Perfil

Mestre Anderson Miguel: três corações e uma história

TEXTO Erika Muniz

04 de Janeiro de 2021

Anderson Miguel na sede do Maracatu Águia Misteriosa, em Nazaré da Mata, em 2019

Anderson Miguel na sede do Maracatu Águia Misteriosa, em Nazaré da Mata, em 2019

Foto BRENO LAPROVITERA

[conteúdo na íntegra | ed. 241 | janeiro de 2021]

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“Toda vez que eu dou um passo
o mundo sai do lugar.”
(Siba e a Fuloresta, 2007)

Ele cresceu no terreiro de um maracatu centenário. Já foi promessa, hoje ele é acontecimento. Nasceu praticamente dentro do Cumbe, engenho onde está localizada a Cambinda Brasileira. Muito pelo fato de ter pai contramestre e por suas vivências, encantou-se desde cedo pelo baque solto. Aos oito, já arriscava alguns versos, prestando atenção nos mais antigos, costume esse que ainda mantém. Certa vez, num Domingo de Páscoa, ao sair de casa, Anderson Miguel da Silva Adão soube de um ensaio que aconteceria à tarde, no mesmo horário dos festejos do Bloco Rural Papagaio Dourado, que era destinado a crianças da região. Naquela época, dona Eugênia, sua mãe, não fazia gosto que ele frequentasse encontros de maracatu, embora o garoto insistisse bastante. Mesmo assim, não teve jeito e, debaixo de chuva, ele fugiu na direção da festa.

“Se eu não tivesse saído escondido, talvez não estivesse aqui, dando essa entrevista para você”, afirmou, em uma de nossas conversas em Nazaré da Mata (PE), sua terra natal. “Minha mãe ficou furiosa, só que, quando cheguei em casa, meu pai disse logo que eu tinha cantado bem. Assim, ela já amansou o coração”, complementa sorrindo. O ano era 2006 e Zé Flor, figura conhecida na região e importante para o ingresso de Anderson no baque solto, ocupava o lugar de mestre na Cambinda. Ele teria sido o responsável por, naquela tarde, o microfone chegar às mãos do menino, revelando quem muitos chamavam de “nova promessa no maracatu”. Anos depois, o destino se encarregou de cruzá-los novamente, pois Anderson seria seu contramestre – aquele que responde aos versos –, quando Zé foi mestrar no Maracatu Águia Misteriosa.

Daquela tarde, no Cumbe, em diante, as participações de Anderson Miguel pela Mata Norte de Pernambuco seriam mais frequentes. Isso, já com a benção de dona Eugênia, sua mãe, especialmente por conta dos elogios correndo soltos pela cidade. Em pouco tempo, a dona de casa percebeu que o filho realmente levava jeito para a brincadeira e vários maracatuzeiros não escondiam o entusiasmo que colocavam em seu filho. Em tudo quanto era evento, Anderson aparecia e dava jeito de participar. Um desses encontros, inclusive, foi o lançamento do livro A Cambinda do Cumbe (2006), importante registro documental do grupo, com autores diversos, que compreende fotografias de festividades no engenho e importantes personagens da história, inclusive o jovem Anderson. “Como eu morava perto da sede, quando tinha evento, ia por lá ver as coisas com a bengala (instrumento utilizado pelos mestres) do meu pai na mão, já me sentia um mestre. Comecei ali, de verdade, a tomar gosto pela coisa”, relembra.

Em 2007, Anderson começou a participar do Maracatu Sonho de Criança, que, como o próprio nome sugere, é formado por meninas e meninos da região. A partir daí, seu sonho de um dia tornar-se mestre seria intensamente lapidado. Dividia também com o pai Aderito a função de contramestre na Cambinda Brasileira, o que fortalecia ainda mais o seu amadurecimento. Apesar de bem jovem, colecionou experiências ao longo desse período. Com o tempo, no entanto, percebeu que ali não teria como atingir o que tanto almejava, já que todas as funções estavam devidamente ocupadas com gente de talento também. Como Anderson sempre fora admirador da poesia de Carlos Antônio, decidiu, aos 12 anos, ir para a Águia Misteriosa, acompanhar o parceiro, que liderava por lá. Esse episódio marca oficialmente o início de Anderson como contramestre de um grupo maior. Mais um passo para que um dia alcançasse aquilo que tanto queria.


