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Clássico da poesia em narrativa gráfica

'Morte e vida severina' ganha nova adaptação para quadrinhos pelo cartunista Miguel Falcão

TEXTO Diogo Guedes

01 de Março de 2011

Imagem Reprodução

Um dos usos dos quadrinhos é servir como adaptação de obras de outros gêneros. O processo, por exemplo, transforma tomadas cinematográficas em imagens fixas e o texto corrido de romances em uma seleção ilustrada de descrições e diálogos, na maioria dos casos, preocupada em manter a fidelidade do enredo.

Adaptar poemas compostos quase totalmente por imagens e sonoridades de difícil transporte para essa linguagem parece um projeto ambicioso. A poesia dialoga razoavelmente bem com a ilustração, basta lembrar autores, como Manoel de Barros, que costumam inserir desenhos nas edições de seus livros. Fazer imagens poéticas, no entanto, virarem narrativas gráficas sem se tornarem vagas ou redundantes é uma tarefa hercúlea. Foi justamente essa a proposta do quadrinista e chargista Miguel Falcão em Morte e vida severina (Auto de natal pernambucano).

A obra em quadrinhos, lançada em edição não comercial em 2005, ganhou nova versão no final de 2010, mais uma vez pela editora Massangana (Fundaj). A publicação agora é acompanhada de um DVD com a adaptação de Morte e vida severina para desenho animado, dirigida por Afonso Serpa e realizada em parceria com a TV Escola. Os textos de apresentação da diretora de cultura da Fundaj, Isabela Cribari, e do coordenador da Massangana, Mário Hélio Gomes, lembram a data que originou a primeira versão do quadrinho, os 50 anos da institucionalização das Ligas Camponesas, cuja luta está presente na obra com a crítica ao latifúndio.

Pensando na dificuldade de uma adaptação, a escolha do poema de João Cabral de Melo Neto pode ser considerada desde o início um acerto. Além de conter um fio narrativo claro, o que dá à história personagens e um desenvolvimento lógico, Morte e vida severina é todo composto por versos em formato de diálogo ou discurso, permitindo que o texto seja inserido no balão dos quadrinhos, sem a necessidade de se cortar parte da obra ou de transcrever descrições de cenário.

Assim, a concisão e controle do poema são um ponto libertário para a adaptação. Miguel pôde representar livremente sua visão poética dos cenários do Sertão, do Agreste, da Zona da Mata e da capital do Estado, acrescidos de humanidade e crueldade, a partir do uso progressivo de linhas paralelas e sobrepostas, no belo traço do pernambucano.


Imagem: Reprodução

Na busca por ser didático – claramente uma das intenções da publicação - sem ser óbvio, o autor representa com propriedade os personagens. No momento da apresentação de Severino, no início do poema, Miguel desenha um carpinteiro comum, cartunesco, mas com o rosto que sugere as marcas da vida severina que é obrigado a levar. Os outros Severinos, “iguais em tudo e na sina”, também aparecem, com o mesmo rosto e os mesmos traços, ainda que exista alguma sutil diferenciação entre cada um deles, que é difícil de descrever – e é esse o exato sentido do adjetivo “severino” que João Cabral cria na sua obra.

Personagem tão importante quanto o retirante Severino é a Morte severina. A representação original de um esqueleto coberto com um manto preto e carregando uma foice é habilmente adaptada ao cenário da história. O rosto não traz um crânio humano, mas, sim, bovino, referência à imagens dos boi que falecem famintos e esturricados na seca. Nas mãos, a Morte leva machados ou espingardas, também assumindo o papel de mulher, padre e até do balseiro Caronte, da Divina comédia.

As imagens que Miguel acrescenta à história, sem deturpá-la, não se encerram aí. Severino encontra uma rezadeira, que sobrevive à custa do único mercado que nunca escasseia no Sertão, o da morte. Enquanto o diálogo entre os dois ocorre, o quadrinista mostra a senhora plantando pequenos crânios humanos e vendo esqueletos florescerem deles, representação da crueldade do seu ofício.

Por fim, Miguel também achou espaço para algumas curiosidades e homenagens. Personagens, como os coveiros e Seu José, o mestre carpina, recebem rostos baseados em figuras importantes da cultura pernambucana, como o geógrafo Josué de Castro, o sociólogo Gilberto Freyre e o ex-governador Miguel Arraes, esse encarnando a resposta final, otimista, do poema. 

DIOGO GUEDES, repórter da Continente Online.

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