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Uma dimensão política para as experimentações

Artistas desenvolvem performances em que discutem os corpos marcados historicamente por escravizações, explorações e torturas, como os das mulheres e de gays

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Março de 2015

Na obra 'Pedra', Regina José Galindo discute a sujeição do corpo feminino

Na obra 'Pedra', Regina José Galindo discute a sujeição do corpo feminino

Foto Julio Pantoja e Marlene Ramírez-Cancio/Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 171 | mar 2015]

Um corpo em posição fetal.
Um corpo em posição fetal, deitado no chão. Um corpo em posição fetal, deitado no chão, à espera de um olhar. É um corpo feminino, todo coberto de carvão, que se retrai em silêncio. Aos poucos, outros corpos se aproximam. De pé, eles urinam sobre as costas da mulher em posição fetal, deitada no chão. Pedra é título dessa performance da artista guatemalteca Regina José Galindo, 40 anos, realizada em 2013, durante o 8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em São Paulo. Ao dar outros sentidos, em diferentes contextos, às suas experiências estéticas, os performers atualizam a linguagem dessa prática artística nascida nos anos 1960–1970. Assim, Regina não está sozinha. Sua pele carrega não apenas mulheres, povos, culturas e tempos, mas tantos outros artistas que seguem buscando na arte efêmera do corpo uma forma de se posicionar diante do mundo e promover reflexões acerca de realidades circundantes.

“Sobre o corpo das mulheres latino-americanas está inscrita a história da humanidade. Sobre seus corpos conquistados, marcados, escravizados, objetificados, explorados e torturados, podem ser lidas as nefastas histórias de luta e poder que formam nosso passado. Corpos frágeis somente na aparência. É o corpo da mulher que sobreviveu à conquista e à escravidão. Que, como pedra, guardou o ódio e o rancor em sua memória para transformá-lo em energia e vida.” Assim define Regina José sua obra descrita no início do texto. Em 2005, questão semelhante havia perpassado outra de suas criações, intitulada Perra (em português, “cachorra”, “vadia”). Sentada em uma cadeira, numa galeria de arte na Itália, ela escreveu sobre a coxa, com um canivete, a palavra que dá nome ao trabalho, a mesma encontrada no corpo de mulheres assassinadas em seu país, num tempo não muito distante. Perra surge como uma citação interessante à performance Os lábios de Thomas (1975), de Marina Abramović, mencionada na reportagem anterior.


Com formação em Dança, Flavia Pinheiro se interessa pelas relações entre arte e tecnologia. Foto: Divulgação

Para Regina José Galindo, existe claramente um devir corpóreo a serviço de um discurso poético e crítico. Essa forma de estar no mundo, não raro, repercute dentro e fora da Guatemala, fazendo ecoar, no cenário cotidiano, uma pauta comumente ignorada pelos veículos de comunicação, pela sociedade civil ou pelos governos locais. A mídia guatemalteca certamente não noticiaria, por exemplo, o conteúdo abordado por Regina José na performance ¿Quién puede borrar las huellas? (Quem pode apagar as pegadas?, em português), na qual caminhou com os pés sujos de sangue pelas ruas da capital, em memória das milhares de vítimas do conflito armado da Guatemala (1960–1996) e em rechaço à candidatura do ex-militar “genocida e golpista” Efraín Ríos Montt. “Mas não foi um protesto político, foi uma performance. Eu queria fazer uma pintura em toda cidade do meu país. Não sou uma ativista, sou uma artista. Agora, claro, uma artista que é um indivíduo político com convicções políticas muito claras”, lembrou a artista, em entrevista ao Lacap – Latin American Canadian Art Projects.

O performer e pesquisador potiguar Jota Mombaça não concebe a arte separada da dimensão política. Já fez um trabalho no qual ficou soterrado sob britas e areias, acompanhado dos nomes que se feriram durante as manifestações de junho de 2013, no Brasil, e geralmente é atraído por criações dessa natureza, como as de Regina José. “O que se vê hoje, na arte, é a emergência de múltiplos discursos sobre o corpo, sobre corpos historicamente negados ou reprimidos. O número de corpos femininos, por exemplo, que foram super, hiper, ultrarrepresentados na história da arte é inversamente proporcional à quantidade de mulheres artistas que tomaram voz para falarem de si próprias”, observa Jota.

