Ensaio

Sertanejo, hegemonia e modernidade

TEXTO Marcos Queiroz

01 de Fevereiro de 2021

Uma geração de artistas marcou a transição da música caipira para o sertanejo

Uma geração de artistas marcou a transição da música caipira para o sertanejo

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[conteúdo na íntegra | ed. 242 | fevereiro de 2021]

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Em 2017, direto da quadra da Portela, campeã do carnaval do Rio, a amiga Winnie Bueno relatava que, entre um samba e outro, saía das caixas de som um hit de Marília Mendonça. Aparentemente, um fato menor de fim de carnaval. No entanto, havia uma certa grandiosidade nesse pequeno evento, algo inimaginável na história da cultura brasileira. Entre comemorações, gritos e festejos, a reverberação da sofrência pelo espaço-tempo máximo das escolas de samba apontava que o sertanejo tinha ido longe demais. Marília, na quadra da vitoriosa Portela, era uma metáfora da impressionante hegemonia e abrangência do sertanejo no Brasil. Estilo que representa cerca de um terço da audiência no rádio, com bilhões de execuções nas plataformas de streaming e dominante, quase sem exceções, do Oiapoque ao Chuí. 

No entanto, a compreensão dessa hegemonia musical é muitas vezes captada por um discurso polarizado, ausente de profundidade. Por um lado, não se pode realizar análises críticas do estilo, na medida em que se incorreria em uma espécie de “elitismo” ou “academicismo” distante dos gostos das massas brasileiras. Por outro, infere-se que qualquer tentativa de entendimento do sentido estético por trás desse fenômeno é uma espécie de nacionalismo barato, uma ode ao mau gosto e ao artisticamente ruim. Diante disso, para "desinterditar" o debate, cabe se perguntar, criticamente, como um estilo se tornou tão dominante nas últimas décadas em um país como o Brasil, continental e profundamente diverso, especialmente em um contexto de suposta maior descentralização da produção de conteúdo.

Tal questionamento pode ser rastreado de diversas formas, mas aqui se opta por um caminho específico: compreender a ascensão do sertanejo dentro do processo de modernização conservadora vivenciado pelo Brasil no século XX e início do XXI. Particularmente, como o estilo incorpora e incide esteticamente numa estrutura nacional, sendo parte decisiva na "eletrificação" da música "tradicional" brasileira. 

Desde meados do século passado, parte da tradição sociológica brasileira, como Florestan Fernandes, Luiz Werneck Vianna e Clóvis Moura, apontava uma tendência de inserção do Brasil no mundo moderno. Nela, o país apresentaria avanços modernizantes (urbanização, industrialização, a emergência de uma sociedade de classes, a complexificação da vida cultural e política etc.) que conviveriam com uma pesada herança "arcaica" (o latifúndio monocultor, o autoritarismo, a extrema desigualdade social, a baixa democracia, o capitalismo dependente etc.). Otimistas ou pessimistas, a pergunta de fundo que norteava o debate era: qual o lugar do Brasil na modernidade? Ou melhor: o que seria a modernidade brasileira? 

ELETRIFICANDO A RAIZ
No plano estético, desde o início do século XX, essa tensão entre modernização e tradição ganha outros sentidos, pois é marcada por uma busca de um Brasil que pudesse se autofotografar sem vergonha de si mesmo. Um país que tinha como condição para ser moderno assumir suas múltiplas identidades. 

É na música que essa tensão ganha uma dimensão mais profunda, expressa sobretudo na incorporação e generalização do uso da guitarra por essas terras. Na sua inserção em diversos gêneros, a guitarra marca e conduz a passagem para uma produção e circulação mais urbana, vertiginosa e acelerada. É o instrumento base de reinvenção de códigos tradicionais em uma “estética moderna”. O rock, que surge, em boa medida, de ritmos negros da diáspora, é o exemplo por excelência desse fenômeno. No Brasil, a despeito da guitarra já ser usada antes desse momento, temos, por exemplo, o debate em torno do disco África Brasil (1976), de Jorge Ben, que introduz a eletricidade aos ritmos afro-brasileiros. Na alquimia de Ben, esse álbum é um passo adiante: a eletrificação do violão percussivo. 

