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Mágico: O dom de iludir

Geração recente de profissionais, formada inclusive por mulheres, renova as apresentações não apenas com tecnologias, mas com referências ao cotidiano

TEXTO Danielle Romani

01 de Julho de 2013

O jovem mágico pernambucano Rapha Santacruz mescla mágica e teatro em suas apresentações

O jovem mágico pernambucano Rapha Santacruz mescla mágica e teatro em suas apresentações

Foto Helder Tavares

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 151 | julho 2013]

O fascínio exercido pela mágica
não se limita aos espectadores que assistem às apresentações, admirados, apesar de saberem que estão diante de truques. Os profissionais que a exercem também são devotos dessa arte que exige, além de habilidade, capacidade extrema de guardar segredo, envolver, seduzir. E que, em pleno século 21 da tecnologia e dos grandes espetáculos, continua arregimentando profissionais e entretendo um público que não se cansa – paga para ser “ludibriado”.

“A mágica é como um vício, é quase uma magia: nós, profissionais, ficamos cada vez mais envolvidos, treinando sem descanso, obcecados, querendo nos superar e surpreender. E o público, mesmo diante de truques, às vezes milenares, deve enxergar no nosso trabalho uma grande beleza, um lirismo, um mistério. Porque, mesmo sabendo que tudo ali é falso, deleita-se e se diverte com a nossa capacidade de iludir. Acredito que nada pode quebrar essa sintonia entre o mágico e os espectadores. É quase um encantamento”, diz Rapha Santacruz, que, aos 24 anos, contabiliza mais de uma década de trabalhos prestados à atividade.

O caminho atualmente escolhido por Rapha é semelhante ao de alguns “antepassados”. Ele optou por mesclar mágica e teatro, fórmula comum às feiras do tempo da Revolução Francesa, e que hoje é bem-aceita, principalmente quando a montagem se aproxima do cotidiano.

“No meu espetáculo Abracasabra, tento colocar um toque de mágica no atribulado cotidiano das grandes metrópoles. A nossa proposta é interativa, temperando as situações corriqueiras com pitadas de humor e magia. Durante o espetáculo, arrumo a casa, rego as flores, encho o aquário. As pessoas gostam de se ver ali retratadas”, explica Rapha.

Como outros profissionais, a ideia de ser mágico o persegue desde a infância. “Meu pai me deu de presente duas mágicas, quando eu tinha uns 7 ou 8 anos, e ainda morávamos em Caruaru, onde nasci. Nunca mais parei: desde então, só faço estudar e me aperfeiçoar. Fui atrás de mágicos mais experientes para aprender os truques, li e vi tudo que poderia ser estudado, fui morar em São Paulo, onde me apresentei no Parque do Ibirapuera e até no programa de Sílvio Santos. Enfim, quanto mais conheço, mais me envolvo, mais me apaixono. Meu sonho é promover um festival de mágica em Pernambuco”, conta.


Éflem Nogueira foi atraído ao universo mágico através dos shows de picadeiro.
Foto: Divulgação

Igualmente apaixonado pelo universo lúdico com que lida diariamente, Ryan Rodrigues, 36 anos (muitos deles de “estrada”), desdobra-se para viver exclusivamente da profissão, que começou a aprender aos 11 anos e que paga suas contas desde os 14.

“No início, fazia tudo escondido da minha mãe, que chegou a rasgar e a queimar qualquer artefato de mágica que encontrasse”, diz Ryan. Menino pobre, ele acredita que a mãe desejava vê-lo enveredando por uma área mais “nobre”, de preferência que lhe conferisse “diploma de doutor”. “Mas era uma coisa decidida, e de nada adiantou. A mágica me deu dignidade, possibilita pagar as contas e viver como gosto. Hoje, ela chora de felicidade e de orgulho, quando me vê trabalhando”, destaca o recifense.

Versátil, o mágico afirma que pode criar ilusões em qualquer situação. “Apesar de dominar e gostar da categoria mais respeitada pelos mágicos (a manipulação), não gosto de me classificar apenas como um manipulador, pois faço grandes ilusões, mágica de salão, infantil, close-ups, cartomagia, mentalismo, pick pocket. Nesses 22 anos de estrada, descobri que o mais importante para mim é ser reconhecido como artista, pois todo mágico, na essência, é um artista com uma grande capacidade de ludibriar”, explica o profissional, que assina o espetáculo mágico-circense A cidade mágica, em que dança, atua, faz mímica e recita poesia. “Gosto de fugir do estilo clássico – fraque, cartola, pombos –, mas não me oponho a usá-lo.”

