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Cacofonia: Como as pessoas reagem aos sons

Se, para uns, o som amplificado nos carros significa ruído ensurdecedor, para outros, em geral, os usuários, pode soar como calmante

TEXTO ANDRÉ DIB
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Janeiro de 2013

Moradores da rua Mamede Simões, no Bairro da Boa Vista, reclamam do barulho produzido pelos frequentadores dos bares

Moradores da rua Mamede Simões, no Bairro da Boa Vista, reclamam do barulho produzido pelos frequentadores dos bares

Foto Ricardo Moura

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 145 | janeiro 2013]

Estalos, buzinas, gritos, alarmes, sirenes,
rugidos de motor. Ruídos de alta e baixa intensidade, música, propaganda, protestos, gente. Muita gente. Todos os dias, as grandes cidades geram sons de toda a sorte. Sintoma da desordem urbana, hoje a sinfonia da grande cidade está mais para cacofonia. Uma realidade inevitável, que influencia, e muito, a forma como nos relacionamos. Entre os extremos – há quem se estresse e há quem simplesmente não se importe – vejamos as diferentes formas de se lidar com o excesso de informação sonora.

Recife. Uma tarde qualquer, a luz do sol queima na calçada da Avenida Dantas Barreto. Num pequeno quadrante, pedestres esperam o ônibus – ali convivem vendedores de frutas, peixes, cigarros e caranguejos. O jovem DJ Eduardo, codinome Dudu Boladão, vende CDs e as próprias seleções de sucessos do funk. “Quando alguma loja reclama, abaixo o volume, mas, se não tocar alto, não dá pra vender o produto”, diz Dudu. Um carrinho amplificado de música cristã também “dá o seu recado”.

A balconista da farmácia diz que não se incomoda com o fuzuê. Logo ao lado, no balcão de crédito pessoal, as funcionárias desmentem. Para seguir ao fim do expediente, precisam de analgésicos. “Fica difícil atender chamadas ao telefone. Quando chego em casa, ainda tenho que aguentar o som alto do vizinho”, diz Rilânia Monteiro. Em determinada hora do dia, a própria empresa em que trabalham liga o sistema externo de som, para chamar novos clientes. De tempos em tempos, funcionários da Diretoria de Controle Urbano (Dircon) colocam alguma ordem no caos.

A cada seis meses, os mesmos funcionários municipais visitam a Rua Mamede Simões, polo etílico-cultural do local e um dos redutos da boemia ao ar livre no Bairro da Boa Vista. Mesas são recolhidas das calçadas, que, no dia seguinte, voltam a ocupar a via pública. São oito bares em um trecho de menos de 100 m, o que tem gerado embates com os moradores. Pessoas precisam dormir. Síndico do prédio exposto ao burburinho, Janeilton Pereira diz que os problemas começaram quando surgiu o Bar Central. “Antes, havia uma boa convivência com os outros bares. Mesmo com o regimento do edifício proibindo esse tipo de atividade, o condomínio fazia vista grossa. Depois que o Central abriu, o incômodo ficou maior.”


A equipadora de Leonardo Seabra instala “paredões” (conjunto de caixas de som) em automóveis

Proprietário do Central, André Rosemberg não se sente responsável pelo transtorno. Desde que inaugurou o bar, em 2005, a parte interna foi isolada acusticamente. No fim de 2011, após mais uma notificação da prefeitura, só voltou a posicionar suas mesas na calçada com autorização oficial. Foram 10 meses de espera. Atualmente, o horário máximo de atendimento ao ar livre é até a meia-noite. Os demais bares, que acolhem o público excedente, não recebem reprimendas e agem como se a conversa não fosse com eles.

Rosemberg espera que a gestão municipal desenvolva, em 2013, uma política de ordenamento para ocupação dos espaços públicos. “Há muitos anos, o poder público não demonstra interesse em encarar seriamente a questão. A Prefeitura do Recife proíbe, em lei, o uso de calçadas e outras áreas públicas, mas, na prática, estimula a ocupação irregular e desordenada dos espaços públicos, ao fechar os olhos e tolerar todo tipo de utilização”, diz Rosemberg, em carta aberta aos clientes.