Quando menino, ele já participava das apresentações de maracatu, como no Sonho de Criança. Foto: Mateus Sá

Acontecimentos como esse têm a presença direta de seu padrasto, Aderito Amaro, a quem o artista considera seu pai, pois foi quem participou ativamente de sua criação. No carnaval de 1995, Eugênia Maria, sua mãe, que era baiana de destaque da Cambinda, não sabia que estava grávida de poucos meses de Eládio Miguel Adão, pai biológico do artista. Mas, pouco tempo depois, ela se encantou pelo futuro marido Aderito – a afinidade pelo baque solto teria chamado a atenção da moça. Começaram a namorar e, posteriormente, casaram-se. Estão juntos há 25 anos – mesma idade de Anderson. “Ele (Aderito) me ensinou a ser homem, artista e a respeitar as pessoas. Passou todos esses ensinamentos. Sou muito grato a ele, o meu pai”, declara o músico.

***

O batismo de Anderson Miguel como mestre de maracatu aconteceu numa noite estrelada de sábado. No dia 20 de agosto de 2011, a prefeitura organizava a Sambada no Parque, evento sediado no Parque dos Lanceiros, espaço público da cidade, que abriga um vistoso anfiteatro e algumas estátuas coloridas de caboclos de lança e arreiamás (caboclos de penas). Pela extensão dos monumentos, já de longe, não restam dúvidas a quem chega que está na “capital estadual do maracatu”, para utilizar dizeres escritos pelos muros de Nazaré. Naquela ocasião, com seus 15 anos, o adolescente participaria de uma sambada de pé-de-parede, como é chamada a batalha poética de improviso entre dois mestres, que, nesse caso, seria entre Anderson e Mestre Sibia, do Maracatu Águia Dourada. Essa seria sua tentativa de conquistar o título publicamente.

Momentos antes de se encaminhar ao local da sambada, uma das integrantes do grupo de Anderson chegou à sede da Águia Misteriosa avisando que seu adversário dizia que, caso “apanhasse dele”, nunca mais cantaria maracatu. “Eu pensei: hoje não vou ganhar essa sambada não, que o cara está virado no cão (risos)”, relembra. Apreensivo diante de tal promessa, Anderson Miguel considerou o conselho dado por Barachinha: “Cante maracatu, que vai dar tudo certo”. E como conselho de mestre não se desperdiça, foi o que seguiu, utilizando-se do que havia aprendido até ali, mas também valendo-se de seu talento enquanto poeta. Apesar de ter ido muito bem, especialmente para quem disputava com alguém de muita habilidade, a ideia de deixar o maracatu pronunciada por Sibia, para sorte de todos, não foi cumprida. E, assim, Anderson sentiu-se mais aliviado. “Seria uma perda muito grande, um poeta como ele. E foi bom que não apanhei tanto”, conta o artista.

Quem conhece – ou gostaria de conhecer – mais da cultura da Mata Norte pernambucana, sabe da importância de Mestre Barachinha para diferentes gerações do baque solto. Poeta respeitado, é comum ouvir dos amigos e maracatuzeiros declarações a respeito de sua generosidade, responsabilidade e partilha de saberes com os mais jovens, característica dos que cultivam o hábito de retribuir o que lhe foi ensinado (sobre Barachinha, leia perfil dele que publicamos na edição 230, de fevereiro de 2020). Em sua amizade com Anderson Miguel, Barachinha dá conselhos, ideias e divide experiências. Mas a novidade é que a dupla vem, há pouco tempo, compondo canções de sertanejo. Sobre isso, Anderson revela em primeira mão à Continente: “Ele escreve e eu coloco a melodia, mas a gente faz umas letras juntos também. É sempre muito aberto. Vai vir um disco de autorais futuramente”.

