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Confecção: Da colheita do algodão à harmonia da fibra urdida

Em todo o Nordeste, a produção é intensa e diversificada. No Ceará, encontra-se a maior variedade de motivos e materiais utilizados nas redes

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Julho de 2012

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 139 | julho 2012]

O processo de confecção da rede artesanal,
a que era produzida há algumas décadas pelos antepassados dos atuais fabricantes, difere bastante do atual. Como lembra o médico e escritor Ronaldo Correia de Brito, o modus operandis anterior envolvia quase sempre uma pré-produção, com raras exceções, hoje abolida, na qual se colhia o algodão, que era descaroçado e tinha seus fios penteados para serem colocados em novelos que, aí sim, entravam no momento de tear.

Em Pernambuco, hoje, as artesãs de Caraibeiras explicam que a confecção obedece às seguintes etapas: urdir (colocar os fios ao comprido, em linha reta), tecer (no tear manual ou elétrico), amarrar (dar pequenos nós para que o tecido não desfie), cochar (torcer o nó para que ele fique firme), perfilar (fazer o acabamento desses procedimentos), passar o cadil (barra que fica entre a rede e o punho, conhecida como mamucaba, no Ceará), fazer o punho (que deve ser bem firme para sustentar a rede) e, por último, fazer a varanda, que pode ser criada com vários materiais, pontos e tamanhos, de acordo com o gosto do artesão e do cliente.

Há algumas diferenças de nomenclatura entre os artífices de Pernambuco, Ceará e Paraíba, mas os processos se assemelham, embora os tipos de redes encontradas nesses estados sejam bastante variados. Em Caraibeiras, é tradicional a produzida no tear elétrico ou manual, com varandas em ponto de abelha, macramê e ponto de parede (com delicados fios de cordão).

Na Paraíba, as redes de tear também são comuns, mas os modelos mais valorizados são os conhecidos como “sol a sol”, cujo corpo, ao invés do tear, é composto por brim, com cadil imitando um bordado desfiado. Os modelos podem ter o corpo em brim liso, bordado, e varandas também lisas ou bordadas. Depende do capricho e da paciência da artesã. As varandas, de uma forma geral, são feitas em macramê, crochê ou tecido bordado.

Comerciantes da cidade afirmam que a modalidade sol a sol, com as varandas também em tecido bordado, foi criada por Herlinda Maria Diniz, 88 anos, que nasceu e vive nas redondezas de São Bento, tendo se mantido a vida toda, de acordo com ela mesma, “de fazer rede”. Sempre que passava pela cidade e via modelos de sol a sol bordados, pensava: “Vou fazer toda de tecido, toda bordada e vai ficar linda”. Devido à beleza das peças, tornou-se famosa entre compradores e colecionadores que procuram a cidade. Herlinda ou Dona Lalá, como é conhecida, deixou de produzir as redes devido à idade, mas tem na neta uma seguidora.


Nas varandas, utilizam-se acabamentos variados. Os bordados
valorizam as redes, transformando-as em peças com autoria

Essas redes, principalmente as todas lisas, apenas com a varandas bordadas ou tecidas, como as feitas em Várzea Alegre, no Ceará, são – na opinião dos que gostam de descansar ou dormir numa rede – as mais confortáveis, porque propiciam mais frescor e comodidade. “As bordadas são muito bonitas, decorativas, mas incomodam pela quantidade de detalhes que roçam na pele”, afirma Ronaldo.

Em Várzea Alegre, são fabricadas, ainda, peças em brim bordado, com varandas rebuscadas, em rendas e crochê. “São as mais bonitas e confortáveis”, defende a professora Fátima Moura, que costuma passar pela cidade para adquirir modelos. No local, também se encontram exemplares totalmente artesanais, produzidos desde a coleta do algodão ao trançado dos fios, com varandas rebuscadas bordadas delicadamente. A responsável pela manutenção dessa tradição é Merandolina Costa Pereira, que resiste às novas técnicas de produção.