Um exemplo de quem extravasa gerando o próprio barulho é Leonardo Seabra, dono de uma equipadora de som para automóveis no Arruda, zona norte do Recife. Dentro de seu carro, um Gol azul-marinho, ele ajusta os alto-falantes para a comemoração de seu aniversário, em Itamaracá. “O som é meu, mas a música é de todo mundo”, diz. Para ele, o grande barato é a sensação de criar uma festa, ver todos dançando com a vibração do som. “Não quero briga, quero trazer alegria. É como estar num show, sendo que você coloca o artista que quiser.”

Leo já teve problemas com polícia e hoje defende o uso consciente. Apenas aumenta o volume longe dos vizinhos. Para testar o equipamento dos clientes, vai até o canal mais próximo. E só aumenta o próprio som em festas e na praia, onde a música se dissipa no mar. Enquanto se movimenta no trânsito, fecha as janelas e faz uma demonstração. O ar pressiona suas costas a cada batida grave. No sinal fechado, os carros ao lado tremem. “Tenho prazer de escutar som alto, me acalma”.


O músico Marcelo Campelo lançou abaixo-assinado contra o uso de alarmes sonoros de garagem

Toda semana, ele participa do Quintas dos Paredões, quando cerca de 40 aficionados por som alto se encontram para praticar o hobby, num grande estacionamento na Avenida Perimetral Norte. “Paredão” é o nome dado ao conjunto de caixas de som, que, literalmente, formam uma parede ou outros formatos, o que leva o amálgama carro + som ser apelidado de transformer. Adepto do equipamento modesto, que cabe dentro do porta-malas, Leo conta que não há limites para um paredão, desde que ele esteja ligado em baterias automotivas. Seis carros já foram interligados no mesmo sistema. Um megatransformer.

CONVIVÊNCIA
No Bairro das Graças, um dos fundadores da banda Mombojó, o músico Marcelo Campello, tem problemas com a poluição sonora. Nos prédios ao lado da sua casa, alarmes sonoros de garagem são disparados em coro, no entra e sai dos automóveis. Para preservar os ouvidos na hora de estudar ou compor, ele fecha as janelas, liga o ventilador e usa um protetor de ouvidos. “Assim como com o ar poluído das cidades, nos acostumamos com a poluição sonora, mas ela não deixa de nos envenenar.”

Em outubro, Marcelo lançou um abaixo-assinado contra o uso indiscriminado de alarmes sonoros de garagem (peticaopublica.com.br). “No abaixo-assinado são solicitadas alternativas não poluentes, ressaltando o viés educacional.”

Um grupo foi criado no Facebook para discutir o tema e divulgar notícias. Com um mês online, 325 pessoas assinaram a petição. “Em breve daremos entrada no processo”, diz o músico. “Muitos países com IDH referencial adotam alternativas não poluentes, e é esse tipo de demanda que está surgindo aqui, diante do caos que se formou.”

Outros alvos potenciais do movimento são os alarmes de marcha reversa de automóveis e os alarmes antifurto. “Pelo excesso de alertas falsos, eles são desacreditados em situações reais, tornando-se inúteis, inclusive atrapalhando o trabalho da polícia”, diz Marcelo. Há o caso de um flagrante em vídeo de um alarme disparado sem necessidade feito pelo músico e artista visual Grilo, no centro do Recife. “Trata-se de uma agência de publicidade, com um sistema que, sem nenhum motivo, toca incessantemente, de madrugada até de manhã. O recepcionista diz que só o dono pode desligar o alarme”.


Thelmo Cristovam (foto) e Nicholas Hallet desenvolvem pesquisas sonoras

Um dos signatários da petição é o artista sonoro e pesquisador em psicoacústica Thelmo Cristovam. “Assinei, com ressalvas. Para mim, o problema não está nos ruídos, mas nas pessoas e tudo o que vem com elas.” Para Thelmo, a definição de barulho passa por convenções políticas e culturais. “Em nível de decibéis, a Mata Atlântica é mais barulhenta do que o centro de São Paulo. Acredito que ninguém gosta do som do trânsito, porque nele estão pessoas indo para compromissos. Ruídos de máquinas são perturbadores porque estão ligados ao mundo do trabalho. Sons de insetos não são harmônicos e as pessoas vão para o mato e acham lindo.”

A audição humana é muito mais eficiente do que um microfone pode captar. Além disso, é guiada pela subjetividade. “A nossa escuta é seletiva e simbólica”, diz Thelmo. “O ruído branco (combinação de todas as frequências) incomoda na TV fora do ar, mas é o mesmo ruído considerado relaxante quando vamos à praia”.

