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Três décadas do Grupo da Gente

A atuante companhia é herdeira de uma história de resistência dos elencos teatrais surgidos no interior do estado, longe dos holofotes da capital

TEXTO Williams Sant'Anna

01 de Outubro de 2012

Peça 'O cavalo que defecava dinheiro' revela o interesse do grupo pela literatura de cordel

Peça 'O cavalo que defecava dinheiro' revela o interesse do grupo pela literatura de cordel

Foto Marcelo Ferreira/Divulgação

No final do século 19 e início do 20, o Cabo de Santo Agostinho possuía núcleos teatrais, quase sempre ligados a organizações literárias e musicais, que apresentavam repertórios permanentes, e atraíam a atenção das mais diferentes camadas da sociedade. Era um momento de efervescência do teatro produzido fora da capital, tanto que, em 1936, o Grupo Gente Nossa (1931-1941) reuniu esses conjuntos dramáticos no I Congresso de Teatro que se tem registro no Recife, contando com representantes de Jaboatão dos Guararapes, Garanhuns, Palmares, Caruaru, Olinda, Goiana, Vitória de Santo Antão, Ribeirão, Gravatá, Escada, Paudalho, Timbaúba, Cabo de Santo Agostinho e de cidades em que se desconhecia até a existência de uma vida teatral, como Quipapá e Canhotinho.

Enquanto a década de 1940 assistia à consolidação do Recife como polo teatral, nas cidades do interior (ainda não se tinha o conceito de região metropolitana) ocorria a decadência de seus conjuntos dramáticos. Alguns municípios ainda resistiram e mantiveram agentes ligados às igrejas, grêmios literários, escolas ou segmentos profissionais. Caruaru, por exemplo, foi sede, na década de 1950, do I Festival Regional dos Teatros de Estudantes de Pernambuco, e possui o grupo que, depois do Teatro de Amadores de Pernambuco – TAP (1941), há mais tempo está em atividade no estado, o Teatro Experimental de Arte – TEA (1962).

Mas muitos dos artistas que se destacavam nessas companhias do interior, passavam naturalmente a residir no Recife para complementarem seus estudos e, em grande parte, integravam os elencos da capital, voltando raramente a contribuir para o teatro da cidade natal. O cabense Barreto Júnior (1903-1983), que foi homenageado emprestando seu nome a duas casas de espetáculos em Pernambuco (no Cabo de Santo Agostinho e no Recife, ambas inauguradas em 1985), só iniciou sua relação com o teatro na capital, justamente pela necessidade de ampliação da formação escolar.

Na década de 1970, vimos a retomada vigorosa do teatro no interior do estado. Quando em 1977, a Federação Nacional de Teatro Amador (Fenata, 1974) se transformou em Confederação do Teatro Amador (Confenata), já funcionava no Cabo de Santo Agostinho o mais importante grupo de teatro da região, o TAC – Teatro de Amadores do Cabo (1973-1987) ligado à Legião Brasileira de Assistência (LBA). A importância do TAC fez com que o município recebesse, em 1978, o I Congresso Norte e Nordeste de Teatro Amador promovido pela Confenata, e originou dois outros importantes núcleos, o Povoarte (1977-1983) e o Grupo da Gente – Grudage (1982).

O Povoarte, fundado por Antonino de Oliveira Júnior, buscou reforçar o caráter inicial de transgressão e protesto social iniciado pelo TAC, num período em que a expressão era deliberadamente cerceada pelos poderes constituídos. E, apesar de sua breve existência, contribuiu fundamentalmente para provocar o espírito contestador nas artes cênicas no município. Em 1975, foi fundada a Associação Cabense de Teatro Amador (ACTA), responsável por aglutinar outros artistas em momentos importantes da história política e cultural do município.

Último descendente direto do TAC, o Grudage foi fundado por Francisco Alves e Edinaldo Oliveira na busca de um teatro “da gente”, propício a um maior protagonismo dos adolescentes. Seu primeiro espetáculo foi A eleição, da paraibana Lourdes Ramalho, da qual o grupo ainda encenou Guiomar, sem rir, sem chorar (1983), seu maior sucesso, e Uma mulher dama (1985). A amizade e a identificação do grupo com as comédias de costumes e de crítica social de “Dona Lourdes”, como carinhosamente é chamada a dramaturga, foi tão intensa, que, em 1985, realizou no município a Mostra de Teatro Lourdes Ramalho, com apresentações e debates sobre sua obra.

PRODUÇÃO ARTESANAL
O Grudage iniciou a montagem de seus espetáculos com recursos próprios ou solicitando o apoio do comércio local através de livro de ouro. Do modo artesanal de produção, paulatinamente, o grupo foi criando alternativas em busca de sustentabilidade através da venda de espetáculos para órgãos públicos e escolas, participações em projetos, realização de espetáculos de entretenimento para angariar fundos para outras empreitadas cênicas e, no momento atual, utilizando-se dos mecanismos de fomento às artes cênicas.

Além disso, a renda da bilheteria dos espetáculos era revertida, em sua totalidade, para custear as despesas com as récitas e reforçar o caixa de reserva. O Grupo da Gente foi o primeiro núcleo teatral do Cabo de Santo Agostinho a realizar temporadas com suas encenações no município e no Recife. Participando ativamente como liderança do movimento cultural na região, assumiu papel de destaque dentro da então Federação do Teatro Amador de Pernambuco (Feteape, 1976), sendo responsável durante anos pela articulação do movimento federativo da Mata Sul, mesmo estando situado na RMR.

Promoveu inúmeras atividades de formação, integrou a programação e foi premiado em festivais de teatro estaduais, regionais e nacionais, conseguindo aglutinar grupos e artistas para discutir as questões da política cultural do município. Na ficha técnica de seus espetáculos, além de artistas e educadores do Cabo, encontram-se colaboradores importantes de outras cidades de Pernambuco.

Em 2007, com a montagem de O cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, e, em 2008, com a remontagem do espetáculo O homem que discutiu com o cachorro e vacinou a sogra, de Álvaro Batista, o grupo retomou o interesse pela literatura de cordel. A partir daí, desenvolveu o Projeto Caboêtas (termo pejorativo dado a quem nasce no município), com o qual encenou O Cavalo que defecava dinheiro para diversas cidades na Mata Sul de Pernambuco, entre outras encenações.

Neste outubro, o Grupo da Gente chega aos 30 anos com a maturidade de poder decidir sobre o próprio destino, com capacidade produtiva e sem perder o espírito coletivo e crítico. Se o TAC e o Povoarte forjaram o moderno teatro cabense, o Grudage é responsável pela manutenção de importante legado, reafirmando a existência de uma arte pulsante e insurgente além dos limites da Veneza Brasileira. 

WILLIAMS SANT'ANNA, jornalista, ator, arte educador e produtor cultural.

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