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Espaços de educação e amor ao cinema

Para manter a memória cultural coletiva, cidades ao redor do mundo vêm conseguindo resguardar, pelo menos, uma de suas tradicionais salas de exibição

TEXTO E FOTOS KLEBER MENDONÇA FILHO

01 de Setembro de 2012

The Castro tem seus 90 anos marcados por mostras

The Castro tem seus 90 anos marcados por mostras

Foto Kleber Mendonça Filho

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 141 | setembro 2012]

O Cine São Luiz faz parte
de uma espécie de irmandade internacional de palácios de cinema que sobreviveram ao tempo. Como ocorreu no Recife com a sala antes pertencente ao Grupo Severiano Ribeiro, cidades ao redor do mundo conseguiram salvar pelo menos um desses antigos templos por um desejo de manutenção da memória coletiva e cultural. É um fenômeno curioso que une o Recife a cidades tão distantes como Lisboa, Sydney, São Francisco e Los Angeles.

Curiosamente, a média para cada cidade é a de um único palácio sobrevivente, uma amostragem quase científica do que esses lugares significaram para gerações passadas. Se existisse uma Arca de Noé dos cinemas antigos, o São Luiz e seus companheiros de geração em outras cidades do mundo estariam a bordo como exemplares salvos de uma outra era.

Atualmente, Nova York prepara-se para tomar uma atitude em relação à sua última grande sala comercial, o Ziegfeld, localizado na Rua 54, com 1.153 lugares. A comunidade cinematográfica local mostra sinais de preocupação com um cinema não tão antigo assim (foi inaugurado em 1969), mas que não dá sinais de que irá sobreviver por muito tempo.

No último Festival Internacional de Cinema de São Francisco, uma fila dava voltas no quarteirão para a exibição de três curtas de Buster Keaton no mítico The Castro, que comemora atualmente seus 90 anos. A sessão foi aberta ao som do órgão original que sobe num elevador hidráulico do poço da orquestra, diante de uma sala de décor espetacular, não muito distante dos interiores do São Luiz pernambucano.

Na verdade, cada um desses cinemas guarda nas suas paredes, décor e número de assentos, uma arqueologia dos costumes das sociedades, da história das suas comunidades locais. Guarda uma ideia de espaço público e de como funcionava a própria indústria do cinema. Muitas vezes, revela as afinidades iniciais entre o teatro e o cinema nos seus portes e linhas, nos seus palcos e cortinas.

Eles eram localizados em ruas, nos centros das cidades ou em bairros nobres, ou antes nobres. Eram protagonistas de suas áreas urbanas, peças-chave para a valorização dos espaços públicos e agentes de socialização. Antes de uma sessão, filas nas calçadas; ao final, centenas de espectadores devolvidos à rua. Um verdadeiro senso de comunidade em espaço público aberto.

Nesse sentido, é emblemático que exista no centro antigo de Los Angeles, a capital do cinema industrial, um tesouro de salas antigas que só parecem ter sobrevivido pela absoluta falta de interesse da própria cidade naquela área ainda decadente, algo que pode também explicar a sobrevivência do próprio São Luiz, no Recife.

São cerca de 10 palácios clássicos (o Palace, o Los Angeles Theater, The United Artists Theater, The Million Dollar Theater...), num trecho de avenida de não mais do que um quilômetro. Há os que permanecem fechados e outros em fraco funcionamento; ou ainda outros transformados precariamente em lojas, ou na brasileira Igreja Universal.

Muitos deles foram tombados, mas sem projetos de revitalização. Um museu a céu aberto das relações que antes existiam entre o cinema e a rua, numa área da cidade muito usada como locação de grandes filmes como Mulholland drive, de David Lynch, ou Blade runner, de Ridley Scott.


Na decadência, o Dome foi tombado e virou patrimônio cultural de Los Angeles

Hoje, no mundo moderno, essa relação entre o cinema e a rua foi tomada pela iniciativa privada, através dos shopping centers. Estamos na era dos não lugares, espaços comerciais que canalizam clientes em direção às compras, dando-lhes uma simulação padronizada (e de perfil privado) de um novo espaço comum. A sobrevivência dos grandes cinemas antigos geralmente guarda um mesmo roteiro nervoso, às vezes através de décadas. Em geral, as salas entraram em decadência junto com os seus arredores e centros urbanos. Alguns exibiram pornôs por um tempo, outros, filmes de segunda linha e reprises.

O medo da extinção vem primeiro através de uma reforma, em que o espaço original é subdividido em salas menores, mutilação que matou o Roxy de Copacabana, no Rio, ou o Odeon Marble Arch, em Londres. A simples demolição, via especulação imobiliária, é quase sempre certa, após a constatação de que a exploração comercial dos espaços já não faz mais sentido.

Essas grandes salas são três ou quatro vezes maiores do que as consideradas “salas grandes” de um multiplex, atualmente com não mais do que 400 lugares. Foram projetadas e dimensionadas num outro tempo, quando o acesso a imagens em movimento era exclusivo do cinema e a frequência semanal chegava aos 30 ou 40 mil espectadores, que esgotavam um ou dois mil assentos por sessão.

Não é difícil, por exemplo, ver o São Jorge, em Lisboa, inaugurado em 1950, e imaginar os milhares de espectadores que frequentaram a grande sala, algo perceptível nos enormes banheiros com dezenas de mictórios projetados para receber espectadores nos intervalos entre sessões. O São Jorge foi salvo, mas mutilado. Sofreu uma reforma que o dividiu em três (nos anos 1980), restando intacto o enorme balcão como sala principal. Sua grande plateia deu lugar a duas novas salas, na parte inferior.

As três salas são hoje administradas pela Câmara Municipal de Lisboa, que reequipa o espaço com projetores digitais que logo irão aposentar os equipamentos 35mm. É um espaço dedicado à programação alternativa, mostras e festivais, sem a pretensão de concorrer com os multiplex. Esse perfil, em linhas gerais, tem muito em comum com a trajetória e vocação recentes do São Luiz pernambucano, que também passa por processo de aquisição de novos equipamentos.

Na verdade, ao sobreviverem, essas salas seguem um mesmo roteiro. No auge da decadência, são tombadas, viram patrimônio cultural, como aconteceu com The Castro, o State Theatre de Sydney, o Cinerama Dome, em Los Angeles, e também com o São Luiz. Isso exige visão política de preservação e um projeto de cultura que custará dinheiro. É essencial que a área urbana nos arredores seja valorizada pelas prefeituras. Há também a compreensão de que esses espaços não terão valor comercial, mas cultural.

O roteiro para esse tipo de espaço também define que esses palácios serão transformados em salas de referência técnica e de programação, vitrines luxuosas para o próprio cinema e para a cultura, um endereço certo em que o público terá uma experiência cinematográfica especial, distinta da norma atual imposta pelos multiplex.

As programações especiais de cinema parecem sempre dar uma piscada de olho para o passado, como a extraordinária agenda de filmes modernos e antigos do Castro, exibidos com excelência técnica em todos os formatos da exibição cinematográfica, do 35mm e 70mm a projeções em digital 4K. São espaços de educação e amor ao cinema como arte e forma de expressão, mantendo ainda viva a memória de toda uma comunidade e cultura locais.

Para o São Luiz pernambucano, numa cidade rica culturalmente como o Recife, o caminho deve ser esse. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, jornalista e cineasta.

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