Entre os projetos de Thelmo está o Fonofotografia, que produz cartões-postais visuais e sonoros de diferentes lugares de Pernambuco, em parceria com o fotógrafo Luiz Santos. Ambientes como a Ponte Princesa Isabel, o interior dos ônibus que se deslocam pelo Recife e o Marco Zero são gravados por hidrofones (microfones subaquáticos) e microfones de contato, que transformam vibrações mecânicas em sons. O resultado surpreende, pois transforma ruídos irritantes em um mantra suave e acolhedor.

Por outro lado, ao reconstituir o ambiente sonoro de Olinda, do Vale da Lua (litoral sul de Pernambuco) ou da Usina Catende, Thelmo faz um apurado trabalho de edição e mixagem, de forma a se aproximar ao máximo à audição direta. “Parece que não há cortes, é uma analogia perfeita da experiência de estar no local. As pessoas dizem que eu não tenho humor, mas esse trabalho funciona também como uma piada interna, fazer o ouvinte acreditar que escuta exatamente o que eu escutei.” O projeto está na íntegra na internet, no fonofotografia.com.


Nicholas Hallet

Assim como Luigi Russolo (A arte do ruído: manifesto futurista, 1913), Eric Satie (Música de mobiliário, 1920), John Cage (4’33’’, 1952, e Silence, 1961), Pierre Schaeffer (Tratado dos objetos musicais, 1966) e Murray Schafer (A afinação do mundo, 1977), Thelmo compõe com ruídos, definidos por ele como “sons sem relação harmônica entre si”. Sua arte nem sempre é considerada música, avalia ele, por limitações semânticas. “Desde os gregos, a arte ocidental rejeita a frequência de sons sem relação com números inteiros. Para ela, beleza é justeza. Mas todo o jazz é baseado na blue note, a nota dissonante, não perfeita. Quando foi criado, o jazz era considerado barulho e hoje é sinônimo de bom gosto.”

FAUNA SONORA
Problemas entre vizinhos se tornaram regra nas grandes cidades e a livre propagação de ondas sonoras, que não respeita propriedade pública ou privada, é certamente um dos pivôs. No entanto, há recantos como o Sítio Histórico de Olinda, onde essa relação pode ser mais tranquila. O técnico de captação de som Nicolas Hallet diz que sim. Residente da Rua da Boa Hora, o imigrante de origem belga diz que passou os últimos 15 anos suportando a cultura sonora da Bahia. “Salvador foi eleita a cidade mais barulhenta da América Latina. Essa foi uma das razões de eu ter fugido de lá. Há desrespeito da vizinhança com relação ao som. Ele é usado como uma arma, quem toca mais alto tem mais poder. E, diferentemente de Olinda, o governo municipal nunca respondeu a isso.”

O Sítio Histórico é como uma ilha isolada da atribulada região metropolitana do Grande Recife, uma realidade à parte, com uma triangulação sonora singular. Do quintal de Nicolas, os sinos das igrejas e os cânticos dos monges e freiras se confundem com os sons emitidos da casa ao lado, um terreiro de candomblé de onde se ouvem as obrigações, rituais de jurema, leitura de búzios e batidas do maracatu. Na Rua 13 de Maio, há os ensaios de uma escola de sanfona. Na esquina, funciona o Bar de Zé Bento, que espalha a algazarra dos bêbados. A fauna local inclui gatos, cachorros e galos, que se misturam ao zumbido de insetos. “Vivemos uma forma de antropologia urbana, onde tudo se mistura, sem conflito. Há menos privacidade, pois podemos ouvir o vizinho tomando banho e usando a cozinha. E sabemos que ele também nos ouve. É uma vida coletiva, em que todos se respeitam.”

Embora Nicolas seja diariamente acordado por passarinhos, de seu quintal, já ouviu tiros vindos de uma comunidade que fica a duas quadras abaixo. “Se você deixa a janela ou porta abertas, a cada cinco minutos, alguém te chama para pedir dinheiro ou comida. Há também os vendedores de canjica, amoladores de faca.” À noite, a calmaria é tanta, que é possível ouvir os passos e a conversa de quem desce a ladeira, de longe. “Silêncio não existe, ao menos não neste planeta. Se você isolar acusticamente uma sala, vai ouvir os sons do próprio corpo. Se deixar na sala apenas um microfone, vai ouvi-lo funcionando.” 

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