Agora que Anderson Miguel está à frente da Águia Misteriosa, é importante lembrar que sua trajetória no grupo não foi linear. Depois de uma temporada como contramestre da Águia, em 2013, ele retornou à Cambinda Brasileira, através de um convite da diretoria para que assumisse a função de mestre. Em 2018, participou das comemorações do centenário por lá e das gravações do filme Azougue Nazaré (2019), do cineasta Tiago Melo. Na trama, o artista interpreta ele mesmo, só que num período em que ainda era conhecido como o “Neymar do Maracatu”. Dizem que por conta da semelhança física, do virtuosismo precoce, da habilidade no que se propõe a fazer e pelas mudanças no penteado. O reconhecimento de Anderson como craque não veio por sua maestria com o futebol – apesar de ele gostar muito e torcer pelo Sport Clube do Recife –, mas pela qualidade de seus versos e rapidez nos improvisos, o que aparece bastante no filme.

Muito da atmosfera que faz parte do Engenho Cumbe e dos segredos do brinquedo que costuram o universo religioso do maracatu foi levado às telas de cinemas do Brasil e do mundo, com Azougue Nazaré. A narrativa ficcional, que também conta com Barachinha no elenco, remonta ao crescimento neopentecostal na Mata Norte, uma realidade experimentada por muitos que vivenciam o baque solto na região, mas que vem se alastrando por todo o país.

Cinco anos depois de integrar a Cambinda, Anderson decidiu retornar à Águia Misteriosa. Dessa vez, com mais experiência e ideias, o mestre não esconde sua satisfação de estar por lá. Apesar de rivalidades entre grupos, ele sempre fez questão de não esquecer e valorizar o que construiu no baque solto ao longo de sua história. “Quando resolvi vir para a Águia, pedi para Seu Vicente e Dona Célia, diretores, mudarem o terno (a banda), o estilo da bandeira (o estandarte), a evolução e a corte (o rei e a rainha), mas também para que a gente investisse mais e que tivesse mais padronização”. A diretoria prontamente ouviu suas demandas.

Seu Vicente, presidente do Águia Misteriosa, e Anderson, diante de um estandarte da agremiação
Seu Vicente, presidente do Águia Misteriosa, e Anderson, diante de um estandarte da agremiação. Foto: Nilton Pereira

“Aqui (na sede da Águia), o pessoal quer experimentar para ver se dá certo. E sou um mestre de maracatu que não canta apenas, tenho uma visão mais ampla do grupo como um todo”, complementa. Isso logo é confirmado pelo casal de diretores. Sob sua liderança, a Águia Misteriosa recebeu o título de campeã do carnaval, em 2019, no Concurso de Agremiações de Pernambuco, pelo grupo 1. Em 2020, concorreu ao grupo especial e chegou à segunda colocação, a primeira foi conquistada pelo Maracatu Estrela Dourada, de Buenos Aires (PE), cuja liderança é de Mestre Barachinha. Ou seja, está tudo em casa.

***

Narrar fragmentos da história de um poeta e compositor da Mata Norte de Pernambuco não é tarefa fácil, uma vez que ele próprio, com bastante sensibilidade, transfigura paisagens de sua vida em composições e versos. Algumas das vivências de Anderson Miguel, através de olhar e ouvidos atentos, são transformadas em linhas poéticas no maracatu rural, no forronejo ou nas cirandas que compõe. Daí, voltando ao título deste texto, sugerido por Anderson e inspirado numa canção de Zezé di Camargo e Luciano, estariam os “três corações” do jovem artista. Não que seja necessariamente autobiográfico, mas alguns momentos narrados aqui já ganharam corpo em sua voz sonorosa. As letras, inclusive, também são outros caminhos para conhecer mais da trajetória do jovem mestre. Algumas canções de sua autoria integram as faixas do álbum Sonorosa (2018), disponível no Youtube e em todas as plataformas de streaming.

