Cobertura

O cinema lá do Sertão

Realizado há dez anos, o 'Festival de Cinema de Triunfo' segue com o seu desafio de deslocar o eixo do audiovisual para o interior pernambucano

TEXTO Eduardo Montenegro

14 de Agosto de 2017

Participantes da 10ª edição do 'Festival de Cinema de Triunfo', realizado entre os dias 7 e 12 de agosto

Participantes da 10ª edição do 'Festival de Cinema de Triunfo', realizado entre os dias 7 e 12 de agosto

Foto Verner Brenan/Secult-Fundarpe

Se pudéssemos imaginar o 10º Festival de Cinema de Triunfo em traços humanos, poderíamos concebê-lo como um rapaz, ou uma moça, que retorna ao Sertão depois de um tempo na cidade grande. Traz consigo as ideias e lutas de um dado cenário político, social e cultural em efervescência. Diria para seus familiares, depois de pedir a benção: “É hora de se empoderar”. Esta foi, afinal, a mensagem do festival em 2017, uma bandeira que cruzou as urbes e subiu a serra para encontrar no Theatro Cinema Guarany o ponto de convergência desses ideais, refletidos durante os 35 filmes selecionados para as competições de curtas e longas, além das mostras itinerantes.

Ao analisar os filmes exibidos entre os dias 7 e 12 de agosto deste ano, a linha de atuação da curadoria pode ser dividida em dois grandes polos, ou como ramos de um grande rio: filmes que retratam as questões contemporâneas (isso inclui diversidade de gênero, lutas sociais, a questão do feminismo etc.), e também trabalhos sobre o Sertão para o Sertão – embora não necessariamente produzido por realizadores do interior. Em certos casos, essas duas ramificações se unem num só córrego, como no caso do curta pernambucano Autofagia (2016), de Felipe Soares. Aqui, a vida interiorana sob o ponto de vista de um idoso e de uma travesti se mistura num lapso de desejo e ódio, resultando num filme de caráter crítico, reflexivo aos direitos LGBTT que devem chegar ao Sertão.

Outras temas, fora desses dois eixos principais, também foram notados e selecionados pela curadoria. Como em Procura-se Irenice (SP), de Marcos Escrivão e Thiago B. Mendonça, um documentário sobre essa atleta “apagada” pela ditadura, ou em Fantasma cidade fantasma (SP), de Amanda Devulsky e Pedro B, em que se reflete sobre os espaços urbanos e afetivos de nosso cotidiano numa Brasília afastada dos conflitos governamentais.

Não somente os curtas-metragens fizeram parte dessa proposta de curadoria, mas igualmente os longas exibidos. Meu corpo é político, documentário de Alice Riff, por exemplo, aborda a vida de quatro militantes LGBTT (entre elas, a MC Linn da Quebrada) nas periferias de São Paulo, como agitadoras sociais no contexto e da luta trans. Ou em Homem livre, ficção de Álvaro Furloni, vencedor dos prêmios de Melhor Ator e Melhor Montagem pelo Juri Oficial de Longa-metragem, abordando a questão do feminicídio e da expansão, em número e política, da população evangélica, e seu papel nas comunidades mais carentes.

Em roda de diálogo, cujo tema era o desafio e a perspectiva para as mulheres no audiovisual, Mãe Beth D’Oxum, coordenadora do Cineclube Macaíba, ressoou em alta voz após batucar os dedos no pandeiro: “Minha perspectiva para a mulher no audiovisual é que tá na hora do ‘pau comer’”. O debate, que incrementou os Encontros de Cinema, na Pousada Alpes, a poucos minutos de caminhada do Guarany, antecedeu a noite mais polêmica do festival.

Como último curta-metragem exibido na mostra competitiva de seu gênero, o filme Embaraço, de Fernando Rick, tocando na questão do aborto, fez com que o coletivo Mulheres no Audiovisual de Pernambuco, o Mape, ocupasse o palco durante a cerimônia de encerramento do Festival de Cinema de Triunfo, convidando a todas as mulheres presentes, que tinham relação com a indústria cinematográfica, para igualmente subirem: uma semelhança com a ação feita durante a Janela Internacional de Cinema em 2016. Ali, leram sua nota de repúdio ao curta-metragem que, em resumo, segundo as realizadoras, tocava no aborto “de uma forma irresponsável (...) sendo um assunto muito mais complexo” do que ali apresentado. Segundo elas, a direção do filme, e suas escolhas, não só colocaram a mulher como uma vilã, mas também erotizaram seu corpo mesmo na dor, além de ter colocado um homem negro como um ser demoníaco, fazendo referência imagética,de cor e vestes, ao Preto Velho – entidade que, segundo as religiões de matrizes africanas, é um ser de luz.