Enquanto Rapha e Ryan atuam sozinhos, os recifenses Roberto Montanha, 30 anos, e Ricardo Crispim, 38, descobriram que dividir o palco é a melhor forma de trabalhar com mágica, e também de ajudar os que precisam de um pouco de atenção e de alegria.


Com 22 anos de experiência, Ryan  gosta de ser visto como
artista. Foto: Divulgação 

“Desenvolvemos o projeto Magicando solidário, no qual levamos a arte mágica para quem não pode pagar, e para quem precisa de terapia: visitamos hospitais, creches, orfanatos, escolas públicas e, uma vez por ano, fazemos um evento de teatro para arrecadar alimentos para as vítimas da seca”, conta Ricardo, que, assim como o companheiro de trabalho, tem cinco anos de atuação profissional.

Quando está no palco, Montanha atua como interlocutor, como o elemento que distrai o espectador para a que os truques possam ser encenados. É o mestre de cerimônia do show, apresentando as mágicas, narrando e executando os números. Crispim, por sua vez, atua mais como manipulador, realizando números mais complexos, valendo-se de um humor simples e sem apelação. “Nos completamos”, simplifica Roberto.

Nas apresentações, eles lançam mão de várias técnicas: palco, mentalismo, escapismo, manipulação, salão e close-up. “Além dos shows beneficentes, atuamos em apresentações pagas, montadas para o público adulto e infantil, e em eventos corporativos, que incluem os close-ups e palestras motivacionais”, diz Roberto.

CIRCO
Grande polo de mágica, o Ceará é, atualmente, o mercado mais promissor para os nordestinos que trabalham na área. Lá é realizado o Fenoma, que agora completa 10 anos e já é considerado um dos maiores do Brasil, funcionando como espaço para troca de experiências e aprendizado. No festival, também se encontram profissionais apaixonados e dedicados, a exemplo de Francisco Alves Galdino, o Goldini, 43 anos, e Éflem Gonçalves Nogueira, o Éflem, 46, que aprenderam a gostar dos truques da mágica vivendo o lirismo dos espetáculos de circo.

“A minha experiência veio do circo, pois na época em que comecei a me interessar por mágica não dispúnhamos dos recursos de hoje, como televisão, internet e festivais. Aprendi tudo que sei com os mágicos circenses. Vivia atrás deles e, a partir das mágicas que aprendia, comecei a me exibir para familiares e amigos”, conta Goldini, que se apresenta pelo Brasil, seja em espetáculos próprios, seja em concursos e festivais.


Hoje com 80 anos, Estercita é conhecida como
uma das mais habilidosas manipuladoras brasileiras.
Foto: Reprodução

“Sei atuar em todos os gêneros. Mas diria que não é o número, em si, que faz a diferença, mas a capacidade de interpretar dos mágicos, de saber controlar a própria emoção e a do espectador. Temos que conduzir o despistamento de maneira sutil. Claro que um bom material cênico é indispensável, mas os números são apenas o mecanismo que o mágico usa para produzir a ilusão”, explica o cearense, que se prepara para uma nova etapa da sua carreira: percorrer o Nordeste com o espetáculo Sonhos.

Na mágica desde a adolescência, Éflem também aposta no encantamento pessoal do mágico para atrair o público. Ele acredita que a mágica brasileira nunca esteve tão bem quanto na atualidade. “Tenho uma agenda intensa, seja em shows, aniversários, eventos corporativos, clubes e escolas. Viajo muito, para apresentações em festivais e eventos em todo o país. Sou um apaixonado por essa arte que causa surpresa nos que a assistem, como se aquele truque, aquele número, estivesse sendo encenado pela primeira vez. É uma profissão que nos dá muito prazer.”

MULHERES
Elas ainda são minoria. Em alguns círculos, são tratadas com um preconceito velado, como se fossem profissionais “menores”. Mas não estão nem aí para o que os homens dizem, e, com um jeitinho feminino todo especial, vão deixando suas marcas e seus nomes gravados entre os grandes mestres da mágica nacional.

