilustradora e especialista em Projetos Digitais pelo Istituto Europeo di Design – IED-RIO.

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