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As narrativas visuais feitas de barro que deram novo rumo à arte popular

O mestre de Caruaru ocupa um posto emblemático: não somente fez escola em sua cidade, como inaugurou formas no cenário artístico brasileiro

TEXTO Maria Alice Amorim

01 de Junho de 2009

A terracota modelada e cozida deu forma à poesia visual de vários artistas

A terracota modelada e cozida deu forma à poesia visual de vários artistas

Foto Fundação Pierre Verger/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 102 | junho 2009]

Que segredos nos d
á a terra, quando apreciamos o legado de civilizações passadas? Que sentido podemos dar ao barro que, segundo múltiplas cosmogêneses, é de onde viemos e para onde retornaremos? Pois bem, o barro que nos concede assento nessa cadeia de ciclos vitais concede-nos igualmente uma perpetuidade num mundo rico de imaginário simbólico, quando transformado em narrativa poética de formas e volumes escultóricos. É pela terracota modelada e cozida que podemos desvendar um pouco os modos de vida de grupos culturais, de antepassados. No Brasil dos primórdios, o principal contributo nas artes cerâmicas é devido às culturas indígenas de variadas etnias, em que a arte marajoara é uma das que mais se destacam.

Em Pernambuco, cenário de profusão de ceramistas figurativos, o sertão, a mata, o agreste e o litoral oferecem matéria-prima para a poesia visual construída pelas mãos de inúmeros e de geniais artistas, entre eles Francisco Brennand, Tiago Amorim, Ana das Carrancas, Zé do Carmo, Severino de Tracunhaém. E o mestre Vitalino aí ocupa um posto emblemático: não somente fez escola em Caruaru, como inaugurou um novo ciclo no cenário artístico brasileiro.

PROTAGONISMO
É o que confirma um dos mais importantes pesquisadores da cerâmica popular do Brasil, o antropólogo Ricardo Gomes de Lima, diretor do Museu de Folclore e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ): “A obra de Vitalino é importante não só para a arte cerâmica brasileira, mas para a arte popular como um todo e para toda a arte brasileira. Foi a produção deste sertanejo que, na feira de Caruaru, na década de 1940, atraiu o olhar do também pernambucano Augusto Rodrigues, arte-educador e também artista. E ele trouxe, pela primeira vez, a arte popular à discussão, introduzindo os objetos de fatura das camadas inferiores da sociedade no chamado mundo das artes. Talvez, Augusto Rodrigues não tivesse a dimensão exata de seu gesto, mas foi ele que, ao dar a devida importância a Vitalino, mudou o rumo da história da arte no país. Embora muitos tenham adotado uma visão preconceituosa, a partir daí a história e a crítica de arte não mais puderam ignorar essa produção. O papel de protagonista adotado por Vitalino, então, não pode ser ignorado. Pela primeira vez se apresentavam ao público, no Rio de Janeiro, objetos de origem popular e se dizia: – Isso é arte”.

Vitalino era um grande desconhecido do público brasileiro, até o momento em que Augusto Rodrigues (1913-1993) organiza, em 1947, no Rio de Janeiro, a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana e apresenta diversas obras do ceramista, obras dotadas “de uma vitalidade franca e comovente”, conforme registra o texto do catálogo, escrito pelo poeta Joaquim Cardozo. A partir de então, passa a integrar o circuito de galerias, inclusive internacional, e diversas reportagens tornam mais visível a obra do artista. “É interessante notar que isso irá acontecer em 1947. Muito tardiamente, se considerarmos que uma primeira geração de modernistas insurgira-se contra os modelos europeus na década de 1920. Sem querer negar a importância dessa geração, não me parece ser uma profanação dizer que modernistas como Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Vicente do Rêgo Monteiro e tantos outros, que preconizaram a importância do desenvolvimento de uma arte genuinamente brasileira, se aproximaram do popular, vendo ali uma excelente oportunidade para criarem, eles próprios ‘a verdadeira arte’. Todos se aproximaram do mundo popular, mas os populares, em certo sentido, permaneceram em segundo plano. Até chegar Vitalino”, avalia Ricardo Gomes.

QUATRO ELEMENTOS
Vida, invenção, vitalidade é o que representa o nome deste artista que transformou água, barro, fogo e ar em interpretações vigorosas do dia-a-dia, interpretações construídas em bases bem concretas, aquelas do ver, ouvir, sentir. Interpretações que, antes mesmo de construídas, floresceram graças à ação de raízes bem-fincadas num terreno argiloso em que os costumes do campo, as práticas da urbe e o imbricado de relações estabelecidas no convívio das festas de rua e das feiras livres trouxeram à imaginação do mestre os motes que, poeticamente, foi glosando sob a forma escultórica de gente e bichos em cenários nos quais o binômio natureza-cultura é um todo insolúvel.


