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Cena recifense: Da banda mais root à pegada pop

TEXTO Marina Suassuna

01 de Outubro de 2014

N'Zambi, formado há 11 anos, no bairro da Várzea, é um dos grupos mais atuantes

N'Zambi, formado há 11 anos, no bairro da Várzea, é um dos grupos mais atuantes

Foto Ranna Santiago/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Sonoras" | ed. 166 | out 2014]

Dos anos 1990 para cá, o reggae proliferou feito pólvora
em Pernambuco, com diversas bandas do gênero surgindo, da mais root à mais pop. Até pouco tempo, podiam ser contabilizadas cerca de 50 bandas regueiras na capital pernambucana. Atualmente, nem todas se mantêm ativas, mas o número ainda é significativo, se comparado ao de duas décadas atrás. Nomes como Bantus Reggae, Brasáfrica, Favela Reggae, N’Zambi, Jerivá, Homem do Mato, Jahstafari, são responsáveis por movimentar o circuito local, apresentando-se tanto em eventos públicos como privados.

Uma das mais atuantes é a N’Zambi, que há 11 anos se mantém no Bairro da Várzea, propagando mensagem política e social com um sotaque pernambucano. “Tivemos a sorte de, logo no início, encontrar lugares fixos pra tocar, tanto na zonal sul como nos bairros da periferia. Isso fez com que conseguíssemos firmar nosso nome”, diz George, vocalista da banda, que tem dois CDs gravados, e já levou o reggae pernambucano para estados do Sul e Centro-Oeste do Brasil.

Com 10 anos de estrada, a Jerivá, formada no Bairro da Boa Vista pelos músicos Marcus Antonio e Eric Gabinio, também conquistou visibilidade, tocando nos principais festivais do gênero e defendendo, por onde passavam, o lado mais romântico e espiritual do ritmo jamaicano. “Era a nossa maior preocupação no início: transmitir mensagens relacionadas a Deus. Por isso batizamos a banda de Jerivá, que é o nome de uma palmeira e se assemelha a Jeová, que remete à Igreja”, explica Marcus, vocalista e guitarrista do grupo. A banda, que tem um disco autoral lançado em 2012, chamou a atenção do público logo no primeiro show, realizado em 2004, no Armazém 12, no Bairro do Recife.

Outra, ainda mais antiga, é a Bantus Reggae, que está há 20 anos em atividade, sendo, por isso, sinônimo de resistência. Independentemente dos shows, a banda, fundada pelo saxofonista Hildelarques, ou simplesmente Will, mantém uma rotina frequente de ensaios, tendo o reggae como um ritual. A temática religiosa é a principal assinatura do grupo. “Busquei conhecimento na Bíblia antiga. É muito importante enxergarmos esse gênero como um instrumento para fortalecer nossa fé. Não se trata apenas de um ritmo, mas de uma cultura, uma mensagem que toca em valores fundamentais”, define Will.

Embora muitos desses grupos estejam na estrada há muito tempo e com um trabalho autoral de qualidade, não contam com apoio necessário do poder público, da mídia e da sociedade em geral. São poucas as iniciativas que dão conta da dimensão que o reggae tomou na cidade.


Interesse pelo reggae despertou em Ívano após o show de Jimmy Cliff e Gil, no Recife, em 1979. Foto: Divulgação

Idealizada pela Gerência de Música da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, em 2008, a coletânea do festival Conexão Reggae é citada por vários artistas como um dos principais incentivos. Com tiragem de mil cópias, o álbum duplo é um mapeamento da prolífica cena da Região Metropolitana, reunindo músicas autorais de 24 das 36 atrações que passaram pelo projeto, realizado na Rua Vigário Tenório, no Recife Antigo.

A realização do Tributo a Bob Marley, no Pátio de São Pedro, em 2009, também foi vista como uma importante iniciativa de afirmação do gênero. No entanto, as dificuldades para a viabilização do evento, organizado pelos próprios artistas e bancado com dinheiro público, não deixaram de existir. Na época, Ívano declarou ao Diario de Pernambuco que precisou reunir uma verdadeira “tropa de choque” para obter a verba junto à Prefeitura. No mesmo ano, o Festival de Inverno de Garanhuns abriu espaço, pela primeira vez, para o reggae do estado, dedicando uma noite inteira aos artistas do gênero no Parque Euclides Dourado.

