Arquivo

'Periscópio': Saga de clausura e mistério

Longa-metragem do cineasta mineiro Kiko Goifman traz uma trama que tem como base o isolamento de dois homens num apartamento

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2015

No longa, o crítico Jean-Claude Bernardet contracena com o ator João Miguel

No longa, o crítico Jean-Claude Bernardet contracena com o ator João Miguel

Foto Caetano Brenga Bitencourt /Divulgação

Não há como pensar o cinema brasileiro da segunda metade do século 20 sem recorrer a Jean-Claude Bernardet. Pesquisador, escritor e teórico, este belga de origem francesa se tornou bússola e farol na crítica cinematográfica ao começar a escrever para o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, na década de 1960. Autor de Brasil em tempo de cinema (Civilização Brasileira, 1967) e Cineastas e imagens do povo (Brasiliense, 1985), Bernardet é um prolífico ensaísta. E, para surpresa de alguns acostumados a vê-lo apenas através do matiz do crítico, é também um excelente ator, como atesta Periscópio, em cartaz no país neste mês.

Dirigido pelo cineasta mineiro Kiko Goifman, o filme traz Bernardet à frente das câmeras como um dos dois protagonistas e nos créditos como roteirista. A saga de clausura e mistério entre Eric, o personagem vivido por ele, e Élvio (João Miguel, de Cinema, aspirinas e urubus e O céu de Suely), dois homens isolados em um apartamento e mergulhados em uma relação tumultuada de asco e dependência, é uma ideia do ator/roteirista estrangeiro. “A história nasceu a partir de sequências criadas por Jean-Claude. Existe uma questão dele com os temas de solidão, vigilância e dor. Eram assuntos que nos interessavam. Ele me mandou e escrevemos o roteiro, com ajuda de Claudia Priscilla e Olivia Brenga, assistentes de direção e de roteiro”, conta Goifman em entrevista à Continente.

Os dois já haviam trabalhado juntos em FilmeFobia (2008), em que a versatilidade de Bernardet já se evidenciara com naturalidade. Em Periscópio, no entanto, há mais espaço para ele crescer como intérprete. No hiato entre o que a trama permite entrever e o que o público apreende – Qual é o vínculo entre aqueles dois homens? Por que estão sozinhos no prédio? –, percebe-se uma dedicada construção dramática por parte dos dois atores. A cumplicidade em cena ajuda a aproximar o espectador daquela misteriosa situação de solidão e apego – em especial quando um terceiro elemento é acrescentado.

E qual seria esse outro vértice? A palavra que dá título ao filme não é uma metáfora. Em certo momento, a rotina de agressão mútua de Eric e Élvio é interrompida pela chegada de um periscópio, a destruir o chão da sala e se fincar como uma luneta ou um espião. A narrativa assume, então, o tom de uma inteligente e curiosa reflexão sobre esses tempos em que tudo é exposição – vidas devassadas nas redes sociais a partir de uma distorcida lógica de que “faço, sou visto, logo existo”. Para aqueles dois homens em compasso da espera, aguardando a morte ou qualquer outra revelação e/ou revolução, a descoberta de que algo ou alguém deseja vê-los funciona como um gatilho.

“Usamos essa ideia simples de um terceiro elemento que chega e modifica tudo. Como o tempo é fundamental pro filme, essa lógica do gatilho é perfeita. A chegada do periscópio é algo que os faz levantar e dançar”, comenta o cineasta. Kiko Goifman não se interessa por elaboradas explicações. Sua trajetória como diretor – iniciada com 33 (2002), documentário em que ele mesmo aparecia em cena numa busca por seus pais biológicos, e acrescida de Atos dos homens (2006) – é uma prova de que o cinema que ele pratica se afasta de fórmulas prontas e exige do espectador um olhar atento para imersão, fruição e sua própria fabulação a respeito do que é visto.

Um exemplo é a inserção da lenda de São Jorge na trama de Periscópio. Élvio é apresentado como devoto e o lúgubre apartamento é adornado por diversas imagens do santo. Há, inclusive, uma cena da morte do dragão reencenada diante da “coisa”, como o personagem de Jean-Claude Bernardet chama o objeto que os encara. Mas não há uma promessa de redenção de quem quer que seja patrocinada pelo ícone católico. “São Jorge entra como um motivador de histórias. Jean-Claude adora o que chama de não-significação e isso é, basicamente, o que fizemos no filme. A presença do santo pode ser lida de várias formas, como a leitura de um brasileiro com um interesse por religiões negras e o olhar de um europeu. Mas isso fica para o espectador decidir”, pontua Kiko Goifman.

A mesma liberdade outorgada ao público foi dada aos intérpretes durante as filmagens. Jean-Claude Bernardet e João Miguel puderam inventar, expandir e forjar novas situações em cima do roteiro. “Sempre gosto do improviso como possibilidade criativa. Existia roteiro, mas sempre aberto. Eles puderam criar algo mais, o que foi muito bom. João Miguel é um dos maiores atores brasileiros. Aprendi muito com ele”, revela o diretor, para quem Periscópio “tem a ver com cinema, performance e artes plásticas ao trazer uma inegável questão de metalinguagem”.

Nada mais metalinguístico do que ter como ator um dos críticos mais perspicazes do cinema brasileiro. A presença de Jean-Claude Bernardet dá força e propulsão a Periscópio e amplia as possibilidades interpretativas do enredo. “Trabalhar com Jean-Claude é um prazer de vida. Dedicado e sério como ator, ele é detalhista e cuidadoso, muito preocupado com o sentido da performance”, alinha Kiko Goifman. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”