Até 1947, momento em que participa da 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, o mestre era um ilustre desconhecido. Foto: Fundação Pierre Verger/Divulgação

Para a escultora mineira Néle Azevedo – que começou modelando figuras em situações do cotidiano –, esta narrativa visual é uma das características da escultura popular: “Pensando com os modelos próximos, o artista tenta colocar ali o que mais o toca, o que mais o atravessa, e o processo criativo é justamente a tentativa de traduzir esse atravessamento. Além disso, o barro é uma matéria que convoca uma memória ancestral. Eu mesma não consigo modelar em outro material. As figuras, que hoje construo em gelo, resina acrílica ou metal, nasceram de uma memória de tempo e espaço em minha pequena cidade, onde via as mulheres sentadas na soleira da porta ou nas calçadas, olhando o mundo”.

Falar em Vitalino significa, portanto, falar em bonecos de barro que evocam memórias, testemunham um modo de viver local que não escapa à compreensão universal da natureza humana. Falar em Vitalino significa emocionar-se com a profusão de cores, movimentos, formas, volumes que o artista intuitivamente foi escolhendo para compor personagens e cenas características de trabalho escultórico consagrado e instituído, pelos contemporâneos e companheiros de arruado, como um estilo a ser adotado com o fervor próprio de discípulos. Falar em Vitalino significa apreender um ethos e respeitar um artista que soube aliar sensibilidade, mãos hábeis e inteligência. E, para falar sobre Vitalino, o antropólogo Ricardo Gomes ressalta que “Lélia Coelho Frota é a autora que fez a mais importante análise do caráter antropológico da obra de Vitalino. Em sua visão, ele construiu peças da maior grandeza não só em termos estéticos como também por ser o grande documentalista dos valores de seu grupo social, da sociedade de sua época. Suas peças são, assim, objetos de arte e documentos etnográficos, registros dos modos de vida, dos ritos de passagem, das festas, do cotidiano, do mundo do trabalho e do mundo do lazer, da vida e da morte, enfim, uma visão holista do mundo”.

CALUNGAS DE BARRO
Nascido no dia 10 de julho de 1909, foi em 1948 que Vitalino arranchou-se no Alto do Moura, localidade que usufrui, desde então, das benesses conquistadas pela fama mundial do ceramista. Sua obra extrapola o binômio popular-erudito, como atesta a pesquisadora da USP e PUC-SP e pensadora da cultura Jerusa Pires Ferreira: “O impacto da descoberta de Vitalino foi muito grande, conduziu à descoberta da importância desse legado. E a voga chegou de tal maneira em São Paulo, que não existia nenhum lugar em que não houvesse um nicho com algum trabalho de Vitalino. Ele soube realmente sair do espaço folclórico e ganhar dimensão universal.”

A partir da década de 1930, a inventividade do artista engendrou o que passou a chamar de “peças de novidade”, ou seja, a construção de grupos de figuras humanas que reproduziam o cotidiano e diferiam do que se fazia em cerâmica, na época. Um investimento, portanto, em temáticas que incluíam procissão, retirantes, boi, músicos, banda de pífano, trio nordestino.


A partir de 1930, o artista criou um trabalho batizado de “peças novidade”, que reproduziam o cotidiano, como a pega do boi. Foto: Roberta Guimarães

Foi a partir da condição de fiel observador do cotidiano do povo, dos ciclos vitais da humanidade, que a gente, os costumes e as crenças funcionaram como esteio para as mãos hábeis do ceramista transformarem o barro em arte. E, graças a essas interpretações particulares da temática regionalista, lançaram olhares sobre ele os irmãos caruaruenses José, Elísio e João Condé, generosamente auxiliados pelos artistas plásticos Abelardo e Augusto Rodrigues, responsáveis por levarem o artista popular ao circuito dos salões de arte, mundo afora, e à conquista de um lugar especial no território sagrado das artes cerâmicas.

Fazendo repercutir a consagração conquistada na década de 1940, em janeiro de 1949 Vitalino participa, com Severino de Tracunhaém, de exposição no Museu de Arte de São Paulo (Masp), outra vez organizada por Augusto Rodrigues: o mestre de Caruaru comparece com cerâmica policromada e o mestre de Tracunhaém com barro vidrado em tom natural. Ainda pela mão dos Rodrigues e dos irmãos Condé, participa, em 1955, em Neuchâtel, Suíça, da sua primeira exposição internacional, Artes Primitivas e Modernas do Brasil, cuja temática oferecia um diálogo entre as artes tradicionais e contemporâneas.

