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Poesia: Uma mistura de contrários

TEXTO Fábio Andrade

01 de Agosto de 2014

Imagem Pablo Bernasconi

[conteúdo vinculado à reportagem de "Leitura" | ed. 164 | ago 2014]

"Déjame que me pierda entre palabras,/
déjame ser el aire en unos labios,/ un soplo vagabundo sin contornos,/ breve aroma que el aire desvanece.” Eis o destino do poeta, segundo Octavio Paz. E talvez tenha sido ele um dos mais capazes tradutores, tanto em seus escritos ensaísticos como em seus poemas, da condição e importância da poesia em nosso tempo. Sem dúvida, um dos que mais encarnaram esse destino – o de perder-se no fluxo vulcânico da criação poética, a ponto de mesclar a reflexão crítica e teórica com sua própria poesia, resultando daí um idioma lúcido, belo e contundente.

Como ensaísta, talvez tenha sido um dos mais importantes no século 20. Seus livros O arco e a lira (1956), Os filhos do barro (1974) e A outra voz (1990) são referências obrigatórias para se pensar a modernidade literária que se inicia no Romantismo, como ele mesmo nos propõe, e continua desde então como um processo dialético em que as noções de modernidade e tradição têm que ser repensadas constantemente, para se entender o fenômeno a que ele mesmo chamou detradição moderna. Como poeta, Octavio Paz foi dono de uma vigorosa linguagem, cosmopolita e, ao mesmo tempo, conectada em suas raízes ameríndias.

Um rápido olhar sobre sua obra poética, desde seus primeiros livros – reunidos em Libertad bajo palabra (1949) – até as últimas publicações, apresenta-nos uma voz que tenta sintetizar tradição e renovação. Uma voz múltipla que se constituiu através de formas profundamente tradicionais como o haiku (ou haicai) japonês, mas também da poesia visual, como acontece em seu poema Blanco, traduzido para o Brasil por Haroldo de Campos. Para o tradutor, na edição crítica que oferece aos leitores brasileiros, Octavio Paz “representa, no âmbito de uma literatura poética em que vinha, aos poucos, prevalecendo a superfetação retórica e a indulgência sentimental tardo-nerudianas, a tentativa quase isolada de delineamento de uma zona de rigor, de constante questionamento criativo da medula da linguagem”. A multiplicidade da poesia de Paz reflete essa constante pesquisa de linguagem, e a também frequente reavaliação da visão de mundo que sua rica poesia oferece.

A trajetória literária de Octavio Paz começou muito cedo. Aos 19 anos, ele lança seu primeiro livro de poemas: Luna silvestre (1933). Radicalmente aberta para a experimentação e para a capacidade de recriação, sua poesia dialogou com várias correntes estéticas ao longo do século 20. Seu interesse pela tradição poética zen do haicai (foi tradutor de Bashô), assim como pela poesia clássica indiana anda de mãos dadas com seu interesse pela política e pelo erotismo tântrico. Tudo isso vai deixando marcas profundas em sua dicção poética.


O poeta Haroldo de Campos traduziu obras de Paz e também as analisou criticamente. Foto: Divulgação

OCULTO NO SONHO
Uma das marcas mais fortes, entretanto, foi o Surrealismo, que explica a abertura do seu pensamento a formas tradicionais e mágicas de pensar a poesia e o mundo. O Surrealismo e seu programa de resgatar o homem profundo, aquele que se oculta no sonho, no pensamento mágico ou numa forma de olhar que revelam as imagens mais inusitadas, como nos versos de seu pequeno poema Relieves: “La lluvia, pie danzante y largo pelo,/ el tobillo mordido por el rayo,/ desciende acompañada de tambores:/ abre los ojos el maíz, y crece” (A chuva, pé dançante e cabelo solto,/ o tornozelo mordido pelo raio,/ desce acompanhada de tambores:/ a espiga abre os olhos, e cresce” – tradução de Haroldo de Campos).

O gosto pela imagem surpreendente, mas também pela musicalidade densa de um verso livre educado na contenção oriental é um dos traços mais comuns em sua trajetória poética. O Surrealismo lhe ensinou a ânsia mágica pela imagem onírica; o haicai disciplinou a revelação dessas imagens. A poesia clássica indiana conferiu ao lirismo amoroso próprio do Ocidente, também presente em sua poesia, um caráter transcendental; a mitologia olmeca conectou-o espiritualmente com suas raízes ameríndias. A poesia de vanguarda e visual instilou no poeta o experimentalismo; a exuberância barroca aguçou a sua sedutora discursividade.

A poesia de Octavio Paz se ergue de uma curiosa mistura de contrários – o barroquismo latino-americano e o minimalismo da poesia clássica japonesa. Mais do que isso, em sua voz as dicotomias se resolvem, os contrários se fundem numa poética da convergência, termo crítico cunhado por ele e, mais do que isso, materializado pela sua poesia. Uma poesia transcultural, um verdadeiro concerto de imagens e vozes que insistem em sobreviver ao tempo. Uma constelação histórica que a poesia atesta ser cada indivíduo, cada ser. Como diz a própria voz convergente de Octavio Paz: “Fala escuta responde-me/ o que o trovão diz/ o bosque o compreende” (tradução de Luís Pignatelli). 

FÁBIO ANDRADE, professor de Estudos Literários da UFPE e escritor.

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