PRECONCEITO
Mesmo com todo o sucesso do gênero em Pernambuco, o preconceito com o estereótipo regueiro é citado pelos músicos como uma marca de sua história. “Sou de uma geração em que o fato de usar dread locks já era um problema. Nos anos 1980, por volta dos meus 16 anos, estava passando pelo Mercado de São José e, de repente, uma mulher começou a jogar tomate em mim só por causa do meu cabelo”, conta Valdi Afonjah.

Para Ívano, que era abordado constantemente na rua pela polícia, as redes sociais e, de certa forma, a mídia televisiva vêm contribuindo para desestigmatizar o visual. “Agora você já vê um menino de dread em Malhação. Com o tempo, não vai ter mais como segurar. É como a tatuagem, que antes era vista como coisa de marginal e hoje em dia todo mundo usa.”

Um dos principais motivos de resistência ao reggae ainda é a associação ao uso da maconha, que está na raiz do estilo musical. Segundo José Mário Austregésilo, mais de 60% da população jamaicana consome a erva, que, para eles, é símbolo religioso, transformando-se em ritual. “No Brasil, de um modo geral, o reggae ainda não é visto em sua amplitude. Há uma visão muito estreita, que reduz o estilo à ‘música de maconheiro’. E, pelo contrário, trata-se de uma música de altíssima qualidade. Parece repetitiva, mas não é. Existem vários estilos. Os estúdios da Jamaica são frequentados e cortejados por grandes nomes. O problema é que as pessoas têm dificuldade de enxergar a maconha como um elemento cultural desse gênero musical. Na Jamaica, a erva faz parte da vida da população de uma maneira muito ampla e natural. Pra fumar, pra comer, botar no leite das crianças, curar feridas”, explica o jornalista.


Marcelo Santana é considerado um dos expoentes do ritmo em Pernambuco, ao lado de Valdi Afonjá, Saulo, Douglas e Ívano. Foto: Ana Araújo/Divulgação

Para George N’Zambi, um dos maiores desafios a ser alcançado pelos músicos de reggae é serem vistos como bandas de respeito dentro do universo da música brasileira.“Quem despreza o gênero é quem não tem propriedade e conhecimento sobre ele. Falo isso em relação às produtoras também. Há tempos que tentávamos tocar num festival local, mandamos material várias vezes e sempre tínhamos resposta negativa. O argumento era que, se entrássemos na grade, o público presente iria fumar maconha. Depois, alegaram que iria haver confusões. Imagina, um show de reggae ter briga!”, relata.

A falta de conhecimento também é apontada por Afonjah como um dos fatores segregadores. “A Jamaica é muito mais próxima do Brasil, mas temos mais informações dos Estados Unidos e da Europa. Se o reggae fosse uma música americana ou inglesa, ele seria mais respeitado. Bob Marley tem a mesma importância de Elvis Presley e dos Beatles. Mas ainda existe uma resistência. E eu não entendo o porquê. O hip hop, por exemplo, apesar de ser uma música jamaicana, teve uma penetração maior, porque chegou ao mundo como música americana. Os americanos se apropriaram desse estilo”, compara o músico, que, após passar cinco meses na Jamaica, onde visitou vários estúdios e ensaiou com The Wailers, voltou ao Brasil incorporando a filosofia rastafári, em 1996.

Apesar do reggae recifense ter seu público fiel, Marcus Jerivá acredita que o respeito vai aumentar no dia em que alguma banda local se projetar nacionalmente. “Quando algum músico local conseguir gravar um disco fora, isso pode mudar. Não adianta ter tanta história no gênero e não ultrapassar os limites regionais, não ter contribuído para sua difusão no Brasil”.

O autor de A magia do reggae acredita que o ritmo sempre sofreu uma certa indiferença do poder e da mídia, “que o encaravam como mais uma música de favelados, sendo insignificante, portanto, a ponto de lhe darem as costas”. São raras as iniciativas como a de José Mário Austregésilo, que, há quase 15 anos, mantém, na Rádio Universitária, o programa Hoje é dia de reggae, aos sábados.