Diferentemente da relação com o baque solto, que vem desde a gestação de dona Eugênia, o vínculo com a ciranda floresceu para Anderson somente mais tarde. E por obra do acaso. Antes da fiscalização da Lei 9054/97 art. 39 ser intensificada na Mata Norte de Pernambuco, que proíbe carros de divulgarem músicas de campanha fora dos comícios e de jingles políticos serem anunciados em veículos pela região, era mais comum que acordos fossem selados para trocas entre os músicos e os candidatos.

Artistas locais costumavam se associar a algum dos aspirantes a cargos eletivos. Ou seja, além da concorrência pela maior quantidade de votos nas urnas, os versos e as provocações poéticas tornavam-se uma extensão dessa disputa. Certa vez, enquanto um tinha parceria com João Limoeiro e Zé Galdino, dois dos nomes mais fortes da música na região, o outro contava com a parceria de Anderson Miguel, que, naquele momento, nunca havia feito uma ciranda na vida.

Sua saída foi chamar alguém experiente que respondesse à dupla de consagrados. Convidou, então, Carlos Antônio, da Ciranda da Flor, de Itaquitinga – cidade a 25km de Nazaré. Depois de algumas contribuições. Foi assim que sobrou para Anderson o papel de improvisar e, pela primeira vez, elaborar uma ciranda. “Tive que ir, porque já estava ‘no fogo’ da campanha. Só topei fazer cirandas elogiando o candidato que eu estava apoiando, sem alfinetar o outro lado, por respeito aos grandes mestres”, relembra.

Pelo sucesso e agrado que o público tem demonstrado às suas composições, parece que tudo isso deu certo. Naquele ano, mesmo sem terem ganhado a campanha, a experiência foi positiva, pois despertou nele os primeiros versos no gênero musical. Seja pela proximidade de seus locais de origem ou pelos principais representantes, a ciranda traz sincronicidades com o baque solto. Cada uma das expressões artísticas, no entanto, resguarda suas particularidades quanto à composição, sonoridade, ao ritmo e à construção de repertório, além da maneira que performam pelas ruas.

Essas confluências se evidenciam em mestres de gerações anteriores, como no caso de Santino, Zé Galdino e João Limoeiro, bem como alguns mais moços, a exemplo do saudoso Luciano Ferreira – falecido precocemente em 2019 –, Carlos Antônio, Gabriel, de Tracunhaém (PE), Lezildo Santos, o Mestre Bi, e o próprio Anderson. Todos eles mantêm vivências tanto na ciranda quanto no maracatu (sobre a ciranda, leia reportagem que publicamos na edição 222, de junho de 2019).

A ideia de montar seu próprio grupo de ciranda ganharia contornos mais nítidos pouco depois desse momento inicial. Semanas depois, Anderson Miguel esteve no Recife para comprar surdo e mineiro, instrumentos base nos arranjos de ciranda. E, para compor a banda, convidou Cabeça, seu vizinho, que comprou o tarol, em incentivo ao amigo. Além de chamar músicos da Capa Bode, uma das escolas musicais de Nazaré.


Anderson Miguel (no centro, à dir.) atuou em Azougue Nazaré junto com outros
moradores locais. Imagem: Divulgação

Assim, no dia 4 de outubro de 2012, data de seu aniversário, fundou seu grupo, cuja formação atual é Albérico (surdo), Fábio Júnior (tarol), Dinho (mineiro), Júlio (sax), Guilherme (trompete) e Kebinho (trombone). A primeira vez que tocaram foi em 8 de dezembro daquele ano. Eles se apresentaram sem cachê, em frente à catedral da cidade. Somente com um lanche, “para pegar espaço na agenda local”, pontua o vocalista.