O debate sobre "modernização" do "tradicional" ganha novos tons na década de 1990. Redemocratização, metrópoles caóticas, violência, expansão comunicacional e "globalização" são ingredientes do caldo. Como cantava Chico Science, o lema era modernizar o passado como evolução musical. Antenas enterradas na lama. Captar o universal com os pés no solo, enraizados nas dinâmicas locais. É o programa político da Geração dos 1990. Fiquemos ainda na guitarra. Ela marcará o passo, por exemplo, do forrocore do Raimundos, dos riffs e solos do Chiclete com Banana, dos bits de Fred Zero Quatro e Lúcio Maia no Manguebeat e da metalização do forró eletrônico.

Aí chegamos ao sertanejo. Nesse momento, a guitarra conduz uma transformação interna dentro do estilo. Essa mudança foi inaugurada anteriormente por artistas como Léo Canhoto e Robertinho, Sérgio Reis e Milionário e José Rico, na transição da música caipira para o sertanejo propriamente dito, numa dialética entre moderno e rural. A fase do "iê-iê-iê ao êê-boi", na feliz expressão do historiador Alessandro Cavichia Dias. 

Uma geração de artistas marcou a transição da música caipira para a sertaneja       
Uma geração de artistas marcou a transição da música caipira para
o sertanejo. Imagens: Reprodução

Nos anos 1990, são exploradas novas paragens estéticas para além da fórmula "raiz" e do bucolismo acústico. Com isso, o estilo não só incorpora atributos globais da época (as love songs; a melodicidade gritada do rock e do pop dos anos 1980 e 1990; o country por aqui generalizado nos folhetins televisivos), mas também se abre para as transformações históricas em curso e os novos estilos de vida. Particularmente, articula-se uma resposta ética e estética ao devir da estrutura nacional: a continuidade do sertanejo diante do fim da vida no campo. O mais importante: tal "modernização" do estilo permite uma autorreinvenção permanente. 

Com isso, nas disputas em torno da modernidade brasileira por meio da guitarra nos anos 1990, o sertanejo é o grande vencedor. Enquanto o rock e os gêneros correlatos tornaram-se cada vez mais adeptos da boa etiqueta e deslocados da verve anárquica, o sertanejo mainstream investiu na continuidade da "eletrificação permanente" de todo o Brasil. Na realidade, "universitário" eram os outros, não o sertanejo. Isso incluía uma potência fagocitária. Alguns exemplos ilustrativos. Na guitarra, vemos Jorge e Mateus e outras duplas dialogando com o indie, a grande cara do rock no novo milênio, trazendo para o sertanejo os riffs baladas no estilo Two Door Cinema Club. 

Saíamos das cordas. A cozinha do sertanejo se expandiu imensamente nas últimas duas décadas, ganhando maior centralidade na condução musical e aparelhagem, dialogando com outros estilos populares brasileiros. Aqui destacam-se três deslocamentos. 

Primeiro: a conversa criativa com dois dos grandes ritmos em expansão no Brasil desde os anos 1990: o axé e o funk. Disso decorreu a possibilidade de inserção do sertanejo em novos públicos, regiões e espaços (como o carnaval de Salvador). 

Segundo: rumando para uma das suas origens, as fronteiras do Brasil, a "nova" cozinha sertaneja dialogou com os dominantes reggaeton e bachata da América Latina. De quebra, reintroduziu o bolero na grande cena brasileira. A presença constante do bongô em duplas como Henrique e Juliano é uma amostra desse aspecto. 

Terceiro: o baixo "groovado", forte, bailado e extremamente marcado, dinamizou o ritmo. Por um lado, isso o transpôs do bucolismo rural para os risca-facas urbanos, trios elétricos e paredões de som. Por outro, ampliou seu leque estético, ao incidir, recauchutar e incorporar as culturas do arrocha, do brega e do forró eletrônico. Nada melhor para visualizar a profundidade e hibridismo dessa cozinha do que um show do Wesley Safadão. 