Assim como as mulheres, o artista chama a atenção para a emergência de um debate na arte em torno dos gays e dos transexuais (leia a edição de fevereiro da Continente, nº 170), e dos significados que determinadas partes do corpo, como o ânus, possuem na produção artística e no contexto atual. Por isso, apropriou-se, em seus estudos prático-teóricos, do conceito de “corpo-que-sabe”, de Suely Rolnik, para abordar a noção do “cu-que-sabe”. Uma de suas experiências estéticas foi fazer a reperformance de Terço, trabalho de Pedro Costa no qual ele insere e expele um terço católico por vias anais. “A obra revela a construção do indivíduo nas colônias do Brasil, onde há a marca de corpos degradados, que somos nós. Existe uma ancestralidade na gente e, quando ele tira o objeto do corpo, está expurgando o projeto genocida cristão, abrindo-se, resistindo com um discurso anticolonial e fora da gramática convencional”, afirma Jota.


Para o artista Jota Mombaça, a dimensão política é inerente à arte.
Foto: Daniel Lima/Divulgação

Há quem acredite, contudo, que a performance, como linguagem, perdeu em potencial poético, e mesmo político, acomodando-se nesse campo de experimentações da arte contemporânea. “A performance já é instituição e, como movimento, vem perdendo bastante dos anos 1960 para cá”, acredita Flavia Pinheiro, artista de 34 anos, criada entre São Paulo e o Recife, onde vive atualmente, depois de quase seis anos morando em Buenos Aires, na Argentina. Com formação em dança e interessada pelas questões relacionadas a corpo e tecnologia, Flavia também já se aventurou pelas vias performáticas, costurando e descosturando a própria pele, por exemplo. “Existem paradigmas de corpo na arte, incluindo a dança contemporânea e a performance. Nesta, existe aquela coisa do extreme, do ir na dor para se sentir vivo, bem dos anos 1960. A performance do terço tem sentido dentro de um contexto, mas também a gente se pergunta se ainda faz sentido essas coisas se repetirem”, diz Flavia.

Questionado a respeito da repetição de performances com partes tabus do corpo, Jota responde que anda refletindo sobre isso, inclusive sobre a proliferação de trabalhos, no Brasil, como Macaquinho (2014), que chamam a atenção para partes íntimas e geram polêmica. “Não sei se fazer performances desse gênero é datado. Se as pessoas ainda se chocam, é porque isso tem sentido. Muitas questões postas nos anos 1960–1970 foram reapropriadas pelo poder e pelo mainstream. Além disso, será que a gente tem que ver isso só pela questão do desbunde, como se fazia na época e como mostra o filme Tatuagem? Temos que observar a atualidade das questões e os seus efeitos. Mudando de lugar, muda o contexto”, argumenta o performer. Mesmo criticando, Flavia Pinheiro também considera que algumas performances ainda são eficazes no “universo pós-colonial, no qual ainda funcionam esses esquemas” – de violência contra a mulher ou os homossexuais, por exemplo.


Para fins de pesquisa, Stelarc implantou uma orelha no antebraço. Foto: Divulgação

“Muitos artistas ocupam o espaço urbano, tensionando a relação com a cidade, ou veem o corpo como parte da comunicação, da semiótica. Mas o problema para mim agora é outro, já não é suficiente pensar o corpo dessa forma”, argumenta Flavia, que enxerga a performance na própria vida e não vê mais o corpo como suporte e, sim, como algo a ser pensado a partir de uma tensão entre o analógico e o digital (leia mais sobre isso nas páginas a seguir). Essa perspectiva parece sinalizar um caminho distinto daquele que marcou justamente a quebra de paradigma entre o corpo representado e o experimentado, no século passado.