Logo em seguida, a necessidade de dar nome à ciranda surgiria. “A Mata Norte é tão forte. Tem caboclinho, ciranda, mamulengo, cavalo-marinho, maracatu... Além de um nome bonito, teria que chamar atenção. E já que Pernambuco tem tantas coisas, vamos fazer como se a ciranda fosse a mais forte, aí, ficou Raiz da Mata Norte”, explicou Barachinha, responsável pelo nome da banda do amigo. Assim, nasceu a Ciranda Raiz da Mata Norte, liderada por Mestre Anderson.

“Ele já é um dos cirandeiros mais badalados aqui da região”, afirmou Cabeça, que integrou o grupo no início, e que atualmente toca mineiro na Ciranda Bela Rosa, de Mestre Bi, sendo contramestre de Anderson no Maracatu Águia Misteriosa. Naquele 8 de dezembro de 2012, data vinculada à comemoração de Nossa Senhora da Conceição, Barachinha falava ao telefone com o amigo e músico Siba Veloso, que estava em São Paulo (SP). Mesmo distante, seria a primeira vez que Siba entraria em contato com a voz de Anderson Miguel ao fundo, através da ligação. O interesse em conhecê-lo, a partir daí, só cresceria.

– Barachinha, quem é o menino?
– É Anderson, Siba.
– Rapaz, tem futuro, visse?

O diálogo foi narrado por Barachinha em entrevista sobre quando Siba escutou a ciranda de Anderson pela primeira vez ao telefone.

“Nem lembro mais como a gente se conheceu mesmo. Acho que fui olhar uma sambada que ele participou, mas também já tinha visto um show dele. Comecei a seguir ele no Instagram. Sempre fui fã, principalmente desde que ouvi a música Cantando ciranda na beira do mar”, conta Anderson sobre Siba. Em pouco tempo ficaram amigos e com bastante sinergia artística. O público pode encontrar no álbum Sonorosa (2018) um dos resultados dessa parceria entre essas gerações distintas.

Mestre Anderson se refere ao amigo como seu “padrinho musical”, pois foi Siba Veloso quem produziu – ao lado de João Noronha – o disco e faz a direção musical das apresentações. Entre os palcos que o show já conquistou, estão alguns dos principais festivais de música do Brasil, a exemplo do No ar Coquetel Molotov, do Recife, em 2018; Coala Festival, de São Paulo, em 2019; e Radioca, de Salvador, também em 2019. A banda que o acompanha, inclusive, é a mesma do trabalho autoral de Veloso, formada por Rafael dos Santos (bateria), Lello Bezerra (guitarra), Mestre Nico (percussão), Roberto Manoel (trompete), além do próprio Siba, que participa na guitarra e na voz.

Quem viu Siba começando
Lhe via na Fuloresta
Cantando e fazendo festa
No mundo todo andando
Quem me vê tá comparando
Com o Siba do passado
Franzino e todo acoxado
Sem bigode e mais novinho
Pra andar no seu caminho
Tenho que trabalhar suado

Esses foram os versos criados por Anderson, no dia 1º de dezembro de 2015, em homenagem a Siba, antes da apresentação da Ciranda Raiz da Mata Norte, no Sesc Pompeia, em São Paulo (SP).

