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Figuração: Imagens de um mundo ideal

Primitivo, ingênuo e espontâneo, entre outras designações, o naïf é, sobretudo, caracterizado pela visão leve e encantada da vida

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Setembro de 2011

Além de artista com estilo marcante, Crisaldo Morais foi um articulador do naïf no Brasil

Além de artista com estilo marcante, Crisaldo Morais foi um articulador do naïf no Brasil

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 129 | setembro 2011]

Sob o céu azul, a cidadezinha acorda radiante.
Rio, ponte, igreja, pássaros, pessoas, tudo brilha à luz de um sol tropical. As árvores têm cores vibrantes, saltam aos olhos em pequeninas pinceladas, como pontinhos multicoloridos. Até parecem fogos de artifício estourando em noite de São João. O clima aparenta tranquilidade e bem-estar. A cena descrita pertence ao universo retratado pelo artista pernambucano Militão dos Santos, de 55 anos. Ela sintetiza bem o espírito da arte naïf brasileira. Existem muitas formas de pintura primitiva ou espontânea. E, embora não haja regras, quase todas expressam o que está nos quadros de Militão: um mundo ideal, distante de problemas. Se a realidade alimenta essas criações, revela-se muito mais bonita e feliz na tela que na vida.

“Ver a beleza do cotidiano e expressá-la na pintura é compartilhar as expressões alegres da vida, é ser livre e ser criança sem barreira ou limite, em que tudo é possível”, atesta Militão. É assim que muitos artistas naïf veem o mundo. Há sempre um pouco de tinta para tirar da imaginação um motivo capaz de mostrar que a existência pode ser mais simples e doce. Pode ser um sonho, uma lembrança pueril, uma festa ou mesmo um fato recente. “É um mundo florido, no sentido metafórico. O naïf é como um nicho utópico na arte e mantém a realidade como um casulo”, observa Maria do Carmo Nino, professora do departamento de Teoria da Arte da UFPE.

Num estado que inscreveu sua arte naïf no mapa, firmando-se como um centro de manifestações espontâneas e populares, essa marca também perpassa uma produção pictórica de diferentes peculiaridades. Bajado se consagrou pela alma de cronista. Ivonaldo, 68 anos, tornou-se conhecido por explorar o cotidiano de criaturas pitorescas, num meio rural cheio de frutas, folhas e tons. Crisaldo Morais, por sua vez, deixou uma pintura de veia moderna, na qual habitam figuras míticas e personagens da cultura popular, quase sempre de contornos redondos e angelicais, em cores chapadas e intensas. Mas sua contribuição foi além da tela, tendo sido ele um importante colecionador e articulador dos artistas naïfs brasileiros. Queria erguer um museu especializado no gênero, mas faleceu em 1997, sem concretizá-lo.

Se Crisaldo tivesse conseguido montar um museu naïf em Pernambuco, certamente não faltaria acervo: Zé Som, José Barbosa, Chico Laranjeira, Edmar Fernandes, Laura Francisca, Mary Gondim, Alcides Santos, Régis Loureiro, Elza... A lista de artistas pernambucanos é longa e, ao contrário do que alguns acreditam, não estagnou. No Recife, na Zona da Mata ou no Sertão, novos nomes surgem, oferecendo ao público as suas visões generosas do mundo.


Composições em que os folguedos populares são retratados fazem parte
do acervo do artista. Imagem: Reprodução

É do comum que extraem delicadeza e poesia, quase sempre sem grandes pretensões. Cronistas, poetas, repórteres ou contistas visuais, os naïfs transformam arte em narrativa e contam um pouco daquilo que os olhos captam de dentro e de fora, ao seu redor. “Ele fez a posse da primeira mulher a assumir a presidência da República no Brasil. Só um artista naïf pode fazer isso. De certa forma, acho que ele ajuda a contar história”, ressalta Sérgio Oliveira, referindo-se à tela pitoresca que, pelas mãos de Militão, retrata a chegada de Dilma Rousseff ao poder – o artista é representado pela sua galeria Arte Maior, no Recife.

Para o galerista, Militão é o melhor naïf que possui em seu acervo: “É bem-acabado, criativo, cheio de detalhes. Não é qualquer um que faz, não”, avalia. Há quem torça o nariz ao conceito de “bem-acabado”, no gênero aqui tratado, preferindo expressões mais “puras” (outra qualificação controversa) e “espontâneas”, que apresentam formas brutas de construção pictórica. É o caso de Vilma Eid, dona da Galeria Estação (SP), que não gosta do adjetivo naïf e provavelmente não classificaria Militão da mesma forma que Sérgio.