Para ela, essa visão já está um pouco obsoleta, tanto quanto alguns trabalhos que se aventuram pela tecnologia como quem “aperta um botão”. Nesse sentido, questiona as experimentações, como a da dança telemática, realizada a distância entre diferentes corpos. “O que vemos ali é só uma tela bidimensional! Temos que parar para pensar: o que aconteceu com um futuro que imaginávamos? Como vamos expandir tecnologicamente essa consciência artística? O que vejo é um esquema hegemônico que usa a tecnologia para controlar pessoas e artistas. E a arte está automatizada”, critica a bailarina, para quem pensar em novas tecnologias é diferente de pensar, necessariamente, em novas mídias.

Pesquisadora do uso de recursos low tech, de baixo custo, na arte contemporânea, Flavia acredita que, nesse meio, pesquisas estéticas nos chamados medialabs, de alta tecnologia, trazem consigo, por exemplo, os ideais de quem produz máquina de guerra. Não é o caso da dança telemática, mas de locais como o SymbioticA, cofundado por Oron Catts, artista conhecido por suas experimentações em bioarte. O laboratório, considerado de excelência em artes biológicas, fica na Austrália e ajuda a pôr em prática projetos ousados de nomes como o da artista francesa Orlan (1947), célebre por suas performances em cirurgias plásticas, e de Stelarc (1946), que lá implantou uma orelha no antebraço para fins de pesquisa estética. “Para mim, a arte se constitui na tensão entre arte, corpo e tecnologia, mas é preciso perguntar o que são esses conceitos. Não acho que chegamos ao lugar da matéria no qual ela tenha uma hiper, ultrapercepção desenvolvida a ponto de precisarmos tanto da digitalização ou desse tipo de pesquisa”, observa Flavia.


Obras do australiano Ron Muek dão novo sentido à arte figurativa. Nelas, o corpo hiperrealista e em escalas diferentes do padrão empolgam o público. Foto: Divulgação

A bailarina e pesquisadora Liana Gesteira faz a ressalva de como o corpo pode “desnormatizar” as coisas a partir da forma como se faz uso dele, ou como ele mesmo pode se “desnormatizar”, sendo essa uma maneira de repensar a própria performance. “Valorizo o lugar da técnica e sempre a utilizo para compor, até mesmo na performance. Mas de que forma eu aproveito isso para atacar a visão de mundo na qual essa técnica foi criada? Existe um pensamento político na construção dos corpos, a questão é não reproduzi-lo, mas criar para desconstruir a partir dele”, defende. Tomando partido das ideias do astrofísico Jorge Albuquerque, com quem teve aula sobre teoria do conhecimento durante pós-graduação em Dança, Liana gosta de lembrar que, como ele disse, “a ciência explica o real, o senso comum vive nesse real, a filosofia questiona o real e a arte cria outras possibilidades do real”.

Enquanto isso, artistas recriam técnicas antigas para embaraçar nossas noções de realidade em torno do corpo, por mais simples que isso pareça ser. É o caso do aclamado escultor hiperrealista Ron Mueck (1958), cujo trabalho atraiu, até janeiro deste ano, milhares de pessoas à sua exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Não há ali uma preocupação de ordem performática, mas as obras do australiano mexem com a ideia de escala e dão um novo sentido à arte figurativa, colocando os padrões em perspectiva e a presença do espectador como parte dessa construção.

Outros criadores seguem com suas investigações e, a cada mergulho, nos trazem mais descobertas desse mundo, seja ele real, virtual, ideal ou de inúmeras sensações. Umas são mais surpreendentes, outras nem tanto, mas, graças aos artistas, podemos perceber o quão nosso corpo pode ser mais do que a combinação de pele, ossos, órgãos. No século 15, essa ainda era uma compreensão vaga. O pintor e cientista Leonardo Da Vinci (1452–1519) foi um dos que toparam avançar carne adentro – sendo radical em suas investigações. Trancou-se com vários cadáveres para dissecá-los e, ao desbravar a matéria humana, compreendeu o que muitos de nós sequer imaginávamos. Seus cadernos de anatomia ajudaram a reforçar um determinado olhar sobre a matéria; mais positivista, talvez. No entanto, enquanto estivermos imbuídos desse espírito inquieto que rege a arte, mais infinitas serão as possibilidades do corpo, essa cartografia sem fim. 

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista, mestre em Sociologia pela UFPE.

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