Gravado em parte no Engenho Cumbe, a partir de um estúdio móvel, Sonorosa foi idealizado para ultrapassar as fronteiras do público pernambucano. “O Sonorosa surge de um sentimento que eu tinha de 2016 para 2017, de que cabia a mim fazer alguma coisa para somar na trajetória de Anderson. E que, pela minha história com a Mata Norte, pelo tanto que devo à região, por tudo que conquistei na vida, não poderia fazer de conta que não estava vendo que estava surgindo um nome muito especial. Assim que tive uma chance, propus a ele de a gente fazer um disco juntos e eu produzir. Mas não tinha patrocínio e nenhum projeto claro, só queria fazer e saber se ele topava”, contou Siba à Continente. Com algumas composições de sua autoria, mas a maioria do próprio Anderson Miguel e uma do vocalista da Nação Zumbi, Jorge du Peixe, o trabalho, que conta com a participação especial da cantora Juçara Marçal, apresenta arranjos com sonoridades oriundas da ciranda utilizando também guitarra, baixo, metais e synths.


Anderson exibe, no celular, imagem de Siba Veloso, músico com quem mantém vínculo artístico e amizade. Foto: Nilton Pereira

“Essa coisa de trazer instrumentos e referências que não são mais da cultura popular, da origem e tal é uma estratégia. Não necessariamente correta ou melhor, bastante questionável também, como tudo pode ser questionado. Mas é a estratégia que eu, ao longo da minha vida, tive como uma das mais importantes. Também tenho me dedicado muito à cultura popular do modo como ela é realmente. E sempre considerei a tradição como um fim em si mesma, não como matéria-prima. Mas o campo da experiência, do choque, também sempre me interessou muito. Foi o que apliquei no trabalho do Sonorosa. Colocar guitarras, arranjos de outros tipos, compositores de outro universo para dialogar com Anderson. Apostei no choque e na quebra de referências mesmo, até como estratégia de comunicação com o público que é mais da música, da música pop, do cenário independente. Estratégia que, nesse caso, deu certo. Primeiro, porque o disco é bonito e, segundo, porque a gente conseguiu fazer ele rodar”, complementa Siba.

***

“Na ciranda, a melodia vem logo, já no maracatu, acordo animado e faço um verso ou outro. Procuro sempre inovar, contar algo. Fiz uma música, dia desses, a partir de uma novela que tinha na Globo, A força do querer. Era a história de um casal que se deixou, mas ainda dava tempo de se ajeitar. E eu gosto de sofrência”, contou Anderson Miguel, sobre seu processo de composição, numa conversa que tivemos na sede do Maracatu Águia Misteriosa, localizada no Bairro de Sertãozinho, antes do isolamento social, para a realização deste perfil.

Atualmente, a palavra sofrência, na música, costuma ser associada ao sertanejo universitário, gênero impulsionado pelo agronegócio e cujos hits ocupam o topo nas plataformas de streaming. Embora Anderson escute e inclua essa vertente mais recente do sertanejo em seu repertório, ele não deixa de lembrar que sempre gostou das fases mais antigas, uma das quais consagrou um de seus grandes ídolos: “Em 2003, comecei a cantar escutando Zezé di Camargo. Até o cabelo eu tinha como o dele”.

Grande admirador da canção, Anderson Miguel tem fascínio por melodias trabalhadas e letras românticas. É fã dos mestres da cultura da Mata Norte, mas em sua playlist no Spotify também tocam Maria Bethânia, Seu Jorge, Caetano Veloso, Ana Carolina, Djavan, Os Nonatos, o pernambucano Martins, além de outros nomes da música brasileira. No carnaval de 2019, o jovem artista deu ao clássico Sonho meu, a partir da escuta de Bethânia, sua versão no maracatu, costurando com improvisos.

De tanto emprestar sua voz talhada no baque solto e na ciranda a shows de amigos pela região, Anderson decidiu ampliar sua carreira e ter também um trabalho interpretando sertanejos, pagodes e forrós mais eletrônicos, além de canções autorais. Desse modo, em 2018, criou com amigos o Forronejo, outro braço de sua carreira, cujo repertório é voltado para sucessos d’Os Nonatos, Marília Mendonça, Wesley Safadão, Gusttavo Lima, Bruno e Marrone, bregas recifenses como a Musa, além de pagodes dos anos 1990, principalmente Raça Negra e Revelação. Mas, na maioria das vezes, quem escolhe o que vai ser cantado é a plateia.