O INTERIOR, PARA SER VISTO
“Eu acredito muito no cinema como uma ferramenta capaz de fazer a gente evoluir enquanto seres humanos. Acho que a arte, de uma forma geral, nos liberta, nos ajuda a evoluir. Então, as pessoas precisam ter uma oportunidade de experimentar, de desenvolver habilidades, sensibilidades. O cinema é um grande parceiro nessa busca de nos evoluirmos”, diz Marcos Carvalho, idealizador e coordenador do projeto Cinema no Interior, que teve sessão especial na sexta-feira (11/8), pela manhã. Segundo Marcos, a ideia do projeto sempre foi fazer com que os filmes veiculados, ou realizados, fossem dos próprios sertanejos.

Com dez anos de moradia em Triunfo, o festival funciona para além das exibições, mas também da capacitação daquelas pessoas. Não adiantaria, é claro, defender a bandeira do Sertão, do papel do audiovisual numa região distante da capital, sem oferecer recursos e oportunidades para a população local fazer com que suas produções também comecem a sair; o interior não somente como anfitrião da produção cinematográfica, mas produtor e propagador dessa mesma arte.

“A gente vive numa luta constante por afirmação. Além disso, a nossa luta, a minha luta, é a de formar outras mulheres. Por enquanto, luto sozinha. Tem Yanara, mas luta em Caruaru. Tem Meire, que luta na Zona da Mata. No meu Agreste, só tenho eu. A minha força é formar outras redes de mulheres, para que a gente se fortaleça e cresça”, conta Karla Ferreira, codiretora do curta-metragem Sob o delírio de agosto, vencedor da categoria Melhor Curta dos Sertões do júri oficial. O filme ironiza o slogan “Pernambuco se vê na tela”, de propaganda exibida sempre antes das sessões começarem. Para ela, originária de Taquaritinga do Norte, o Sertão ainda não se vê na tela, ela mesma não se vê.

FUNÇÃO SOCIAL
As ações de formação ocorreram uma semana antes do festival começar, como um workshop de críticas cinematográficas, que capacitou o júri popular, além da oficina Cinemando – teoria e prática, ou a Cine educador: a utilização do cinema em sala de aula, todas atividades voltadas para os moradores da cidade e das regiões vizinhas, especialmente as do Pajeú, onde Triunfo está situada. A oficina de teoria e prática, por exemplo, facilitada pelo cineasta Kennel Rógis, resultou num curta a respeito das estradas e curtas que levam a Triunfo, que você pode conferir abaixo:



“O que eu acho que fica para as cidades, com o término do festival, são as oficinas, aqueles jovens de escola pública, na margem, vão ter nova perspectiva. Acho que o cinema de interior tem uma função social”, conclui Karla.

Uma nova fase e expectativas a respeito do Theatro Cinema Guarany já borbulham. Segundo a Secretaria de Cultura de Pernambuco, a proposta é criar uma comissão junto aos parceiros, como o Sesc e a Prefeitura de Triunfo, para que se possa pensar em meios de utilização do "espaço multiuso", como foi adjetivado. Entretanto, é preferível e aconselhável que o diálogo se construa com a cidade, com seus moradores, para que não somente as grandes capitais sejam as zonas de produção de cultura, mas que o interior também entre nos holofotes, seja visto.

Tamar Campos, beirando a casa dos 80 anos, nasceu e se criou em Triunfo. “Afinei meus ouvidos pela difusora que colocava música para toda a cidade”, diz ela, que é deficiente física, creditando a isso seu interesse pelas artes de uma maneira geral. Um conselho, no entanto, ela deixa: “Triunfo é uma cidade muito pequena. É preciso mostrar certas coisas aos poucos, de maneira bem-estudada, para não chocar”.

Encerrado o festival, um ciclo de uma década, espera-se que cada vez mais o Sertão entre em pauta e ocupe as salas de cinema. Pois, como uma vez disse o filósofo marxista Antonio Gramsci, “contra o pessimismo da razão, o otimismo da vontade”.

EDUARDO MONTENEGRO, estagiário da revista Continente e estudante de jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)

*O jornalista viajou a convite da Secretaria de Cultura de Pernambuco.

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