CERÂMICA NARRATIVA
Quanto ao estilo particular de construir uma narrativa poética visual, sabe-se que, em Pernambuco, antes de Vitalino, somente os Faustino tinham executado composições grupais de escultura cerâmica popular. O filho Severino diz que o artista chegou a criar, no barro, 118 temas, que ele, sobretudo ele, e os irmãos Amaro, Manuel, Maria, Antônio e Maria José trataram de reproduzir a fim de perpetuar as invenções artísticas do pai. Invenções que passam a ser eternizadas também nas revistas, jornais, fotografias, filmes e livros, a exemplo do que faz o Instituto de Pesquisas Sociais (IPSO), da Fundaj, e a Prefeitura de Caruaru que, em 1972, editam o livro Vitalino: ceramista popular do Nordeste, com texto do antropólogo René Ribeiro e fotografias de Marcel Gautherot e Cecil Ayres.

A editora Massangana, da mesma Fundação Joaquim Nabuco, em 1986, publica o livro Mestre Vitalino, de Lélia Coelho Frota. Igualmente em museus, a obra do mestre é imortalizada. No Rio de Janeiro, pelo menos quatro deles guardam acervo do ceramista: Museu de Folclore Edison Carneiro, Museu da Chácara do Céu, Casa do Pontal e Museu Nacional de Belas Artes. No Recife, há obras no Museu do Homem do Nordeste e no Museu de Arte Popular. Em Caruaru, a memória do artista é preservada no Museu do Barro e na Casa-Museu Mestre Vitalino.


A figura do negro é dominante nas peças de Zé Caboclo. Foto: Divulgação

“Penso que Vitalino deva ser tomado como ícone de um grupo de ceramistas que habitavam o Alto do Moura e, como ele, produziam peças de excelente fatura e significado ímpar. Refiro-me a pessoas como Zé Caboclo e Manuel Eudócio, seus ‘cumpadres’. Além de contemporâneos, constituíam um grupo bastante coeso em que a concorrência estava ausente. Há diversas passagens da história de vida desses artistas que relatam a troca de descobertas entre eles, o companheirismo, a amizade. Considero Zé Caboclo um artista cujas obras têm a mesma importância estética das peças criadas por Vitalino. O Museu de Folclore Edison Cordeiro e o Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, têm em acervo peças que confirmam o que digo”, complementa Ricardo Gomes. De fato, entre os primeiros seguidores de Vitalino estão Zé Caboclo, ou José Antônio da Silva, Manuel Eudócio Rodrigues, José Rodrigues da Silva, Ernestina Antônia da Silva, cuja atuação consolidou-se em escola artística, que ainda hoje engendra novos talentos, em sua maioria oriundos da família dos ceramistas contemporâneos do mestre.

ZÉ CABOCLO
Considerado o primeiro dos discípulos, Zé Caboclo caracterizou-se pelas moringas antropomórficas, com tampa sob forma de chapéu, pés de arame e cabeça de Lampião ou Maria Bonita. Filho de louceira, possuía intimidade com o barro desde a infância. Caracterizou-se por cenas rurais e de profissionais em ação ‑ e ainda mais pelo estilo inconfundível na representação do maracatu, cavalo-marinho, bumba-meu-boi. A figura do negro é presença dominante nas peças de Caboclo, o que era inusitado entre os ceramistas populares, segundo escrevem Hermilo Borba Filho e Abelardo Rodrigues, no livro Cerâmica popular do nordeste.

Outro pioneirismo na cerâmica figurativa do Nordeste, ainda conforme Hermilo e Abelardo, diz respeito às peças de grande porte encomendadas a José Rodrigues, Manuel Eudócio e Severino dos Anjos, para a instalação do Museu de Arte Popular de Caruaru, em 1961. A partir daí, Zé Rodrigues passou a adotar esse tamanho nas peças, inclusive nos santos de barro vidrado. Severino dos Anjos fazia cangaceiros, metade jarro, metade gente, de cerca de um metro; santos em cerâmica vitrificada e galinhas em tamanho natural.

Criada a escola, inaugurado um estilo, consagrado o artista, Vitalino aponta para a vitalidade de um conjunto artístico, legado que nos deixou e pode ser apreciado em museus e coleções. As peças narram um universo cultural deliberadamente descrito pelo escultor e, ao mesmo tempo, apontam para a construção de uma trajetória artística que não menosprezou os experimentos com tintas artesanais, com tintas industriais, com o barro cru, com a composição de conjuntos escultóricos formados por peças esculpidas e planejadas individualmente, aos pares, ou por peças projetadas em bloco e assentadas em base única. Composições enfileiradas, espalhadas, lado a lado, em círculo, apontam para a eloquência de uma narrativa visual sem meias palavras, para uma compreensão dos dramas e conflitos da existência humana. Apontam para a existência de um artista que, olhos sensíveis, soube armar um cerco à vida e capturar-lhe aquilo que há de belo, contraditório e comovente. São golpes certeiros apontando, enfim, para a construção engenhosa de uma obra mitopoética que brindou com vida imorredoura esta invenção de mestre. 

MARIA ALICE AMORIM, jornalista, pesquisadora de cultura popular e doutoranda em Comunicação e Semiótica.

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