Mestre Anderson Miguel leva o álbum Sonorosa ao festival Coquetel Molotov em 2018. Foto: Hannah Carvalho/Divulgação

Antes do período de isolamento social, com o Forronejo, a média de shows era de 15 a 20 por mês. O artista levou esse projeto para diversos bares e casas de shows em toda região e na capital. Mas a maior parte de sua renda vem das apresentações com a Ciranda Raiz da Mata Norte, com a qual chegava – antes da pandemia – a fazer entre 30 a 35 apresentações anuais, só que com um cachê um pouco maior que o do Forronejo. “Poderia ser melhor, mas a cultura popular sempre fica em segundo plano para os contratantes, que preferem pagar melhor um artista de fora do que um artista de casa”, pontua Anderson.

Com 19 mil seguidores no Instagram, ele utiliza a rede social como meio de divulgação de sua agenda, disponibiliza o contato para interessados em contratar seus shows, mas também como forma de manter-se próximo aos fãs. “Praticamente todo dia estou postando algo. Uso o Instagram mais para trabalho, sempre no cru, sem fazer promoção. Não gosto de pagar por seguidores. Quero seguidores fiéis, não comprados.”

A partir de sua arte, o maior desejo que tem é garantir um futuro financeiro tranquilo para sua filha, Marília Gabriella, de cinco anos. Por sinal, a menina já segue o pai pela música. Gosta de cantar e reconhece, de longe, a voz dele quando está chegando em casa. “Minha filha me colocou juízo, na verdade. Antes dela, eu fazia muitas farras. Não era namorador, mas era festeiro demais. Hoje, penso duas vezes quando vou gastar com algo, porque penso primeiro nela”, afirma.

Mesmo em espaços em que o público não tem o hábito de frequentar sambadas de maracatu ou cirandas, como Anderson já é um mestre conhecido, acaba sendo comum alguém pedir um improviso de um verso no baque solto ou uma ciranda. “Sempre pedem e não posso nem negar. Minha ideia é quebrar o gelo das pessoas que não vão para maracatu. Tem um bar em Carpina, o Bar do Tony, em que a galera só queria ouvir sertanejos, forrós, bregas e tal. Mas, ultimamente, quando eu chegava por lá, não saía sem cantar um maracatu. Começaram a pedir todas as vezes. Então, quer dizer, onde a gente não via essa tradição, ela está chegando também.”

Embora haja esses intercâmbios e diálogos entre as expressões artísticas nas quais desenvolve, Anderson Miguel demonstra delicadeza em tudo o que se propõe a fazer com a música. Cada uma tem suas práticas, histórias e conta com a dedicação de muita gente, inclusive de quem veio antes dele. Mas ele sabe que a cultura e seus atores transformam-se quando no mundo. E, para ilustrar isso com poesia, tomemos emprestados estes versos de uma música de Siba e a Fuloresta: “Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar/ Tem hora que até me canso de ver o mundo rodar/ Toda vez que dou um passo, o mundo sai do lugar/ Mas desde que o mundo é mundo, nunca pensou em parar”.

“Aprendi uma coisa com Mestre Zé Galdino, que é: quando eu for cantar ciranda, esqueço o maracatu; quando for ser mestre de maracatu, esqueço que sou cantor de forró; quando eu canto forró, esqueço que sou cirandeiro e por aí vai. Criei uma identidade para cada coisa. Mestre Anderson, no baque solto; Mestre Anderson Miguel, no Sonorosa e na Ciranda Raiz da Mata Norte e Anderson Miguel, no Forronejo. Isso porque, se eu botasse só Mestre Anderson para tudo, as pessoas poderiam perguntar: quem é esse mesmo?”, sintetiza Anderson Miguel da Silva Adão.

Reveja nosso vídeo com o mestre no especial sobre ciranda:

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

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