Arquivo

O lado B de Ivan Lessa

Durante 40 anos, na Inglaterra, o escritor brasileiro falou de cultura, com elegância e inteligência, nas transmissões da BBC

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Julho de 2012

Ivan Lessa

Ivan Lessa

Foto Divulgação

Conhecido por sua participação iconoclasta no semanário O Pasquim, dos anos 1970, e suas colaborações para a imprensa, o escritor Ivan Lessa tinha um outro lado menos badalado, mas que também atraía uma enorme quantidade de admiradores em todo o Brasil. Era sua atuação como colaborador do chamado Serviço Brasileiro da BBC de Londres, a transmissão em ondas curtas que a emissora britânica realizou, em português, durante quase sete décadas. Lessa participou dos programas entre 1968 e 1972, e entre 1978 e 2005, quando as transmissões se encerraram.

Sobretudo no segundo período, quem sintonizasse um rádio de ondas curtas no Brasil poderia ouvir, no começo da noite, a voz de Ivan Lessa falando de livros, ideias e jazz. O lendário cronista morreu no mês de junho, em Londres, aos 77 anos de idade.

A voz de Ivan era grave, aveludada, lenta. Dava a impressão de ser uma voz curtida em muitas noites insones de leitura ou de boemia ao som de jazz, com muita bebida e cigarros. Tirando a bebida, era exatamente esse o seu universo: livros, cinema, jazz, standards da música norte-americana, sambas e marchinhas do passado.

Ivan exalava a boemia carioca dos anos 1950-60. Mas preferiu se isolar totalmente do Brasil atual e viver numa Londres fria e impessoal, pegando metrô para ir ao trabalho e fugindo de fãs brasileiros que por acaso o procurassem. Em 34 anos de exílio voluntário, só veio ao Brasil uma vez, em 2006, incumbido de fazer um texto para a revista Piauí. Detestou o que viu.

Durante anos, sua rotina em Londres era trabalhar de manhã na BBC e, à tarde, fazer o circuito de livrarias, lojas de disco e cinemas. Nas décadas de 1980 e 1990, seu trabalho destacava-se principalmente no programa Livros e Autores, que apresentava às sextas-feiras. A vinheta de abertura soava com Three to get ready, de Dave Brubeck, e aí entrava a voz de Ivan falando lentamente de suas leituras recentes. Gravava também Inglês pelo rádio, aulas que iam ao ar diariamente com sua participação de luxo.

Sua presença era ainda mais frequente no Diário de Londres, revista de cultura transmitida de segunda a sexta, na qual dava o seu pitaco bem-informado, crítico e com uma ponta de bom humor sobre algum aspecto da vida cultural inglesa.

O maior volume de sua produção foi mesmo em rádio, na era pré-internet, e quem ouviu, ouviu. Grande parte do material se dissolveu no éter depois de ter cruzado o Atlântico e encantado, do lado de cá, gerações de ouvintes brasileiros. Pouca coisa ficou gravada. Sobraram apenas partes dos scripts com as crônicas.

No ar, Ivan passava uma impressão simpática de um intelectual crítico, mas ponderado. Pessoalmente, no entanto, ele cultivava o perfil de um cético radical. Reclamava muito e irritava-se facilmente. Muitas vezes, dava a sensação de um homem amargo, prisioneiro da caricatura que fez de si mesmo.

Era especialmente intolerante com qualquer comentário elogioso em relação à sua pessoa. Certa vez, uma das muitas cartas que chegavam dos ouvintes terminava afirmando que o remetente sonhava em, um dia, poder visitar Londres, onde passaria na BBC para dar “um abraço bem brasileiro no nosso querido Ivan Lessa”. Informado do conteúdo da carta do admirador, Ivan disparou: “Se ele aparecer, me informe para eu poder fugir. Eu não abraço nem minha filha, quanto mais um desconhecido”.

Sua participação no rádio estava a anos-luz do padrão radiofônico estabelecido no Brasil nas últimas décadas. Ouvir Ivan Lessa no rádio era um privilégio que passou despercebido por gerações de intelectuais que o cultuavam no Pasquim, mas não tinham o hábito de ouvir as ondas curtas. Ainda bem que, através da BBC, sua verve poderosa chegava não somente às capitais, mas também ao Brasil profundo. 

MARCELO ABREU, jornalista e professor da Unicap.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”