Arquivo

Os sonhos mais lindos, e alguns nem tanto

Desde a fotografia de revistas no pós-guerra até as campanhas de marcas de luxo nos dias de hoje, os fotógrafos de moda conduzem um universo onírico variado e muito bem-calculado

TEXTO Phelipe Rodrigues

01 de Dezembro de 2015

Fotógrafa usou o quadro 'A imperatriz rodeada por suas damas de honra', de Franz Winterhalter, como inspiração

Fotógrafa usou o quadro 'A imperatriz rodeada por suas damas de honra', de Franz Winterhalter, como inspiração

Foto Cecil Beaton

No livro A imagem mágica, de 1975, o fotógrafo, cenógrafo, escritor, ilustrador Cecil Beaton fez, em parceria com Gail Buckland, um dos melhores retratos de sua carreira. Ele sintetizou a fotografia de moda. “Uma profissão traiçoeira, na arte, representa o que o sex-appeal é para o amor. A astúcia pode ser uma coisa perigosa, quando mal-aplicada; os resultados são grosseiros e espalhafatosos. O uso correto depende do instinto. Cabe ao fotógrafo da moda criar uma ilusão, fazendo isso ele não está agindo com desonestidade, e, quando adequadamente invocada, o resultado não é somente uma ilusão; mais do que isso, faz o observador enxergar o que ele deseja ver.”

Essa opinião é de quem preencheu as páginas da Vogue USA com seu estilo elegante e pictorialista nos anos 1940. A clássica cena dos vestidos de baile do estilista anglo-americano Charles James, publicada pela editora Condé Nast, em junho de 1948, traz cada um desses elementos levantados por Beaton, com o controle e o cálculo matemáticos que o próprio James usava em seus vestidos-escultura. O ponto de partida para aquela foto foi o quadro de Franz Winterhalter, intitulado A imperatriz Eugênia rodeada por suas damas de honra. Vestidas com cores e texturas que remetem a uma luxuosa vitrine de doces, diante delas, o espectador recorda cenas da realeza europeia do século 19. Mas tudo ali era o presente, o estilo de 1948, com corpos, gestual, formas e iluminação que funcionam até hoje como caminho estético para fotógrafos de moda e stylists.


Fotógrafo Jamie Hawkesworth, que não gosta de estúdios, prefere ambientes livres, como os dos registros da campanha da Loewe. Foto: Jamie Hawkesworth

O imbricado jogo de referências de Beaton nos mostra que o acervo da fotografia publicitária no pós-guerra trouxe para os editoriais das revistas e as campanhas de grifes caras algo mais interessante que a imagem utilitária. Não se tratava apenas de apresentar um vestido para dias de calor ou trajes de momentos invernais com a finalidade óbvia de vender tecido, linha ou mão de obra. Surgia um convite para admirar. E também a criação de expectativas que cada um pudesse ter para se encaixar como personagem de um enredo sedutor. Assim, as fotos trabalham no campo do sonho de maneira mais eficiente. “O discurso chega carregado de aspectos subjetivos como identificação, pertencimento e códigos de vestir, ou maneiras de portar-se. A pessoa que fez a roupa e quem decidiu estampá-la em uma publicação parecem saber quase tudo sobre aqueles que vão consumir as páginas das revistas”, reflete José Afonso Júnior, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.

Mas, para que exista uma boa fotografia, mesmo na moda, em que as intenções de mercado são explícitas e o controle é operado em seu nível mais alto, é necessária uma brecha para o acaso. “Um exemplo muito bom seria Richard Avedon, com Dovima e os elefantes, uma foto de publicação massiva; algo que deveria só mostrar as roupas de noite da Christian Dior nas páginas da Harper’s Bazaar, em 1955, tem uma capacidade de provocação tão grande, que entra para a história”, aponta Afonso. Até virar obra de arte, vendida por R$ 2 milhões em leilão da Christie’s, há várias tentativas de explicar o sucesso dessa imagem. “A modelo tão frágil parece capaz de dominar elementos incontroláveis, como os elefantes do Cirque d’Hiver. Os superpoderes de Avedon sobre o preto e branco também fazem uma escola”, avalia Carol Garcia, coordenadora da graduação em Mídias Sociais Digitais do Centro Universitário Belas Artes, de São Paulo, e fundadora da Agência NAU, que trabalha com branding de aculturação.


