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Fé na menina sem nome

TEXTO ROBERTO BELTRÃO

01 de Novembro de 2011

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 131 | novembro 2011]

No meio de tantas construções belas, imponentes
e cheias de significados, pode parecer estranho que um túmulo simples – no qual não se encontra qualquer menção à identidade do defunto – seja o mais visitado no Cemitério de Santo Amaro. Não é nada além de uma espécie de mesa de mármore, em que são constantemente depositadas oferendas de todo tipo, desde imagens de Nossa Senhora, estátuas de duendes, bonecas de plástico, flores, casas em miniatura, pedaços de papel em que estão escritos pedidos ou agradecimentos. Nem os lugares de sepultamento de finados que, em vida, conquistaram multidões (como o governador Miguel Arraes ou o ídolo mangue Chico Science) chamam mais a atenção que o jazigo da Menina Sem Nome.

A fama dessa tristonha personagem tem início em 1970, quando o corpo de uma menina, de aproximadamente 10 anos, foi encontrado na maré do bairro do Pina, Zona Sul do Recife. Havia indícios de violência sexual no pequeno cadáver, jamais identificado, pois ninguém se apresentou como parente da vítima. A brutalidade do crime provocou muita comoção e mobilizou a opinião pública por meio de seguidas reportagens publicadas nos jornais. Um suspeito chegou a ser apontado, mas a autoria do assassinato nunca se comprovou. O drama da criança violentada e morta, que perdeu o direito à própria identidade, compadeceu um recifense de posses, que mandou fazer para ela um sepulcro digno, algo melhor que uma simples cova rasa.

Ao poucos, a comoção em torno da Menina Sem Nome se transformou em fé e adoração. Milagres passaram a ser atribuídos a ela, e devotos começaram a frequentar o local para fazer promessas em troca de graças. Muitas são pagas em forma de ex-votos. Às vezes, miniaturas de parte do corpo (pés, mãos), numa referência ao lugar em que havia uma doença curada; outras, uma casinha doada por quem conquistou residência própria; muitos brinquedos coloridos, pois a milagreira não deixou de ser criança.

A historiadora e diretora do Museu de Arte Popular do Recife, Marcela Wanderley, explica que esse é um fenômeno comum na religiosidade brasileira: “É a legitimação popular de um chamado santo não canônico”. Ou seja, é a fé nos poderes de um morto que não foi canonizado pela Igreja Católica.

A Menina Sem Nome não foi a primeira morta a ser cultuada como santa no maior cemitério do Recife. Antes dela, fiéis pediram graças ao espírito de um menino conhecido como Alfredinho, falecido aos 12 anos, em 1959. Ele foi vítima de leucemia, no tempo em que a cura para esse tipo de câncer era difícil. O seu padecimento, quase martírio, foi associado à santidade, no imaginário popular. Mas, com o distanciamento do fato que gerou a crença, Alfredinho vai sendo esquecido: hoje, já não são tantos os que acendem velas ou fazem promessas diante do túmulo dele.

Ana Maria Malaquias da Silva, 37 anos, é moradora do bairro de Santo Amaro e costuma frequentar a necrópole. Ela sabe indicar onde fica o jazigo de Alfredinho, mas confessa ser devota mesmo é da Menina Sem Nome. Diz que a criança milagreira já lhe concedeu uma graça, mas não revela qual foi. “Só sei que, quando pedi ajuda, ela me atendeu na hora. Incrível, fico até arrepiada, quando lembro”, sussurra Ana, mostrando os pelos dos braços eriçados. A dona de casa afirma que algumas pessoas vêm acender vela e pedir graça na Casa das Almas, uma construção simples, de apenas um vão, a poucos metros da capela do Santo Amaro. Lá, as rezas e velas acesas são para todos os espíritos, sejam “de luz” ou não. Tocos de velas pretas e vermelhas indicam as diferentes intenções de um ou outro visitante. 

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