PRIMITIVAS
No Ceará, ainda é possível observar a confecção da rede tradicional, que consiste apenas nas peças fiadas em tear, em algodão simples, sem textura, com três costuras (devido ao fato dos teares antigos serem pequenos) e sem varandas rebuscadas, ou até mesmo sem varanda. Mas essa versão, revalorizada pelas donas de casas e artesãs locais no início do século 20, transformou-se em objeto de desejo dos que buscam redes refinadas.

Em cidades como Caririaçu, artesãs como Zenilda Josefa Silva Simplício, residente na zona rural, no Sítio Abraão, produzem essas redes típicas, mas com detalhes rebuscados, como tramas e bordados que as tornam peças muito finas. São produtos que podem chegar ao preço de R$ 250. “Faço todas por encomendas. Bordo as costuras, as beiras das mamucabas, e minha irmã e primas fazem bordados em ponto de cruz bem caprichados e bonitos no corpo da rede e na varanda, normalmente feita em crochê”, descreve Zenilda Simplício, cuja renda semanal é de apenas R$ 30.

Em Santana do Cariri, outra preciosidade pelas mãos das cearenses. Uma cooperativa, criada em 2009 pela prefeitura local, resgatou uma arte antiga, a rede de renda de bilro, ou rede de almofada, criada há muitas décadas por Maria Cesarina Lacerda, que aprendeu o ofício com sua mãe Vicência, uma paraibana. Hoje, o projeto de revalorização da rede de almofada é mantido por sua filha, Luíza Lacerda, e as mulheres que nele estão engajadas são chamadas de “cesarinas”. “Uma rede toda de renda de fio cru sai por R$ 500 e a toda de renda de linha, a mais elaborada, sai por R$ 600”, explica Luíza. “Uma rede de renda de bilro, feita por quatro a cinco mulheres, leva até quatro meses para ficar pronta. São produtos raros e refinados. Exclusividade da região”, afirma.


O corpo das redes pode ter colorido e estamparia diversificada,
que embeleza os ambientes

A diversidade de estilos encontrada no Ceará é animadora. De acordo com informações do livro Mãos que fazem história – a vida e a obra das artesãs cearenses, das jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral, uma coletânea, em edição de luxo, de matérias publicadas no Diário do Nordeste, há ainda mais estilos no estado que os encontrados pela reportagem da Continente. No Ceará, as redes estão no patamar de patrimônio cultural.

A rede de tucum, herança indígena observada nas cidades litorâneas de Jaguaribe e Acaraú, é vendida por peso e fabricada magistralmente por Maria de Lourdes Gomes de Almeida – que leva um mês para produzir uma peça. No litoral oeste, ainda há vestígios da cultura indígena, a partir das redes de travessa, produzidas em retângulos vazados, com bilros, e que têm as varandas ornadas por belas flores de tenerife. Em Varjota, aldeia Tremembé de Itarema, Maria Edite Ferreira de Menezes ganhou o título de mestra da cultura, em 2005, pela confecção de tais rebuscadas peças.

Igualmente rara é a rede totalmente em crochê produzida por Neucila Spinosa, de São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza. A artesã começou fazendo almofadas e colchas, depois se empolgou e passou a fazer redes. Devido às possibilidades do crochê, que não dependem de tear nem de outro artefato fixo, mas apenas de agulhas, as redes de dona Neucila costumam alcançar dimensões bem maiores do que as produzidas em outros materiais.

Autointitulada de “capital das redes”, a cidade de Irauçuba, no Vale do Acaraú, também no Ceará, notabiliza-se pela produção de redes sol a sol, devidamente bordadas e decoradas, com uma diferença: enquanto em Várzea Alegre os teares elétricos produzem o tecido, nesse município, eles já chegam prontos.

Entre todas as redes hoje produzidas no Ceará, nenhuma encanta mais o visitante que aquelas bordadas em ponto estrela, frente e verso – belas, perfeitas e de confecção extremamente detalhada. Produzidas por 20 trabalhadoras rurais da Barra, em Aiuaba, essas redes são as mais disputadas pelos que apreciam peças de valor decorativo. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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