Além dessa "eletrificação estética" do tradicional, há outras três estratégias vitoriosas do estilo. A primeira é que o seu mainstream foi aquele que mais rapidamente se adaptou às novas plataformas de divulgação de conteúdo, como o Youtube e o Spotify. Neste sentido, o sertanejo se vale intensamente de feats: o uso de convidados e parcerias como estratégia de divulgação e forma de aumentar o engajamento e exposição dos artistas. Ou seja, um fortalece o outro. Isso não só permite a expansão e integração do público dentro do estilo, mas fora dele, como os hits Loka e Você partiu meu coração, que abocanharam ouvintes do pop e do funk. 

Ademais, o sertanejo foi um dos primeiros estilos a abandonar a centralidade da fórmula álbum para investir nos shows e no conceito do "ao vivo". Uma síntese profunda dessas características é o álbum Todos os cantos (2019), de Marília Mendonça, lançado de maneira itinerante. Nele, cada single era veiculado de surpresa em uma cidade específica. 

Por fim, entre os estilos dominantes no Brasil na última década, de longe o sertanejo foi o que mais conseguiu incorporar dinâmicas, estilos, representações, perspectivas e vozes de mulheres como cara do seu produto. "Patroas", "Chora não, coleguinha" e "Então é aqui o seu futebol toda quarta-feira" são mais do que bordões, mas expressões de um gênero musical que construiu outra leitura de si mesmo.

BRASIL SERTANEJO
Essa tessitura estética, política e afetiva permite também compreender como o sertanejo contemporâneo atravessa e incorpora a estrutura histórica do Brasil. A partir dos anos 1980, o estilo foi o lócus de reinvenção do projeto conservador no país, ainda que encampado por dinâmicas modernizantes. Desde esse momento, faz-se presente um profundo processo de "reprimarização" e desindustrialização nacional, que conjugou a vitória quase total do latifúndio agroexportador no campo e a ascensão de vidas precárias no mundo urbano. A queda da complexidade produtiva foi acompanhada do protagonismo de atores "tradicionalistas" e conservadores, expressos, por exemplo, na bancada BBB (boi, bíblia e bala) do Congresso Nacional.

Nesse contexto, a hegemonia sertaneja ilumina importantes aspectos políticos. Primeiro: dentro do sistema eleitoral brasileiro, as trocas entre entes federativos ainda são extremamente determinantes. Perdura a circulação dependente entre poder municipal, estadual e federal, em que as disputas locais ainda determinam bastante quem é eleito no nível federal. Melhor dizendo: as máquinas municipais são extremamente relevantes para o resultado global das eleições. 

Dentro desse circuito, o sertanejo é elemento importante da engrenagem. Se fonte considerável da renda do estilo vem de shows, boa parte deles são realizados em parcerias com prefeituras. Prefeitos que se valem do prestígio e das relações conferidas pelo estilo para consolidar o seu domínio. Assim, um dos aspectos de reprodução da hegemonia sertaneja é o duradouro e enraizado patrimonialismo. Injetando valores em um estilo musical, o Estado é utilizado na reprodução de poderes oligárquicos no nível local e nacional. Poderes esses que têm como escopo a defesa do latifúndio e de um modelo neocolonial de desenvolvimento. No sentido descrito por Ana Manuela Chã, o sucesso econômico do sertanejo segue o modelo de sucesso do agronegócio, ambos interdependentes e baseados em forte incentivo estatal. 

Ao analisar o samba, Ana Maria Rodrigues descreve uma tendência interna da música brasileira: espoliação branca de criações negríndias. Essa fagocitação e esse aniquilamento também são vistos no sertanejo nas últimas décadas. A história da música Pense em mim é representativa. Como narra Bruno Romani, no ano de 1990, ela foi a canção carro-chefe de virada no estilo: "Guitarras dobradas emprestadas do heavy metal (olá, Iron Maiden!), bateria com timbres de synthpop, sopros e teclados mais urbanos e aquela voz aguda de fazer todo corno chorar. O sax na introdução de Pense em mim, por exemplo, poderia ser um dos tantos temas do Kenny G (Calma! Não fujam! Não cito mais ele.). Tudo isso foi fundamental para que a canção invadisse a cidade grande e dominasse rádios e TVs".