PRODUTORES
Para Austregésilo, o problema também está na carência de produtores. Atualmente, no Recife, o circuito de shows pagos reveza-se apenas entre dois produtores, Dirceu Melo, à frente da Groovin Produções, e os sócios Rafael Infa e Pedro Ivo Rodrigues, da produtora Zero Neutro. Ambos passaram a investir na cena reggae dos anos 2000 para cá, realizando festivais e grandes eventos que contemplam não só as bandas locais, mas também nacionais e internacionais.


Bantus Reggae é uma das bandas responsáveis por movimentar o circuito regueiro local. Foto: Igor Gomes/Reggae pelo Reggae/Divulgação

Para Dirceu, o cenário hoje é bem mais animador do que nos anos 1990.“Houve uma evolução em todos os sentidos. Antes, tínhamos uma cena deficitária em termos de estrutura de bandas, organização, divulgação, valor de ingresso, patrocinador. Hoje, não está tudo às mil maravilhas, mas as coisas já melhoraram.”

Assim como Dirceu, Rafael Infa acredita que o mercado, o público e os eventos de reggae estão maiores, atingindo diferentes grupos e classes sociais. No entanto, não deixam de haver obstáculos. “Ainda temos uma grande dificuldade para fechar patrocínios e aprovar leis de incentivo”, avalia o produtor.

Uma iniciativa mais recente é o Reggae pelo Reggae, coletivo formado, em 2012, por cinco jovens apaixonados pelo ritmo. Além de promoverem pequenos eventos, muitos deles gratuitos, realizados no formato sound system em praça pública, o grupo também vem apoiando eventos maiores.

A quantidade e a frequência de shows na cidade, somadas a uma plateia mais expressiva, indicam, segundo Dirceu, a existência de uma demanda que esteve, por vários anos, reprimida. Não à toa, quase todos os grandes nomes do reggae nacional e internacional já passaram pelo Recife e costumam retornar. Um dos recordes de público foi a banda norte-americana SOJA, que ultrapassou mais de 10 mil ingressos vendidos na última apresentação em 2012, no Chevrollet Hall. Há cincos anos, a mesma casa de shows chegou a receber 12 mil pessoas para ver Alpha Blondy e The Wailers.

Também vale destacar o Pré no reggae, único grande festival gratuito do gênero, que acontece há seis anos na Rua da Moeda, na semana que antecede o Carnaval. O evento, produzido por Dirceu, em parceria com a Prefeitura do Recife, reuniu nas últimas edições cerca de 10 mil pessoas em dois dias de festival. A ideia surgiu diante do grande número de bandas locais que se inscreviam na grade oficial do Carnaval e não conseguiam retorno.


Jerivá. Foto: Fran Silva

Embora reconheça a importância dessa iniciativa, Marcus Jerivá acredita que esses eventos também podem segregar o reggae em relação ao que é feito na música popular pernambucana. “Nenhuma banda de reggae local entra na programação dos principais festivais do estado”, observa.

Segundo Dirceu, isso não deveria acontecer, já que a mensagem por trás dele é de união. “Trata-se de um tipo de música muito gostoso, de valores de energia positiva. É um ritmo simpático a vários outros nichos. Muita gente que gosta de rock, rap ou pop, gosta de reggae.”

Com a exceção dos festivais regueiros, que hoje totalizam uma média de 15 por ano, o dia a dia das bandas ainda carece de investimento. Normalmente, apresentam-se em locais pequenos, com ingressos baratos. Um dos pontos de resistência, responsável por consolidar o trabalho de várias bandas locais, é o Jardim do Reggae, em Olinda, que desde 2003 realiza show todos os domingos. Atualmente, está localizado na Cachaçaria Virgulino.

Se, de um lado, o Recife vem se firmando como uma das principais cidades na rota de todo artista do gênero, sobretudo internacional, de outro, os músicos locais lutam por reconhecimento. Segundo Valdi Afonjah, não existe um interesse por parte das produtoras em difundir essa cultura. 

MARINA SUASSUNA, jornalista.

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