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Conforto espacial e qualidade ambiental

Princípios norteadores do bem-construir, como a observação do clima, da iluminação e de materiais locais, garantem sustentabilidade

TEXTO Luciana Veras

01 de Maio de 2015

Projeto de Bruno Lima para sua casa observa os ensinamentos do livro 'Roteiro para construir no Nordeste'

Projeto de Bruno Lima para sua casa observa os ensinamentos do livro 'Roteiro para construir no Nordeste'

Foto Mateus Sá

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 173 | mai 2015]

"A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.” Tais versos da estrofe inicial de Fábula do arquiteto, poema do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) presente em A educação pela pedra (1965), foram reapropriados pelo arquiteto pernambucano Armando de Holanda (1940-1979) como epígrafe para Roteiro para construir no Nordeste. Publicado em 1976, pelo programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, seu livro é citado com recorrência por profissionais que se confrontam com a seguinte pergunta: o que seria uma arquitetura sustentável?

Na verdade, os ensinamentos de Holanda tendem a ser louvados com o mesmo fervor com que o adjetivo “sustentável” é combatido. “A boa arquitetura, aquela que se apropria dos materiais e técnicas locais, que tenta entender o clima e as mais simples soluções para garantir o conforto de quem a habita, é a verdadeiramente sustentável. O livro de Armando de Holanda oferece sugestões que facilmente poderiam ser usadas, em qualquer escala de construção, para prover qualidade espacial e conforto ambiental. Mas essa abordagem consciente do espaço e do objeto arquitetônico não consegue fazer frente aos apelos das grandes indústrias de materiais – vidro, alumínio, aço, cimento – e, sobretudo nos grandes edifícios e complexos comerciais, nem é levada em consideração”, constata Pedro Del Guerra, da MGDG Arquitetos, de São Paulo.

Para ele, o que acaba se sobressaindo é, ainda, a fetichização de técnicas e materiais que apenas “parecem mais ecológicos”. “É muito comum encontrar clientes, ou mesmos arquitetos, que pregam o consumo de soluções sustentáveis, como telhados verdes e captação e reuso da água, mas não abrem mão de ter não só um, mas vários carros na garagem, e descartam o uso de transporte coletivo. A boa intenção de procurar conviver melhor e usar menos os recursos naturais não sobrevive a um apelo pelo consumo de soluções vendidas como meros produtos. Isso vale para os materiais em si e também para a venda de conceitos mais mercadológicos, como as pontuações de um sistema de certificações como o LEED”, apregoa Del Guerra.

Sigla de leadership in energy and environmental design (liderança em design ambiental e energético, em tradução livre), LEED é um certificado conferido pela ONG Green Building Council e perseguido por construções no mundo inteiro. Para ser outorgado, são observados critérios como eficiência energética, materiais e uso da água, entre outros. Há quem considere que se trata de um selo criado para regulamentar o que já se fazia. “Percebo o LEED como uma formalização para a preocupação com o tripé eficiência, inteligência e economia e o esforço para evitar desperdício. O certificado avalia isso com regras mais rígidas e referências de medição”, afirma o arquiteto José Luiz Lemos, do Aflalo/Gasperini. “Todas as empresas têm buscado caminhar nesse sentido de otimizar os recursos. É dever do arquiteto calcular quanto o cliente vai gastar de energia e de água e também saber escolher os materiais para garantir durabilidade e qualidade. Assim, o LEED deixa de ser um selo e passa a ter sentido econômico”, compreende Pedro Lira, diretor de arquitetura e urbanismo no Brasil da empresa espanhola Idom/ACXT.

Existem, contudo, os profissionais que recriminam uma submissão exagerada à certificação. “O certificado se desvirtuou. Era uma maneira de mensurar a performance de um edifício que, hoje, a indústria cooptou. É como se fosse só um selo para dar charme. Mais importante do que essa ideia falsa de sustentabilidade é sabermos, por exemplo, a origem dos nossos materiais. Tenho convivido com gente na Zona da Mata que trabalha por 12 horas, mas só recebe por oito, para fazer um tijolo, em um trabalho de alto risco. Alguém pega, bota na sua casa e diz que é sustentável para ganhar um certificado”, pondera Lula Marcondes, de O Norte – Oficina de Criação.

Professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco, o arquiteto Bruno Lima é sócio de Lula Marcondes e dono de uma residência erigida a partir de projeto desenvolvido no escritório. Localizada na região central do Recife, é citada como a materialização da “arquitetura consciente, urbana e cidadã” que eles defendem. “Foi uma casa que surgiu sem a intenção de ter ações deliberadas em sustentabilidade. De forma espontânea, buscamos possibilidades usando, justamente, os ensinamentos de mestres como Armando de Holanda. Como aplicar isso no contexto em que estamos vivendo? Não se trata de replicar em cima de uma mesma composição formal, e, sim, de reproduzir o que aquilo tem de essência em questões de iluminação e ventilação, por exemplo, e que é válido ainda hoje. E a casa foi construída como se fosse um laboratório, com baixo resíduo, pouca alvenaria e muita madeira. Intuitivamente, criamos algo que está no discurso dos que rotulam as coisas como sustentáveis”, detalha Lima.

Esse aproveitamento de ideias preconizado lá atrás é, por vezes, mais benéfico do que muitas práticas contemporâneas. “Aqui no Nordeste, já fazíamos isso muito antes dessa palavra aparecer, pois sempre incorporamos os elementos relacionados ao clima compulsoriamente, e não como uma moda”, assegura Carlos Fernando Pontual, da Pontual Arquitetos.

O desafio, de um modo geral, prossegue, menos na prospecção por uma sustentabilidade certificável e mais “no sentido de uma arquitetura livre e espontânea, que seja uma clara expressão da nossa cultura e revele uma sensível apropriação do nosso espaço; e no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que, ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical, nos incite a viver nele integralmente”, como uma vez escreveu Armando de Holanda. 

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