No entanto, a história da música começa em 1985, no Morro da Nova Cintra, em Santos, quando Douglas Maio, José Ribeiro e Mário Soares a compuseram como reggae e de maneira inusitada. Após o estrondo de Pense em mim na voz de Leandro e Leonardo, Douglas Maio tentou embarcar na vida de cantor de sertanejo. No entanto, ele conta que o racismo o impediu de ir adiante, a exemplo de episódio no Programa do Gugu, em que a produção cancelou sua apresentação quando viu que ele era negro. A discriminação racial e a morte do filho o levaram a ficar 10 anos afastado da música. 


'Pense em mim', música eternizada nas vozes de Leandro e Leonardo (acima) é de autoria de Douglas Maia, José Ribeiro e Mário Soares. Imagem: Reprodução

O caso de Douglas é símbolo de um gênero que se apropriou de estilos, ritmos e instrumentos eminentemente negros, indígenas e populares, mas que tem como rosto público duplas, quase que em sua totalidade, brancas. Embranquecimento e limpeza estética a serviço do capital, tornando o estilo "palatável" ao grupo público. Basta procurar um único negro ou indígena no mainstream do sertanejo. Por outro lado, quando se olha para quem está, em geral, no fundo do palco, as faces não brancas se tornam mais comuns.  

Se o sertanejo produz um espelho branco como representação do Brasil, ele também depende de certa articulação da masculinidade. Como aponta Mariah Gama, a música sertaneja pode ser entendida como uma tecnologia de gênero. A despeito da maior incorporação de mais mulheres no seu mainstream, o estilo ainda veicula sentidos afetivos e sociais perpassados pela subordinação feminina, a romantização da violência masculina e a idealização da relação amorosa acima de outros valores sociais. Ou seja, estabiliza padrões de relacionamento, família e afetos à imagem e semelhança de uma suposta vida tradicional, perpassada pela hierarquia entre homens e mulheres. 

Ademais, o sertanejo contemporâneo tem como base um padrão de masculinidade hiperindividualista, hedonista e irresponsável, com arroubos autoritários, no qual a autorrealização do "eu" se sobrepõe a valores comunitários. A moral do "desce mais um combo", com suas bebedeiras e ressacas, do uísque com energético, da traição e das vinganças, da ostentação e da balada, estruturam um imaginário do ser homem. Tal imaginário decorre e incide na própria estrutura histórica brasileira, em que a ética Mad Max (ou, chamada por Florestan, em outro contexto, de ética flibusteira) permite a reinvenção do "devir sertanejo" em um país no qual a própria vida bucólica no campo, antiga paisagem estética da música caipira, deixa de existir. 

Essa ética do todos contra todos adequa-se à precariedade da vida nas cidades e à erosão do mundo dos direitos, permutado pela razão neoliberal, expressa na cultura do coach, na "meritocracia" e na lógica do vencedor. Ela também substitui, no inconsciente, o ideal da antiga vida rural e simples pela identificação com o latifundiário e seu respectivo projeto de país. Faces de uma ética conectada a um modelo econômico inconteste, em que a terra – explorada, avassalada, destruída e sublimada – é fiadora de um projeto autocrático e desigual de país: produção e exportação de commodities primárias para pagar as contas do consumo urbano. Como no sertanejo, a terra é central, ao mesmo tempo em que não é. 

A hegemonia sertaneja reflete características da sociedade brasileira desde os 1980, na qual a monocultura musical e a monocultura econômica alimentam-se uma da outra. A evidência desse lado conservador da modernização não deve ser entendida como uma simples adequação da superestrutura cultural à lógica da estrutura social, muito menos como um generalizado processo de alienação da população brasileira. Nuances, disputas, incorporações e distensões praticadas pelo sertanejo – pelo estilo em si, mas por aqueles que o produzem, circulam, ouvem e vivem – denotam batalhas vencidas e perdidas na esfera cultural brasileira, atravessadas por distintos projetos de país. Vitórias e derrotas de um tortuoso caminho nacional.

MARCOS QUEIROZ, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília, com sanduíche na Universidad Nacional de Colombia.

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