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Tradutores são leitores sem álibis

TEXTO Caetano Galindo

01 de Julho de 2013

Imagem Walter Vasconcelos

[conteúdo vinculado à reportagem de "Linguagem" | ed. 151 | julho 2013]

Particularmente, não gosto das ideias que orientam
o único livro de Umberto Eco especificamente devotado à questão da tradução. Desde o título, Quase a mesma coisa, parece-me dar uma ênfase indevida às perdas. Quase uma versão menos ingênua da famosa afirmação de Robert Frost de que “poesia é o que se perde na tradução”.

Para mim, é sempre mais interessante, conceitualmente, em termos literários, pensar no que as traduções de um texto literário tem de “a mesma coisa” do original. Não se trata, claro, de negar “perdas”. Ora, eu traduzi Joyce. Venha me falar de “perdas”... Sei muito bem. Senti cada uma na carne, e doeu bem mais em mim que em você.

Não se trata também de oferecer qualquer hipótese de centralidade para os “ganhos” havidos em qualquer processo de tradução. E eles estão lá. Quase sempre, se você pensar em termos de detalhes e belezas fortuitas, e sempre, se pensar em termos filosóficos, do diálogo entre obras e culturas, da continuidade da empresa literária do romance X na nova língua Z.

A questão, para mim, que me leva a achar meio azedinha a formulação de Eco é só a de eu valorizar demais um óbvio tão cantante, que, por vezes, pode passar despercebido. Um óbvio aplicadamente defendido, por exemplo, por Paulo Henriques Britto no recente A tradução literária, e na verdade nada ignorado pelo mesmo Eco, que tanto naquele livro quanto em outros aborda o assunto convincentemente: o fato de que, a não ser em casos de desfiguração criminosa (que não podem servir de base à epistemologia alguma), o leitor de um texto traduzido pode, e deve, afirmar com todas as letras e fonemas, na sua língua, na do original ou em qualquer outra, que leu o original.

O fato óbvio de que o nosso Guerra e paz é totalmente diferente do livro que Tolstói escreveu (não é nem de longe a mesma coisa), mas é reconhecido como o mesmo livro. A mesma coisa. Não um subterfúgio, não um sucedâneo parcial. O mesmo fato cultural-literário, na medida, claro, em que esses fatos-eventos sejam reiteráveis, mesmo na cultura e no idioma originais.

Para mim, o meu Ulysses não é um quase-Ulysses. Nem o meu, nem qualquer outra tradução respeitável. Como já disse em mais de um lugar, romances podem se assemelhar mais a sonatas do que a quadros. Eles não são ‘reprodutíveis’, como queria Walter Benjamin, considerando a ‘reprodução’ como simultâneos barateamento e oferta de acesso. Eles são ‘executáveis’, dependentes de novas versões para ganhar vida, para poder chegar ao seu público. E só ganhando com isso.

E ninguém há de dizer que a interpretação de Evgeny Kissin da Suggestion diabolique, de Prokofiev, é quase a peça que o seu autor criou.

Tenho dito.

Agora, no mais novo Confissões de um jovem romancista, Eco acaba voltando ao tema de forma mais pragmática e, para mim, aqui, mais interessante. O trecho que eu cito a seguir é longo, mas vale a citação (cito pela edição brasileira, Confissões de um jovem romancista, Cosac & Naify, 2013, tradução de Marcelo Pen).

Por vezes acontece de um dos meus tradutores fazer a seguinte pergunta: “Estou em dúvida sobre como verter essa passagem, porque ela é ambígua. Pode ser lida de duas maneiras diferentes. Qual foi a sua intenção?”

Dependendo do caso, tenho três respostas possíveis.

1. É verdade. Escolhi a expressão errada. Por favor, elimine qualquer mal-entendido possível. É o que farei na próxima edição italiana.

2. Tive de fato a intenção de que essa passagem fosse ambígua. Se ler com atenção, verá que a ambiguidade exerce influência no modo como se compreende o texto. Por favor, faça o possível para manter a ambiguidade em sua versão.

