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Arquitetura compromissada com o contexto

TEXTO Fernando Diniz Moreira

01 de Novembro de 2010

[conteúdo vinculado à reportagem de "Arquitetura" | ed. 119 | novembro 2010]

O estabelecimento de Acacio Gil Borsoi
no Recife, na década de 1950, marcou indelevelmente a arquitetura local, tanto pela formação de novos arquitetos por sua atividade docente na Escola de Belas Artes de Pernambuco como pelas soluções projetuais que se tornaram paradigmas arquitetônicos na Região. Sua obra sempre se desenvolveu procurando adaptar ideais universais da arquitetura moderna a uma realidade regional, com suas particularidades culturais, climáticas e construtivas. Esse compromisso com o contexto pode ser medido pelo seu esforço em projetar levando em consideração três tipos de preocupações: a inserção de seus edifícios na malha da cidade, a adaptação deles ao clima local, e a intermediação entre materiais e técnicas construtivas modernas e tradicionais. Esses três aspectos podem ser vistos em maior ou menor grau em todos seus edifícios, mas aqui gostaria de explicitá-los em dois, hoje um tanto esquecidos na cidade.

O edifício Santo Antônio (1960) nasceu de uma necessidade dos frades franciscanos de um empreendimento que gerasse rendimentos para a Ordem. O projeto consistiu num edifício de lojas e salas comerciais dispostas em dois blocos perpendiculares nos fundos do convento de Santo Antônio, que fazia face à recém-aberta Avenida Dantas Barreto. O edifício foi uma resposta às condições urbanas. Ele dialoga com a modernidade da Avenida Guararapes por meio de suas linhas e galerias, com o convento por meio de um bloco com telhado tradicional e com vizinho Fórum ao respeitar sua escala e ao valorizá-lo com a textura neutra de sua frente.

A fachada é, sem dúvida, o grande protagonista dessa peça. Para quebrar a luz do poente, Borsoi dispôs uma membrana de proteção solar, uma combinação de um elemento de cimento armado desenvolvida exclusivamente para essa obra. A textura desfaz distinções entre claro/escuro, cheio/vazio, fechado/aberto e termina por desmaterializar, mas, ao mesmo tempo, dar profundidade à fachada. Considerando a superfície como uma grande janela, Borsoi propôs uma forma inovadora de pensá-la. Ela protege contra o poente, filtra a luz, capta e dissipa o ar; enfim, faz com que o edifício respire.

Esse exemplar demostra ainda o esforço de Borsoi de colocar em prática a racionalização da construção em um contexto de precariedade técnica, ou seja, como intermediar o industrial e o artesanal na construção. Investigando e experimentando, ele criou esses elementos da fachada, que eram executados na obra pelos próprios operários (seus croquis eram desenhados para serem entendidos pelos trabalhadores mais humildes). Essa industrialização feijão com arroz, como ele próprio nomeou, era capaz de transformar obstáculos em oportunidades.

MULTIFAMILIAR
O edifício Mirage (1967), em Boa Viagem, foi fruto de um momento de transformação do Recife, quando residências unifamiliares começaram a ser substituídas por edifícios de apartamentos e populações começaram a se deslocar para os subúrbios, particularmente, para o litoral sul, que passou a ser uma área privilegiada para moradia. Borsoi teve uma participação fundamental na definição do edifício residencial multifamiliar no Recife.

Ele procurou responder a uma questão central: como reinterpretar formas culturais do morar ligadas ao rés do chão em um edifício alto.

Essa obra inaugurou uma série de edifícios verticais, nos quais Borsoi e vários arquitetos locais lançaram mão de uma série de elementos que marcaram a arquitetura recifense: a divisão do bloco em base, corpo e coroamento; os jogos dinâmicos de planos e volumes, tirando partido das varandas e armários sacando do volume; o uso comedido da cor, como resultado dos diferentes materiais; o uso de cerâmicas e azulejos; o emprego de artifícios de adaptação climática, como o peitoril ventilado, cobogós e elementos vazados; e a preocupação com arremates e detalhes construtivos.

Ao procurar uma relação com o contexto urbano imediato, a planta do Mirage quebra a ortogonalidade tão comum nos edifícios altos. Como o edifício não dispunha de vista frontal do mar, Borsoi lançou mão do escalonamento dos quartos, chanfros, reentrâncias e saliências para que todos os cômodos olhassem para o mar. Toda a fachada se abre para captar a ventilação por meio de janelas e varandas. Mesmo na face voltada para o lote vizinho, Borsoi cria janelas tipo seteiras, que sacam do volume principal, preservando a privacidade e permitindo a captação da ventilação. Suaves escadarias e plataformas configuravam uma transição leve a amigável entre lobby e rua, depois rompida pela introdução de uma guarita.

Esse é um dos bons exemplos da busca de Borsoi por uma arquitetura mais expressiva a partir de exposição direta de materiais e elementos tectônicos. Segundo Borsoi, a forma final do edifício não deveria esconder o processo construtivo, pelo contrário, deveria expor a estrutura, as junções, a articulação dos materiais. A clara exposição das partes, a honestidade construtiva, a utilização dos materiais brutos, a evidenciação do processo construtivo está na raiz da boa arquitetura. Nesse edifício, observa-se um expressivo contraste entre o tijolo das alvenarias e concreto aparente das estruturas.

Esses dois edifícios resumem a real tarefa do arquiteto, segundo Borsoi: “É um esforço para viabilizar uma arquitetura de qualidade, baseada na resolução de problemas construtivos, tecnológicos e de adequação ambiental, procurando transformar a crônica carência de recursos materiais em fator de estímulo às soluções apropriadas e respostas criativas”. 

FERNANDO DINIZ MOREIRA, arquiteto, professor de Arquitetura e Urbanismo da UFPE e diretor do Ceci.

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