Aos 80 anos, a gaúcha Estercita, ou Ester Fernandes Salcedo, é uma lenda, respeitada e citada pelos colegas como uma das mais habilidosas manipuladoras brasileiras. “Minha família é toda de mágicos. Meu pai, o grande Dossell, foi quem detectou que eu tinha habilidade especial com as mãos e me estimulou a seguir na profissão. Desde os 13 anos, comecei a ser chamada de a Primeira Mulher Manipuladora da América Latina, ou a Rainha da Manipulação”, conta Estercita, que se diverte com os títulos que lhe foram conferidos.

Muito bonita quando jovem, sofreu preconceito dobrado, pois os concorrentes diziam que eram as suas pernas, e não suas habilidades, que atraiam o público. “Os homens tinham muita inveja, pois exerço um segmento da mágica que é o mais difícil, o mais verdadeiro e o mais valorizado. Quem faz grandes ilusões trabalha com instrumentos, não tem o dom que eu tenho. Portanto, nunca dei importância nem deixei de fazer nada diante do fato de ser mulher. Não dava ouvidos”, conta a profissional.

Estercita teve a sorte de casar com o cômico Bady, que entendia e respeitava o seu trabalho, e com quem criou a Cia. de Variedades, que se notabilizava por espetáculos de magia, música e humor, e que atuou por todo o país nas décadas de 1950 e 1960.


A ilusionista Diny começou a carreira como assistente e hoje,
além de se apresentar, presta consultoria a artistas e teledramaturgos.
Foto: Divulgação

Atualmente morando em São Vicente, gaba-se de continuar tendo mãos firmes, que lhe permitem permanecer no palco e encantar multidões. A vocação e a paixão pela mágica foram transmitidas ao filho, que, em homenagem ao avô materno – aquele que detectou o talento de Ester –, adotou o nome de Dossell. “Sou uma pioneira, uma mágica talentosa e uma mulher de sorte: há mais de seis décadas vivo do que gosto, faço meu trabalho com alegria e continuo tendo força e precisão nos meus números”, enumera.

Bonita, habilidosa, a mágica Edineia Oliveira Rodrigues, a Diny Ilusionista, tem 35 anos e está apenas começando a se firmar. Quem assistiu ao remake da novela O astro, deve tê-la visto no palco, com o ator Rodrigo Lombardi, a quem auxiliou e treinou para as cenas de mágica. Diny também já foi convidada pelos principais programas dominicais de televisão, em que fez exibições. A fama fez com que, entre suas principais atividades, assessore artistas, a exemplo de Luan Santana, que contratou Diny e seu marido, o mágico Mario Kamia, para ajudá-lo na montagem de um clipe no qual utilizará recursos de ilusionismo.

“Comecei trabalhando como auxiliar do Mario, mas, nessa época, já fazia alguns números, diferentemente de outras moças que fazem só figuração. Hoje, somos uma dupla completa, temos um espetáculo em que atuamos juntos. Faço grandes ilusões, metamorfose, zip-zap e close-up. Manipulação não é uma técnica que eu domine, mas cada um tem sua especialidade”, pondera Diny, que, além de assessorar artistas e participar de shows, faz eventos festivos e corporativos.

“Ultimamente, com dois filhos, um deles bebê, tive que deixar de participar de eventos e de festivais de mágica. Mas, em breve, estarei novamente livre para aceitar qualquer parada”, diz a profissional, que é a única brasileira a fazer um número conhecido como quick-change (troca rápida de roupa). “Chego a trocar 13 vestuários em três minutos”, gaba-se.

Mais nova e menos experiente, mas nem por isso menos talentosa, a natalense Aline Satler, 23 anos, também se dedica à mágica desde menina, quando praticava e encenava truques para os amigos e familiares.

“Meu repertório não segue um estilo único, é bem diversificado, trazendo uma mistura de suspense, humor, manipulação e interação com o público. Faço um número especial, que poucas pessoas fazem: um mentalismo em que utilizo sete sacos de papel que ficam emborcados em uma mesa. O espectador escolhe no qual baterei com a mão. No final, quando tiro os sacos, o público pode ver que sob seis deles haviam facas com a ponta para cima, e só em um, exatamente o que o espectador escolheu, havia uma maçã. É um truque que, de fato, exige muito treino, pois qualquer erro resultará na minha mão perfurada. Pelo perigo que envolve, não é uma exibição que atraia muitas mulheres. Isso me diferencia e impede que os homens digam que não temos coragem”, observa. 

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