Ainda que não se considere uma especialista do assunto, a professora e curadora Maria do Carmo Nino pondera que há talentos dignos de um naïf autêntico. Não têm aprendizado artístico algum, mas são donos de uma pintura de qualidade. Como exemplo, cita Antônio Poteiro, artista português radicado no Brasil. Por outro lado, ela chama a atenção para os artistas que tentam mimetizar o estilo naïf, figurando-se mais como uma maneira de trabalhar da qual se apropria do que um exemplar genuíno do gênero. Parece compartilhar da visão de Vilma.

AUTOAPRENDIZADO 
Trabalhando dia e noite na casa da rua cachoeira, na Imbiribeira (Recife), Militão não se preocupa muito com isso e acha que a denominação naïf lhe cai muito bem. “Temos que colocar um nome em tudo. Senão, como identificaríamos as coisas na vida?”, indaga o artista, que perdeu a audição ainda criança. “Ainda me lembro de que o meu primeiro quadro pintado foi um pescador. Era um trabalho tosco, ninguém me dava crédito e até me desencorajavam a pintar. Como sou uma pessoa muito persistente e teimosa, continuei a ‘sujar’ as telas de tintas até me aperfeiçoar com os próprios erros e acertos. Sou um autêntico pintor autodidata”, define-se.


Representante da nova geração de naïfs pernambucanos, Edmar Fernandes começou como ceramista. Imagem: Reprodução

Situações semelhantes aconteceram com quase todos os chamados artistas naïfs, mesmo que depois tenham investido em alguma formação. Foi assim com o caruaruense Ivonaldo, que, não obstante o acesso mais privilegiado ao mundo artístico, aprendeu a pintar sozinho. Era funcionário de banco, já formado em datilografia, quando decidiu ir até uma loja de artigos de pintura comprar – segundo instruções de um vendedor – tela, pincel, óleo de linhaça e um tubo de tinta azul. “Achando haver entendido as explicações, levou o tubo de azul da Prússia e pintou Pavão azul em noite azul, um pequeno quadro que ainda possui e que representa o início de seu longo autoaprendizado técnico com a pintura a óleo”. Quem relata é Jorge Anthonio e Silva, autor do livro Ivonaldo, organizado pelo galerista Jacques Ardies, para quem o artista é um dos maiores talentos de Pernambuco. Hoje, suas telas de tamanho médio chegam a custar R$ 12 mil.

Trilhando um percurso próprio e mais recente de aprendizado, Edmar Fernandes, de 29 anos, chegou ao naïf numa escolha intuitiva. Natural de Chã de Alegria, veio parar no litoral aos 10 anos. Começou modelando barro por conta própria, até descobrir a tinta acrílica, através da qual dá vida a cenas inocentes, de um interior alegre e colorido que ainda habita suas recordações. “Eu pinto muito o circo, que marcou bastante a minha infância”, diz o morador da periferia de Olinda. Edmar pertence à nova geração de naïfs pernambucanos e, apesar da desconfiança inicial da família, já tira sustento de suas telas.

Militão também sobrevive da pintura, inspirada, segundo ele, nas brincadeiras infantis que viveu em Caruaru, onde nasceu e se criou. Faz 35 anos que se sustenta com isso. No entanto, diz já ter se mantido como carregador de caminhão de supermercado, servente de obras e pintor de carro. Histórico, aliás, comum à boa parte dos artistas autodidatas. “O naïf é visto como uma produção à margem da cultura, mas encontra seu respaldo em uma parcela do público e de um mercado ainda atuante, mesmo hoje. Fora do país, como em Londres e Paris, galerias especializadas continuam existindo”, observa Maria do Carmo Nino.

É muito importante lembrar que nem todo naïf é necessariamente sinônimo de quadro realista e figurativo. Há aqueles trabalhos nos quais a fantasia se faz matéria-prima e o inconsciente, talvez mais evidente. Reclusa em seu mundo particular, a olindense Laura Francisca faz valer essa premissa e aponta novos caminhos para a arte espontânea de Pernambuco. Sem também ligar para qualquer definição sobre sua pintura, ela pinta quando quer. É nesses momentos que as palavras do crítico Raul Córdula dão à obra da artista toda “razão”. Os seres que habitam o fundo de sua alma emergem em pinceladas bruscas e, como ele diz, dão corpo a “animais de sua lavra íntima, de sua escura caverna”. Eles vêm à luz para mostrar ao mundo que toda arte precisa, de alguma maneira, manter-se protegida por uma boa dose de incerteza. 

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista, especializada em Artes Plásticas, mestre em Sociologia pela UFPE.

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