3. Não percebi a ambiguidade e, honestamente, não quis fazer isso. Mas, como leitor, considero-a muito intrigante e proveitosa para o desdobramento do texto. Por favor, faça o possível para conservar esse efeito em sua tradução.

Agora, se eu tivesse morrido há alguns anos (uma condição contrafactual com muitas probabilidades de se tornar verdadeira antes do fim deste século), meu tradutor – atuando como um leitor normal e intérprete de meu texto – poderia ter chegado por si próprio a uma das seguintes conclusões; na realidade, idênticas às minhas possíveis respostas:

1. A ambiguidade não tem nenhum sentido e complica a compreensão do texto pelo leitor. O autor provavelmente não se deu conta disso, de modo que o melhor é eliminá-la. “Quandoque bonus dormitat Homerus” – “De vez em quando até o bom Homero cochila.”

2. Parece que o autor foi intencionalmente ambíguo e seria bom respeitar a decisão dele.

3. É possível que o autor não tenha percebido a ambiguidade. Mas, do ponto de vista do texto, esse efeito de incerteza é rico em conotações e nuances que muito contribuem para a estratégia textual do conjunto.


Em
Confissões de um romancista, Umberto Eco volta ao tema da tradução.
Foto: Reprodução

O tradutor está sempre sozinho.

Traduzir um romance grande, e difícil, pode custar centenas de horas de um trabalho intenso que, para poder existir, demanda efetivo isolamento, silêncio, reclusão mesmo... É uma operação íntima, de mexer e remexer no trabalho alheio, feita em quase todos os momentos numa situação em que um contrato de confiança foi estabelecido sem cláusulas de exceção.

É claro que outras pessoas lerão o texto “final” antes de ele chegar ao leitor, e é claro que nessas instâncias se configura um trabalho realmente colaborativo, dialogado, para o bem do livro, para o bem de todos. Mas nada contorna o fato de que mesmo esse trabalho se institui sobre o texto gerado pela tradução inicial, depois dela. Aquele pacto de confiança, que se verá reinstanciado no momento da leitura, regeu o estabelecimento das condições de operabilidade posteriores.

O tradutor, sozinho, decidiu, optou, apresentou um texto.

O que a possibilidade do contato com o autor oferece ao tradutor que lida com obras contemporâneas é um horizonte de minoração dessa solidão. Tudo bem. E isso você sente enquanto trabalha, mesmo antes de se decidir a escrever para o autor com qualquer dúvida pontual. Que você está como que dialogando com alguém que pode responder.

E a possibilidade da resposta no diálogo altera toda e qualquer enunciação. Bem se sabe.

O curioso, no entanto, é que essa nova situação de “só-e-bem-acompanhado” é uma bênção que também tem lá suas pegadinhas. E elas acabam advindo, quase todas, precisamente dessa diminuição de “responsabilidade”.

A tradução é, fundamentalmente, uma operação de responsabilidade. Um lugar de onde não há fuga. Uma caverna que não apresenta esconderijos. (É essa talvez a principal razão de eu não gostar muito das conversas que presumem uma excessiva “humildade” na posição do tradutor. Se ele escamoteia demais essa responsabilidade, acaba me parecendo pouco confiável.)

Agora, se eu posso, num momento de incompreensão, de dúvida, simplesmente destacar o texto em belo amarelo e anotar um “falar com o autor”, eu simplesmente pulo uma fase do processo. É como olhar a solução das palavras-cruzadas no fim da revista.

É claro que isso acontece. E é claro que muitas vezes é louvável, mas só quero lembrar aqui o outro gume. Porque sempre são dois.

RELAÇÃO COM O AUTOR
Um outro fator curioso é que se pode também superestimar a disposição, a boa vontade, e o reconhecimento da falibilidade pessoal dos autores.

Nem todos terão a (famosa, mesmo) atitude simpática, curiosa e tolerante de Eco com seus tradutores (ou leitores). E pelos mais variados motivos. Joyce, assim que publicou o Ulysses, praticamente não se interessava mais pelo livro. A cabeça dele já estava em outro lugar. Ele soube até ser leviano com certas questões da tradução francesa do livro, que a princípio revisou. Mesmo que estivesse vivo, não teria sido de grande ajuda para mim.

