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De malocas, porões, varandas e senzalas

A rede é um artefato criado pelos índios sul- americanos, mas que ganhou, em pouco tempo, espaço entre colonizadores e viajantes

01 de Julho de 2012

No quadro 'Viagem ao Brasil', Debret registrou escravos transportando seus senhores

No quadro 'Viagem ao Brasil', Debret registrou escravos transportando seus senhores

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 139 | julho 2012]

A rede é um objeto 100% sul-americano
e sua descoberta mudou hábitos e costumes dos europeus que aqui chegaram. Foi vista pela primeira vez pelos portugueses no dia do descobrimento do Brasil e adotada, posteriormente, por mamelucos, bandeirantes, donos de engenhos, sertanejos e por viajantes que no Brasil colonial aportaram. Nas naus portuguesas, o uso de redes logo se tornou comum, como uma forma de economizar espaço.

Pouco mais de um século depois da chegada dos lusos, era popular seu uso pelo lavrador e pelo missionário da Companhia de Jesus. “Depois da farinha de mandioca, foi o primeiro elemento de adaptação, de acomodação de conquista do português. Eram fios torcidos de algodão com algumas travessas que serviam de reforço e coesão”, registrou Câmara Cascudo, no livro A rede de dormir – uma pesquisa etnográfica.

As índias, responsáveis pela confecção das redes, já em pequenos teares artesanais, apenas trançavam um retângulo com fios largos, o que as assemelhava às redes de pesca. As redes originais, portanto, não tinham o capricho que seria visto, décadas depois, com a chegada das portuguesas, que as adornariam e as embelezariam. “As redes de tecido compacto foram técnicas das mulheres portuguesas. A vinda de teares aperfeiçoou a rede, ampliando-a, enfeitando-a, dando-lhe as franjas, varandas, tornando-a mais macia, confortável e ornamental”, escreveu o antropólogo potiguar.

O viajante do Brasil holandês Johan Nieuhof informava que os brasileiros não possuíam muitos utensílios domésticos: “...seu cuidado maior é com a rede a que dão o nome de ini. Esta é fabricada de algodão, tecida em malha e tem, em geral, de seis a sete pés de comprimento e quatro de largura. Quando vão dormir, amarram a rede a duas traves em suas tendas, ou em duas árvores, ao ar livre, a certa altura do chão, para evitar os animais daninhos e as exalações pestíferas da terra. Os tapuias denominados cariris fazem redes bem grandes de 12 a 14 pés. As portuguesas também fabricam lindas redes decoradas”.

As mulheres e moças das aldeias indígenas aprenderam a tecer redes mais compactas com os jesuítas. “A rede de malha unida é presença de mãos portuguesas. Depois a técnica derramou-se por toda parte”, diz Câmara Cascudo.

Armada na orgulhosa varanda da casa-grande, a rede representava o trono do senhor patriarcal, que do terraço supervisionava o seu mundo, povoado de escravos.

“Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho se tornou uma vida de redes. Rede parada com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes e cortinas. Redes rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se para dar suas ordens ao negro, escrever suas cartas, jogar gamão com algum parente ou compadre”, escreveu Gilberto Freyre.

Mas a rede não amoleceu a têmpera de muitos dos que dela se utilizavam como descanso. Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, dom Antônio Felipe Camarão, Henrique Dias saíram de redes para expulsar o holandês. Sabiam ter voz de comando, apesar de, como aristocratas, desprezarem os que usavam pés e mãos para o trabalho diário.

MIGRAÇÕES
Se, no Nordeste, ela disseminou-se, servindo de berço, leito, transporte e até mesmo de caixão, em outras localidades, adaptou-se de forma diferente. Nas regiões meridionais e centrais, foi adotada pelo colono, mameluco e curiboca, brasileiro dos seiscentos e dos setecentos. O bandeirante, em especial, também a tinha em estimação, pois ela lhe facilitava o transporte, a dormida e evitava os perigos que vinham do chão. Já na região Sul, nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, não teve boa aceitação: lá, o frio não favorecia o embalo e, sim, a dormida fixa, perto do fogo, aquecida na esteira de couro de boi ou de outro animal.

Fora do Brasil, a rede foi levada para a África pelo português, onde não vingou, uma vez que os africanos tinham o hábito de dormir em esteiras, peles de animais, estrados de madeiras com treliças, cobertos com couro. Os soberanos negros dormiam em estruturas de madeira cobertas com almofadas franjadas. Na senzala brasileira, era bem-vista pelo escravo. Aliás, era vista como um amansa-escravo, pois este se orgulhava quando ganhava do dono uma rede avarandada, sinal de que era distinto dos demais.

No Norte e Nordeste, portanto, fixou-se devido às temperaturas e às conveniências de seu uso. Em 1817, o historiador Von Martius elogiou a abundância de redes entre os paulistas e dizia que eram praticamente desconhecidas na Capitania das Minas Gerais. Na verdade, a rede migrou com o tupi-guarani, e há informações de que chegou ao Chaco, entre Paraguai e Bolívia, espalhando-se, tempos depois, para regiões das Américas onde não era muito conhecida, como o México. O que não quer dizer que não fosse amplamente conhecida na América caribenha e central. “A rede derramava-se, do século 16 em diante, pelas grandes e pequenas Antilhas e do Panamá atual até a Guiana. E era rainha nas planícies e cordilheiras sul-americanas”, escreveu Câmara Cascudo.

Como muitos outros artefatos que povoaram o cotidiano do Brasil colonial, também foram alvo de campanhas contrárias. Alguns médicos condenavam seu uso, recomendando que fossem trocadas pela higiene da cama. Houve um período em que foi considerada detestável, anticivilizada e feia, obrigando seus donos a esconderem-na das varandas quando chegavam visitas. Mas, diferentemente das gelosias e beirais, banidos no início do século 19, a rede resistiu a todos os ataques, porque já se impusera, insuperável, no cotidiano e no coração dos brasileiros. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.

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