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“A linguagem do livro é mais um pastiche que uma reconstrução”

O escritor gaúcho Samir Machado de Machado comenta o processo de feitura do romance 'Quatro soldados' e as pesquisas, no mesmo período histórico, que envolvem seu próximo livro

TEXTO Priscilla Campos

01 de Abril de 2014

Samir Machado de Machado

Samir Machado de Machado

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Leitura" | ed. 160 | abril 2014]

Samir Machado de Machado nasceu em Porto Alegre,
em 1981. Além de escrever, trabalha como designer editoral e editor da Não Editora. No tempo livre, o gaúcho organiza o Sobrecapas, espaço em que analisa e armazena capas de livros diversos. Entre as suas obras, estão o romance O professor de botânica e a série Ficção de polpa. No momento, Samir trabalha em novo romance, ambientado no mesmo período histórico de Quatro soldados.

CONTINENTE A temática de aventura com alusões ao heroísmo é pouco explorada hoje na literatura brasileira e você a desenvolveu com propriedade e segurança narrativa. Como foi esse processo?
SAMIR MACHADO Os personagens desse livro eu carrego comigo já faz bastante tempo. A ideia de uma história de “aventura”, do modo como eu vejo, é de um enredo sobre a relação do personagem com o espaço que ele atravessa, tanto geográfico quanto emocional. Cheguei a pensar que escreveria com eles um longo romance de fantasia ou ficção científica, mas depois me ocorreu que seria mais prático ambientar essa narrativa em um espaço de tempo histórico, do que criar do zero um mundo novo. E, para o tipo de história que eu queria contar, o período da metade do século 18 era o ideal: o Brasil Colônia, que é explorado e mantido à míngua por Portugal, mas vivendo momentos definidores de algumas identidades regionais e nacionais.

CONTINENTE Quanto tempo você levou e como foi realizado o estudo da época ambientada no livro? O quanto essa pesquisa histórica influenciou na criação das narrativas?
SAMIR MACHADO Eu trabalhei oito anos no livro, o que não significa só pesquisa histórica e literária, mas oito anos para descobrir qual voz eu queria dar aos personagens, qual seria minha própria voz, como autor. Os personagens tinham características específicas que eu havia definido antes mesmo de começar a pesquisar, e para isso foi preciso encontrar uma forma realista de adaptar seus perfis à realidade daquela época. Um livrinho obscuro, publicado pela Biblioteca do Exército, em 1950, intitulado Os dragões de Rio Pardo, me ajudou muito na criação do cenário. Uma coisa que me interessa é o quanto das “certezas” daquela época são absolutamente ridículas hoje em dia, mas eram dadas como certas, e, portanto, definiam a visão que se tinha da realidade.

CONTINENTE Quatro soldados apresenta uma linguagem narrativa que mescla expressões e linguajar do século 18 com uma prosa coloquial, presente nas publicações contemporâneas. Além disso, você utilizou uma grafia diferente em alguns trechos, na qual a escrita do S chama bastante atenção. Como se deu tal construção?
SAMIR MACHADO A linguagem do livro é mais um pastiche do que uma reconstrução da linguagem da época. Minha inspiração maior foram, especificamente, as traduções feitas pelo Paulo Henriques Britto para o Mason e Dixon, do Thomas Phynchon, e para o Viagens de Gulliver, lançado pela Companhia das Letras. Não é, de fato, uma linguagem antiga, apenas utilizei palavras que fossem contemporâneas aos meus personagens, evitando aquelas que só tivessem entrado na língua portuguesa depois do século 18. Ou seja: trabalhei com o Houaiss aberto de um lado e o site Brasiliana da USP no outro, no qual se mantêm scans do dicionário de Raphael Bluteau, de 1728, e de Antonio de Moraes Silva, de 1789. Esses dois últimos me possibilitaram checar a data de origem das palavras e a grafia. Já a escrita diferente é uma imitação do português setecentista, respeitando a ortografia, a gramática e a tipografia da época (o que inclui o uso do S longo, já em desuso hoje em dia, que se parece demais com um F minúsculo). Gosto desse tipo de minúcia, principalmente, porque serve para lembrar que não somente o mundo de então era muito diferente do nosso, mas a própria forma de expressá-lo e de se expressar era uma coisa que, vista hoje em dia, parece algo alienígena.

CONTINENTE Ao final da leitura, fica claro que Quatro soldados é, também, uma ode à literatura. Quais as suas referências pessoais (literárias, cinematográficas) estão presentes na obra?
SAMIR MACHADO Até mais que a literatura, o livro para mim é sobre o modo como a ficção nos ajuda e nos ensina a definir nossas próprias identidades, bem como o modo que vemos e nos relacionamos com o mundo à nossa volta. Alguns personagens leem muito, outros leem pouco, alguns nem leem, mas essa relação (ou não relação) com a leitura, com o ficcional, é o que define, amplia ou limita a percepção deles, conforme a personalidade de cada um. Tenho uma relação mais cerebral do que emocional, com Pynchon; minha experiência de leitura com ele foi, sobretudo, um mindfuck em termos de possibilidades de forma e experimentação. Quando o li, já estava na metade do processo de escrever o livro. O ponto de partida foi, na verdade, o Baudolino do Umberto Eco, seguido de algumas leituras de Borges, intercaladas com Michael Chabon, o Reparação do McEwan, Moby Dick; os quadrinhos do Alan Moore, as peças do Peter Shaffer, os livros de Harry Potter, Cormac McCarthy, Bernard Cornwell, Érico Veríssimo. Aliás, uma das principais referências (e um livro que ninguém mais lê hoje em dia), que me serviu de modelo tanto na estrutura quanto no tom geral da terceira parte do livro, foi o Bambi de Felix Salten, cruzando também com alguns games. No que diz respeito ao cinema, há pelo menos duas passagens que piscam o olho para Os pássaros do Hitckcock e para Jurassic Park do Spielberg. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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