David Foster Wallace, mesmo vivo, era quase escrupulosamente recolhido quanto à fortuna crítica dos seus livros. Duvido que se manifestasse muito diretamente.

Outros autores, simplesmente, parecem ficar putos quando você menciona problemas nos seus livros. E não só as ambiguidades a que Eco se refere. Anacronismos, inconsistências internas, falhas de enredo...

Tradutores, nunca é demais repetir, são os únicos leitores sem álibis. Nenhuma palavra do livro pode ser meio entendida. Nada pode ser saltado. Nada pode ficar sem uma interpretação. E, assim, eles acabam vendo coisas que, por vezes, passaram pelos olhos de autores-editores-revisores etc. Não são nada raros os casos, o que Eco também cita em outros momentos, em que segundas e terceiras edições de um livro vieram de fato a incorporar sugestões e correções que surgiram nas traduções da obra.

José Roberto O’Shea, por exemplo, com uma atenção a detalhes simplesmente incansável, é a garantia de que os livros de Harold Bloom saem sempre no Brasil com menos erros de datas, nomes e fatos.

Mas tem gente que não gosta, sabe?

De se ver corrigida...?

E aí você aponta o problema, sugere a correção, e se vê condenado a reproduzi-lo inalterado, porque o autor quer. E, cacilda, é ele que manda! Vou ser o último a questionar!


Depois que publicava um livro, o irlandês James Joyce praticamente se desinteressava pela obra. Foto: Reprodução

E, de repente, mesmo com o autor a um e-mail de distância, você pode continuar sozinho. Ou, pior, pode se ver pior que sozinho, sem a autoridade de emendar silenciosamente, como diziam os filólogos, porque agora cometeu a bobagem de passar pelo beija-mãos e a autorização lhe foi negada.

Tudo isso, óbvio, é completamente diferente no caso do autor morto, há cinco ou 500 anos. Aqui, as responsabilidades estão todas nas costas do tradutor, com tudo que isso possa ter de assustador, mas também de encantador. Em cada caso.

Porque, não se engane, um autor morto há cinco anos é um autor vivo que está morto. Ele, para todos os efeitos, é tratado como aquilo, mas de fato é isto. Normalmente, ele, inclusive, terá lugares-tenentes, espólios ou editores, que podem responder mais ou menos com a mesma autoridade. Já um fulano falecido há 500 anos não só está bem comportadamente mortinho, como, além de tudo, se continua sendo traduzido, traz consigo a responsabilidade do cânone, do clássico, do tabu.

Nunca haverá uma situação simples.

Traduza Shakespeare e você tem todo o peso de lidar com o monstro sagrado, e vai se sentir devidamente limitado por essa responsabilidade. Traduza Ian McEwan e é a presença do autor que serve como limitador. Traduza David Foster Wallace e você, em certo sentido, tem o pior dos dois mundos.

Parece aqui que eu estou quase dizendo que os autores são um problema para os tradutores?

Não me leve tão a sério, ou tão a mal.

Eu não existo sem eles. Nem sonho com o contrário. Mas, mais uma vez, me vejo na obrigação de meramente apontar as complicações existentes por trás do que parece ser uma situação singela. É todo o esqueleto do ofício do tradutor (o cara por trás dos panos, por baixo da mesa) que se arvora a deblaterar em público.

Assim como, diga-se de passagem, é do ofício do tradutor se pôr inteiro, corajosa e humilhavelmente, na frente desse autor, para só assim poder estar à altura de responder a ele, de representá-lo, interpretá-lo. O pianista demasiado humilde é desinteressante.

Fidelidade? É bem mais complicado do que os leitores supõem.

Responsabilidade? Pode ser o contrário do que os leitores supõem.

Que legal poder trocar figurinhas com o autor?

Claro. Além de obviamente ser um puta privilégio. Felicidade, mesmo.

Mas há mais aí do que supõe nossa vã filosofinha… 

CAETANO GALINDO, doutor em Linquística pela USP, professor da UFPR e tradutor de James Joyce.

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