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“Pagar ao biografado equivale a pagar por entrevista”

Premiado com o Jabuti, pela biografia sobre Carlos Marighella, o jornalista Mário Magalhães defende que o gênero (literário ou jornalístico?) tenha liberdade para ser produzido

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2013

Mário Magalhães

Mário Magalhães

Foto Leonardo Aversa/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 155 | novembro 2013]

Com Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo,
uma extensa reportagem sobre o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella (1911-1969), publicada pela Companhia das Letras em 2012, o jornalista Mário Magalhães ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes e, no mês passado, a mais importante honraria literária do país, o Jabuti. Em ambos os casos, na categoria de melhor biografia. Ironia ou acaso que ele, nascido no Rio de Janeiro na primeira semana de abril de 1964, quando o Brasil respirava o início da ditadura militar, tenha atingido o status de escritor premiado com a biografia de um dos mais temidos inimigos do regime que se estendeu até 1985? Tanto faz: o que importa é que Magalhães defende, com veemência, o direito dos jornalistas e biógrafos de continuarem investigando, reportando e escrevendo.

CONTINENTE Para você, autor de uma biografia que acaba de receber o Prêmio Jabuti na categoria (e para a qual, como você escreveu em seu blog, os herdeiros de Marighella lhe deram total liberdade), qual é o principal dano que pode advir do veto ao gênero? O seu lento abandono? Ou a perspectiva do monopólio de histórias “oficiais”?
MÁRIO MAGALHÃES Uma questão conceitual: sei que muitos biógrafos jornalistas julgam que as biografias constituem um gênero jornalístico ou literário. Para mim, são reportagens. Com características singulares, pois contam vidas. A reportagem, sim, é um gênero do jornalismo, o mais fascinante. A legislação em vigor permite impor a exclusividade de biografias laudatórias. No limite, haveria um monopólio da verdade, expresso em biografias chapas-brancas, com a chancela da lei, o Código Civil. Seria uma tragédia, cujos indícios já surgem. Existem livros proibidos, projetos biográficos cancelados e numerosos autores tentados a abandonar as biografias enquanto a norma obscurantista que autoriza a censura prévia se mantiver. Eu desisti: enquanto a lei não mudar, não escreverei biografias.

CONTINENTE E o que mais o surpreende: a ideia de que os herdeiros poderão reprimir as biografias ou a noção, defendida por alguns artistas, de que o biógrafo capitaliza e faz fortuna com seu trabalho? Seu balanço financeiro, digamos assim, não foi lá para cima com a imersão na vida de Marighella, não foi mesmo?
MÁRIO MAGALHÃES O verbo deve ser conjugado no presente. Os biografados e seus herdeiros já “podem” proibir biografias, amparados pela lei. Têm feito isso. Não sou contra biógrafo e biografado compartilharem os direitos autorais de um livro. O inaceitável é impor essa regra. Porque uma biografia não autorizada, como a que escrevi, tem caráter jornalístico. Uma das características do jornalismo é a sua condição de serviço público. Pagar ao biografado equivale a pagar por entrevista. Isto é, desvirtua a natureza do jornalismo independente. No caso, da biografia não autorizada. Cinema é outra coisa. Trata-se de entretenimento, showbiz. Jornalismo é serviço público, mesmo quando exercido por empresa privada. Pelos livros vendidos e a cessão dos direitos da biografia para o cinema, receberei meros 15% do total de salários de que abri mão nos 69 meses em que me dediquei exclusivamente a Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo. Empenhar-se em uma biografia, como me empenhei, é um péssimo negócio financeiro, mas um gratificante empreendimento de vida.

CONTINENTE Algumas pessoas, entre elas profissionais que ouvimos para a matéria que estamos publicando agora, têm argumentado que a discussão está sendo feita de forma açodada e que é preciso um debate mais amplo sobre a questão. Você concorda?
MÁRIO MAGALHÃES Incrível é que muitos que falam agora em discussão açodada não pronunciaram uma sílaba quando o Código Civil foi aprovado com dois artigos, o 20 e o 21, escancaradamente inconstitucionais, ao prever a censura prévia. Há muitos tresloucados e açodados, como temos visto. Mas a discussão tarda, era para anteontem. Ou viver sob censura é legítimo? E outros têm insistido em que não se trata de censura, e, sim, de preservar o direito à privacidade. O que você pensa sobre isso, ainda mais se levarmos em consideração que um outro direito, o da liberdade de expressão, está garantido na Constituição? O direito à privacidade é assegurado legalmente. Bem como o de não ser alvo de calúnia e difamação. Mas não é porque a lei prevê punição para homicidas que os assassinatos acabaram. Quem comete crimes como os de difamação e calúnia e viola a privacidade deve ser processado e punido com rapidez e dureza. A propósito: o que isso tudo tem a ver com censura prévia em plena democracia? O Código Civil não fala em biografias, seu alvo é muito mais amplo. Atinge toda a produção jornalística e cultural. Com base nessa lei, a revista Continente pode ser obrigada a pedir autorização a um perfilado que tema por sua “boa fama”. Já pensou?

CONTINENTE Imaginamos que a experiência de Marighella lhe dê subsídios para tecer comparações com o exercício jornalístico e literário da biografia praticado em outros países. Que diferenças lhe são mais sintomáticas, nesse caso?
MÁRIO MAGALHÃES Biógrafos brasileiros, como Ruy Castro e Fernando Morais, estão entre os melhores do planeta. Nada devem aos britânicos e norte-americanos. A maior diferença hoje é que o Brasil configura a única grande democracia a impor censura prévia para biografias. 

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