Crônica

Ocupar as mãos

TEXTO GIANNI GIANNI

04 de Janeiro de 2021

Ilustração FILIPE ACA

[conteúdo na íntegra | ed. 241 | janeiro de 2021]

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Esta crônica começou de muitas formas, nenhuma chegou a ser escrita. De início, partia do exemplo já cansado de que hoje as pessoas só largam o celular quando entram debaixo do chuveiro. Gostava dessa versão, pensava em relacionar com um mesmo sonho que me foi narrado por dois ou três colegas no qual se estava tomando banho de mar e, de repente, notava-se o aparelho à mão, o que mudava a emoção onírica. Depois, me dei conta de que o foco desta história é a comida e tentei imaginar, no alvoroço da rotina, como fazer ver que os alimentos interditados para encontros românticos, ainda sem intimidade, tinham vocação meditativa. A última investida me ocorreu enquanto estava em uma praça de alimentação antes de seguir para a consulta com o oftalmologista. Observava quantos faziam sua refeição com as duas mãos empenhadas no prato; na maioria dos casos, uma delas estava ocupada com o feed das redes sociais.

eis mais um texto que já se perde na entrada
certamente arrasto concretizá-lo por também
eu
passar tempo demais com as mãos monopolizadas
por algoritmos

Vamos ao que interessa: caranguejos. Passei a pedir delivery de caranguejo aos domingos, o que me fez pensar se o handfullness não seria mais apropriado para a sociedade ocidental que o mindfullness. Sempre fui uma dedicada apreciadora desse crustáceo, de uma forma que até hoje não aprendi a me dedicar à escrita. Posso passar horas, tardes, esquecida do mundo mastigando patinhas pelo prazer de um mínimo bocado dessa carne. Conheço a perder de vista pessoas que não têm paciência, comem um ou dois, mas jamais uma larga panela que exija tempo.

Começo a desconfiar de que a questão não é somente o tempo investido e a retribuição em porções dosadas, o problema é ele ser um alimento que ocupa as mãos. Desafio o leitor a usar o celular enquanto come caranguejo, fazendo o trabalho completo, é claro, que envolve estraçalhar a cabeça do bichinho. Comer caranguejo requer mãos com atenção plena e disposição para ser um corpo: que mastiga, se suja, se mela, se lambe. Aliás, caranguejo pode ser constrangedor em um date sem intimidade e seu traço meditativo vem desse estado de presença que ele convoca, era disso que falava lá no início.

Algumas frutas com cascas que não ingerimos e com oferta pequena de carne ao redor de suas sementes também possuem rituais próprios, que podem ocupar as mãos e o tempo de seus devotos; penso na pitomba e, sobretudo, na pinha. Não faltarão difamadores para chamar de mau negócio o esforço de língua e dentes para apropriação dessa polpa fracionada. Raspar e separar, dentro da boca, o que se come e o que se cospe, em exercício de concentração, enquanto os dedos vão ficando peguentos do açucarado da mucosa da fruta.

Na outra ponta, amparado em guardanapos mais lambuzados, agora pelo excesso de ingredientes cremosos e pela arquitetura do prato, temakis e acarajés também ocupam as mãos e pedem alguma atenção – certamente não se recomenda para primeiro encontro. Mas não é como se pudéssemos estender essa inespecífica lógica a qualquer petisco, qualquer pastel de feira ou coxinha, afinal tudo isso é possível se carregar com uma mão enquanto algo é feito com a .

Finalmente, chego ao item que, assim como o caranguejo, pode te ajudar a dar intervalos na excessiva vida digital, voltar ao corpo e ter um instante de larga e enraizada presença: o item que combina a semente, a polpa, as mãos e o lambuzado:

a manga.

Há terapeutas que vão te recomendar nem que sejam 10 minutinhos de prática meditativa por dia. Caso você não consiga, eu, uma terapeuta quase lá, vou te receitar a pausa da manga. Pode ser do tipo espada, rosa, tommy... Coma manga, dê esse intervalo na sua tarde. Se for manguito, que sejam dois. Você pode ficar à vontade para cortar em partes, mas é obrigatório chupar o caroço ao final, e o ciclo só se fecha ao remover todos os fiapos que restarem entre os dentes. Ocupe suas mãos com essa tarefa, esvazie a mente.

Apesar do tom de chiste, a indicação é sincera. Em momentos caóticos de minha vida, experimentei contato profundo com a matéria de que sou feita – meus fluidos, texturas, instintos – enquanto comia manga. Não é brincadeira nem só imagem: esta crônica existe pelo efeito que o caranguejo e a manga têm sobre meu corpo

não depois de comê-los,
mas enquanto os como.

Talvez essa devesse ser a relação básica com todos os alimentos, a qual violentamos diariamente. Mas o caranguejo e a manga me obrigam a estar integrada com o todo deste planeta; criam um vínculo entre o corpo e a natura.

Um pouco como
quando
ocupamos as mãos
cavando buracos na terra
para acomodar as plantas.

Por ter uma mente agilíssima, que às vezes me faz sentir a fronteira com o surto de mania logo ali na esquina; por cair nas arapucas da compulsão tecnológica mesmo consciente dos lugares exatos onde elas estão; por ter a imagem dessa desordem nos meus textos,

cada dia mais e sempre alucinadamente labirínticos:

por essas e outras, busco saídas para afinar o ritmo do corpo & tanto mais encontro quando a mente para em

um
lugar
por vez.

Todos os dias em que você sair do eixo, observe com o que anda ocupando as suas mãos. Na dúvida quanto ao que fazer, pegue uma manga.

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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