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TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Outubro de 2012

No The Nu Project, o fotógrafo Matt Blum trabalha o conceito de “nu honesto”

No The Nu Project, o fotógrafo Matt Blum trabalha o conceito de “nu honesto”

Foto Matt Blum/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 142 | outubro 2012]

15 de abril de 1980.
“Quer dizer, o que é melhor ou menos ruim: levar uma passada de mão no traseiro, nas ruas, nos ônibus, ou sei lá onde, ser cantada atrevidamente ou virar manchete de ‘notícias populares’ como vítima de violência sexual?” O tom dessa missiva, endereçada ao programa TV Mulher, é de uma franqueza pavorosa. A cultura do estupro é justificada pela remetente. Em outras passagens, ela defende que o comportamento típico dos homens brasileiros é consequência da mistura das raças e, em seguida, alega que a mulher deveria ficar satisfeita com essa situação, pois trata-se do reconhecimento da sua sensualidade.

Embora a violência sexual agrida qualquer pessoa sensata, ela está mais naturalizada dentro de nós do que pensamos. No livro O canibalismo amoroso, Afonso Romano de Sant’Anna alerta para a emboscada: “Os limites entre o desejo por um objeto e o desejo de destruição desse objeto são muito tênues”. Recorde-se, por exemplo, que, no século 19, o Código de Napoleão protegia os abusadores, proibindo as mulheres de pesquisarem a paternidade dos filhos que esperavam, frutos de violações. Historicamente, houve avanços na conscientização sobre a prática hedionda. Ainda assim, o alcançado é pouco, pois a retórica machista prevalece, obrigando muitas garotas estupradas a ouvirem que as suas roupas “pediam” uma investida.

Um comentário desse tipo, pronunciado por um policial do Canadá, foi o estopim para mulheres do mundo inteiro articularem as Marchas das Vadias, nas quais reivindicam a autonomia dos seus corpos e mais respeito por eles. Após uma série de episódios de abuso sexual, envolvendo alunas da Universidade de Toronto, o policial Michael Sanguinetti defendeu que, se as estudantes não se vestissem como “vadias”, o número de agressões não seria tão alto. A argumentação é sustentada pela premissa da mulher tentadora, vestida de modo a atiçar os homens; o corpo percebido pela sua possibilidade de uso e não pela condição subjetiva que carrega. Contra isso, as marchas mobilizam pessoas de todos os gêneros e idades, que condenam uma sociedade de corpos indefesos e aprisionados nas teias das representações midiáticas em prol de uma anatomia equilibrada e segura de si.

A historiadora Natália Barros pontua a nova imagem que o feminismo, pouco a pouco, configura no contemporâneo: “As pessoas têm, no geral, uma visão caricaturada da feminista como a mulher séria, asséptica e nada erotizada. Sinto, ainda, muito preconceito. Mas acho instigante como as feministas contemporâneas desnorteiam essas representações, militando e apresentando suas pautas de reivindicações com irreverência, criatividade e sem abrir mão de suas escolhas de modelo de vida familiar”.


A Marcha das Vadias começou no Canadá e se espalhou pelo mundo. Foto: Divulgação

Imagens e representações da mulher sedutora – a Eva sexy que inunda o cotidiano dos filmes, das novelas e dos produtos do consumo – têm sido decisivas na reiteração desse tipo de leitura do corpo e da vestimenta, assim como na manutenção do sentido desse corpo feminino existir em função dos homens.

NU HONESTO
Num contraponto, as linguagens visuais se tornam também um lugar de resistência, a partir de projetos que assumem outro olhar. Um dos trabalhos mais conhecidos, nesse sentido, é The nu project, iniciado em 2005 pelo norte-americano Matt Blum. O fotógrafo produz imagens que classifica como “nus honestos”, cujo protagonismo não é de modelos, mas de “mulheres normais” dentro de suas casas. Além disso, não existem critérios de seleção das fotografadas, apenas é necessário que tenham mais de 21 anos e estejam dispostas a ser um corpo sem as correções e a perfeição dos programas de edição.

Depois de realizar mais de 100 sessões nos Estados Unidos e em alguns países da América do Sul, Matt Blum chega ao Brasil em novembro, para realizar seu trabalho com as mulheres daqui. O que talvez o norte-americano não saiba é que um profissional brasileiro desenvolve um projeto parecido, bastante divulgado nos últimos meses. O Apartamento 302, de Jorge Bispo, ficou conhecido na internet por também trazer anônimas registradas sem roupa, em P&B. O fotógrafo possui larga experiência com nus, já que fez trabalhos para revistas masculinas como PlayboyVip e Trip, mas, nessa iniciativa pessoal, Bispo preza pela espontaneidade e diversidade de belezas, com a diferença de fazer uma seleção prévia das participantes, ao contrário de Matt Blum.

Para a fotógrafa Joana Pires, integrante do coletivo 7fotografia, embora não seja possível dimensionar o efeito desses ensaios no imaginário sobre a nudez, eles são louváveis pela provocação que, delicadamente, fazem. “Projetos como esses caminham para uma humanização do corpo feminino e para a aceitação de outras formas de vê-lo – potencialmente sensual, como qualquer corpo nu, mas não apenas isso. Acho que existem dois aspectos importantes que esses trabalhos refletem: a aceitação pela mulher de sua autoimagem (a foto faz com que ela aceite o próprio corpo, com tudo o que há de individual nele) e a apresentação da mulher como um ser, que não existe apenas para ser bonito.”

Um dos capítulos mais fortes dessa relação com a autoimagem é o ensaio de David Jay, fotógrafo de moda que mudou a direção da lente depois que uma de suas melhores amigas, de 29 anos, foi diagnosticada com câncer de mama. Ele, então, acompanhou o tratamento dela e idealizou o projeto Scar, Survivor Cancer, no qual retrata mulheres que tiveram a mesma experiência. Agora, o corpo traz a cicatriz, o mutilamento, o trauma e vai ficando ainda mais distante do padrão midiático. Jay enfrenta o clichê da “deformidade”, mostrando ao mundo que não se trata da perda, mas da mudança da forma, que segue igualmente viva, humana, única e bela. 

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