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Um olhar sobre o passado arquitetônico moderno do Recife

TEXTO Guilah Naslasvsky

01 de Maio de 2014

Plano urbanístico da Cidade Universitária, de autoria de Mario Russo

Plano urbanístico da Cidade Universitária, de autoria de Mario Russo

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 161 | mai 2014]

Os moradores da cidade provavelmente se lembram
do glamour dos tempos áureos da sede do Sport Clube do Recife, com amplos espaços, superfícies de mármore branco polidas, grandes panos de vidros transparentes, tubos de aço inoxidável brilhantes, amplas escadarias e elegantíssimo bar. Ou assistiram a um dos clássicos jogos de futebol no Clube Náutico Capibaribe, sobre as arquibancadas cobertas por delgadas lajes em concreto. Quantos dos recifenses não assistiram a programas de rádio ao vivo, no Antigo Palácio do Rádio à Avenida Cruz Cabugá? Quem não se deslumbrou com os filmes americanos exibidos no glamoroso Cine Art Palácio, com tapetes vermelhos, vasos dourados e grandes painéis espelhados?

A Praia de Boa Viagem também oferece testemunhos, pois muitos verões foram ali passados na presença de postos salva-vidas – delgados tubos cilíndricos cobertos por lajes do tipo cogumelo, tudo em concreto – em residências pitorescas de veraneio, quase folclóricas, que representavam nossas várias modernidades, muitas delas herdeiras dos estilos difundidos pelo cinema americano. Eram verdadeiras “casas de cinema”, nas palavras de dona Marta Maia (esposa do arquiteto Heitor Maia Filho), como a famosa Casa Navio, ancorada no recém-ocupado Bairro de Boa Viagem.

No centro de negócios da cidade, a Avenida 10 de Novembro, atual Guararapes, foram construídos arranha-céus, cartão-postal da cidade nos anos 1940, marcos de nossa modernidade, assim como o Terminal Rodoviário do Cais de Santa Rita, com formas e linhas aerodinâmicas. O Cassino Americano, também do período, ainda resiste à especulação imobiliária, mas pode estar com dias contados, destino da antiga sede do Aeroporto dos Guararapes e do Hotel de Boa Viagem, quando Pernambuco “falava para o mundo”, slogan de programa da Rádio Jornal do Commercio, cuja antiga sede, no Parnamirim, também foi demolida.

Espaços do Recife moderno que não existem mais e que hoje engrossam a lista dos “óbitos arquitetônicos”, na expressão de Luiz Amorim, sem ao menos terem sido registrados. Outros ainda resistem e são provas das técnicas construtivas, das novas demandas programáticas e das vanguardas estéticas que fizeram do Recife uma das pioneiras da modernidade arquitetônica nacional.

Isso se deve, sobretudo, ao fato de o então governador Carlos de Lima Cavalcanti ter contratado, em 1934, o arquiteto moderno Luiz Nunes, formado na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (1933), que havia presenciado a visita de Le Corbusier ao Brasil e participado da greve em favor das reformas modernas no ensino nessa escola.

Luiz Nunes – juntamente com um grupo de modernistas, entre eles o engenheiro calculista Joaquim Cardozo (que posteriormente trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer nas obras de Brasília), o paisagista Burle Marx (que aqui fez os seus primeiros jardins modernos), os desenhistas Hélio Feijó e José Norberto, Gauss Estelita, os engenheiros-arquitetos João Correa Lima e Fernando Saturnino de Brito (vindos do Rio de Janeiro), além dos, na época, estagiários Antônio Bezerra Baltar e Ayrton da Costa Carvalho – organizou a Diretoria de Arquitetura e Urbanismo. Nesse período, foram construídos hospitais, escolas, postos policiais, pavilhão de verificação de óbitos e a famosa Caixa d’Água de Olinda, nos quais foram desenvolvidas técnicas modernas de construção.