Foto provocadora de Richard Avedon apresentou roupa da noite da Chistian Dior.
Foto: Richard Avedon

Por força do universo que investiga, as mídias digitais, Carol Garcia explica que passou a olhar para a fotografia de moda de uma maneira mais ampla. “Vejo que uma foto de e-commerce é tão importante quanto as imagens sofisticadas de um editorial. Todas precisam existir. Isso nos obriga a pensar de outras formas sobre o que consideramos fotografia de moda para os dias atuais”, provoca Carol Garcia. Ela cita o trabalho dos profissionais que registram o street style, o desfile que se faz nas ruas por gente que estaria no time das pessoas “normais”, como um campo que também merece atenção. “Alguns deles conseguem levantar questões interessantes, colocando o que seria um registro corriqueiro na esfera da arte. O artista holandês Hans Eijkelboom, que teve seu trabalho apresentado na 30ª Bienal de São Paulo, em 2012, faz isso. Ele trabalha com a similaridade da roupa que vestimos, mostrando que existem vários clones por todo o planeta”, aponta. Em vez de documentar o quanto as pessoas em várias capitais do mundo são ousadas e distintas, ele aposta nas imagens que reforçam o quanto os códigos sociais do vestir são limitadores.

LUZ NATURAL
Na trilha de uma nova safra de profissionais e de ideias, o artista plástico e fotógrafo carioca André Batista defende sua maneira menos complicada de criar sonhos. “Estou no time dos profissionais que, muitas vezes, dispensam maquiadores e até stylists. O clima da imagem pode ser inteiramente controlado por mim. Fiz um editorial para a versão brasileira da Glamour na Place des Vosges, em Paris, usando só a luz natural, sem rebatedor e sem retoque. O fundo era só um detalhe, porque o foco estava no primeiro plano e no rosto da modelo”, recorda André. Essa forma de construir histórias, segundo ele, é uma maneira sutil do europeu dizer que está com orçamento apertado. Sem perder a elegância jamais. “Mesmo na indústria do luxo, há os que detestam estúdio e descartam ambientes muito controlados. Posso citar o inglês Jamie Hawkesworth e sua campanha para o verão 2015 da Loewe. Dele também são as fotos da linha resort deste ano na Miu Miu.”


A modelo Kate Moss revelada pela fotógrafa Corinne Day, na capa da
The Face. Foto: Corinne Day

Em comum, ele e Hawkesworth têm a preferência pelo filme e muita atenção pela fotografia documental. “Vejo uma influência forte de Corinne Day, a inglesa que revelou Kate Moss na capa de The Face para uma geração inteira que desponta agora”, opina André. Corinne, falecida precocemente em 2010, era criticada por quem a considerava simplista demais. O rótulo foi rebatido pelo diretor de arte Phil Bicker, que a convidou para participar dos trabalhos iniciais em The Face. “Ela era ótima em capturar o momento, mas a realidade é que tudo era orquestrado, repetido, construído. Existe muita contradição a respeito de Corinne e seu trabalho, e um dos maiores desserviços foi que ela tentou chamá-los de momentos. Ela poderia ter sido vista como artista, em vez de uma fotógrafa de moda”, explica Bicker, numa entrevista publicada no site FFW.

Entre os sonhos faustuosos de Cecil Beaton e a assepsia de recursos e cenário que parece existir em Jamie Hawkesworth, há uma sondagem qualitativa bem- apurada antes de publicar cada foto. “A marca ou a revista que elegeu o universo estético de um fotógrafo não baseou sua decisão em achismos. Há espaço para o universo onírico ou uma foto documental, e mais crua. Essa orientação do discurso visual para um determinado segmento reduz estranhamentos”, observa Afonso Júnior. Para exemplificar, vale mostrar cenas de Helmut Newton, com suas camadas de fetiche e misoginia. Observadas por leitores da Vogue Itália ou da brasileira FFW, o leitor ávido por experimentos e novas linguagens vai concordar com a colocação de Beaton trazida no início deste texto: “Quando adequadamente colocada, a ilusão faz o observador enxergar o que desejava ver”.


Bob Wolfenson é um dos maiores nomes brasileiros no campo da
fotografia de moda. Foto: Bob Wolfenson

REVISTAS NACIONAIS
No mercado brasileiro de revistas, acusado de copista e careta em vários momentos, há muitos episódios que saem dessa curva de conformidade. “Otto Stupakoff, o primeiro grande fotógrafo de moda no nosso país, desobedecia padrões para criar sua estética autoral. O mesmo aconteceu com as produções que J.R. Duran e Bob Wolfenson faziam no período de duas revistas lendárias, a Moda Brasil e a Claudia Moda, que circularam até o início da década de 1990”, lista André Batista.

Dos nomes escolhidos por ele, talvez seja Wolfenson o mais longevo e corajoso, assinando desde uma matéria da FFW inspirada no livro O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, construindo o “nu artístico” em títulos masculinos e criando campanhas para marcas do mainstream. O livre trânsito por vários territórios é, além de necessidade de sobrevivência, um fundamento nessa área de atuação, que exige instinto e uma capacidade contínua de renovação. A moda e o fotógrafo de moda precisam renovar o tempo inteiro – e de maneira muito acelerada – seu estoque de referências e de sonhos, que o espectador ainda nem sabia que existiam. 

PHELIPE RODRIGUES, jornalista com especialização em Moda. Faz direção criativa em editoriais e campanhas. Dá aulas de história da moda brasileira.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”