Falecido em 1937, Nunes deixou alguns discípulos na Secretaria de Viação e Obras Públicas que, liderados por Baltar, projetaram o Palácio da Fazenda, exemplar que, juntamente com a Caixa d’Água e o Pavilhão de Verificação de Óbitos, fizeram parte, em fotografias, da exposição: Brazil builds. Architecture new and old. 1652-1942, no Museu de Arte Moderna de Nova York (1942). Essa exposição e o seu catálogo (Goodwin, 1943) percorreram todos os EUA. A Caixa d’Água de Olinda foi um dos mais emblemáticos edifícios da exposição, publicado por diversas revistas internacionais.

MAIS MODERNO
Essa história não fica por aí. Em 1949, com o objetivo de modernizar o ensino e o curso de Arquitetura na recém-criada Universidade do Recife, foi contratado o arquiteto italiano Mario Russo, que projetou o Plano Urbanístico da Cidade Universitária, além de vários edifícios do campus.

Em 1951, chegaram à cidade o arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi e o arquiteto português Delfim Amorim. Cada um trouxe na bagagem seu legado, seja o racionalismo italiano, o moderno carioca ou a herança portuguesa. Foram os ingredientes para criarem uma suposta, ou melhor, inventada Escola do Recife ou Escola Pernambucana, maneira de fazer local, segundo os estudiosos Yves Bruand (1981) e Luiz Amorim (2001) afirmaram existir, conciliando adequação ao clima tropical e à herança do passado colonial.

Esses arquitetos fizeram casas belíssimas, com pilotis integrados a amplos jardins de Burle Marx, com esculturas de Corbiniano, vitrais e esculturas de Marianne Peretti, telhados levemente inclinados, grandes beirais, varandas e terraços, grandes panos de esquadrias protegidas por treliças de madeira (espécies de muxarabis). Também usaram painéis de azulejos decorados por Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, Hélio Feijó, como também pelo arquiteto Delfim Amorim, que costumava revestir as superfícies dos edifícios com grandes painéis de azulejos com motivos geométricos, a exemplo do Edifício Acaiaca, verdadeiras obras de arte integradas ao espaço urbano.

O Edifício Califórnia é um dos que ainda resistem. Ele foi projetado com um programa moderníssimo, que previa, além de comércio e serviços, um cinema. Na Conde da Boa Vista, foram construídos edifícios também de uso misto com programas que conciliavam novas formas de morar, a exemplo do Pirapama.

A proteção ao sol também foi motivo de criativas soluções. No Edifício Santo Antônio, Borsoi elaborou elementos vazados de proteção solar numa verdadeira renda em concreto, que contrasta com belas superfícies em tijolos aparentes. No interior, as escadarias em formas elípticas permitem ao observador apreender o espaço segundo a famosa promenade architecturale (passeio arquitetônico), tão característica dos espaços modernos. Evidencia também a criatividade do exímio arquiteto o projeto do Hospital da Restauração, cuja malha em brises-soleils de concreto marcam a paisagem na Avenida Agamenon Magalhães.

O moderno também esteve presente nas sedes de grandes instituições, como aquelas que buscaram o desenvolvimento da região. A exemplo da Sudene, cujas fachadas curvilíneas de elementos vazados são marcantes, e as amplas plataformas são cobertas por grandes marquises, criando verdadeiros espaços públicos no interior do edifício. A Celpe, a Chesf, as antigas sedes do Bandepe, do Inamps, da Casa da Indústria (atual Fiepe) são alguns dos edifícios modernos que ainda resistem, mas precisam ser preservados. O mesmo se dá com os edifícios Barão do Rio Branco, projeto dos arquitetos Delfim Amorim e Heitor Maia Neto, premiado na época de sua construção, o Villa Mariana, projeto do arquiteto Wandenkolk Tinoco (um dos únicos protegidos), o Edifício Portinari e o Mirage, pérola da arquitetura de Borsoi. Essas são exceções que podem desaparecer, se a população e as autoridades não perceberem a riqueza da arte e arquitetura modernas presentes nesses espaços ou aprenderem a apreciá-los e preservá-los. Protegê-los seria um grande legado para as próximas gerações de recifenses. 

GUILAH NASLASVSKY, arquiteta, professora e autora do livro Arquitetura moderna no Recife 1949-1972.

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