Cobertura

Olinda em uma junção de energias

Acostumada aos seus tempos de calmaria ao longo do ano, a Cidade Alta viveu dias quase carnavalescos no último fim de semana, com a 14ª edição do Mimo Festival

Texto Sofia Lucchesi e Erika Muniz

20 de Novembro de 2017

Praça do Carmo durante o 14º Mimo Festival, em Olinda

Praça do Carmo durante o 14º Mimo Festival, em Olinda

Foto Victor Jucá/Divulgação

Cada corpo possui uma carga de energia própria. Quando há uma multiplicidade desses corpos, a pluralidade energética desse encontro se potencializa. Existem alguns elementos que tornam ainda mais possíveis essas reuniões. Um deles, quase como fios condutores dessa junção, é a música. Sem pedir permissão para entrar, ela simplesmente conduz seus ouvintes a diversos fluxos sensoriais. No último fim de semana, durante os três dias da 14ª edição do Mimo Festival, quem esteve no sítio histórico de Olinda pôde experienciar, em seus próprios corpos, a potência dessas trocas energéticas, que impregnaram a cidade.

Desde o Carnaval, Olinda parecia estar em um estado letárgico. Aliás, essa sina de cidade-dormitório já vem de muito tempo: espaços culturais como o Cine Olinda, Museu de Arte Contemporânea – MAC, Mercado Eufrásio Barbosa, Cine Duarte Coelho e Clube Atlântico estão fechados ou praticamente na inatividade, com promessas de retorno sempre descumpridas. Mais recentemente, espaços independentes – que eram uma resposta à ausência de instituições de fomento à arte e à cultura no local –, como a Casa do Cachorro Preto, também encerraram suas atividades.

Natural de Olinda, o multiartista Diabolin, 50 anos, figura conhecida nas ladeiras, expôs seus quadros durante o festival, em uma das calçadas dos Quatro Cantos. Assim como muitos artistas, ele vê na ocasião uma oportunidade para levar seus trabalho às ruas, agora cheias de gente: “Fico esperando o ano inteiro para o pessoal de todo o lugar do mundo e do Brasil chegar aqui. Pra mim, a Mimo é uma abertura do Carnaval, é o pontapé inicial. Quando acaba, eu sinto um vazio no coração, fico triste porque as pessoas não deviam nunca abandonar essa cidade, sempre estar aqui. Olinda está ficando frágil, não querem deixar a gente que é artista trabalhar e a cidade não cresce”.  

Acontecimentos como a Mimo despertam, mesmo que durante um final de semana, nossos olhares para a força que é a Olinda habitada de arte, cultura e vida. Logo ao chegar à Praça do Carmo, somos arrebatados pela imagem da multidão que se espalha em toda a extensão do local, à frente da igreja. Muito próximas umas das outras, as pessoas dividem suas atenções entre a dança, a música e as conversas, tudo isso convergindo com a atmosfera de câmbios que o ambiente proporciona. Se em outros momentos aquelas ladeiras históricas permanecem desertas, em silêncio, durante os três dias pudemos usufruir de toda essa vitalidade olindense.

Na sexta (17/11), a apresentação do angolano Paulo Flores movimentou o público com uma mescla de gêneros, entre eles, a kizomba, ritmo tradicional de seu país. Há em sua música a consciência de que através dos movimentos da dança e das letras, pode-se explorar o teor político das produções artísticas. Logo depois, quem encerrou a programação da noite foram os colombianos do Ondatrópica, com suas sonoridades latinas.

Durante o festival, Olinda se reinventa, se ressignifica, preenchendo as igrejas da Sé, do Carmo, da Misericórdia e o Convento de São Francisco com uma programação musical que leva ao público a oportunidade de conhecer esses espaços de uma outra maneira e no horário noturno, quando esses patrimônios quase sempre são vistos de portas fechadas.


Concerto de Zé Manoel e banda na Igreja do Carmo.
Foto: Beto Figueiroa/Divulgação


A auxiliar administrativa Maria do Carmo, 53 anos, foi ao festival no sábado (18/11) para assistir ao show do pernambucano Zé Manoel, na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, santa com quem divide o mesmo nome (dado em sua homenagem) e de quem é devota. Entre muitas memórias do festival, ao qual faz questão de ter comparecido em quase todas as edições, ela destaca uma: “Há quatro Mimos atrás, assisti ao show de Dona Carmem com a Orquestra Nacional de Cuba. Foi maravilhoso, fiquei apaixonada pela voz dela, uma senhora de 80 anos, com tanta vitalidade cantando. Consegui conhecê-la depois do show, e descobri que ela é devota de Nossa Senhora do Carmo igual a mim. Dei de presente a ela minha medalhinha abençoada e ela botou no pescoço na hora”.

FORA DO PALCO
Se comparado às edições anteriores, este ano o festival deixou a desejar pela pouca quantidade de artistas mulheres liderando os palcos. Um episódio que ficou marcado – e ainda se alastra em discussões pela redes sociais –, aconteceu durante o show de Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra, atração mais aguardada do sábado (18/11). Algumas mulheres da plateia foram convidadas a subir ao palco para dançar, enquanto a banda exaltava “a beleza das mulheres brasileiras”. Ao palco, subiram cerca de dez mulheres, mas ali estavam apenas servindo de elementos objetificados, para exaltar a figura masculina. Em tempos em que debates urgentes assim estão cada vez mais difundidos, é difícil entender que artistas e intelectuais, como o cineasta e músico de fama mundial (Kusturica), não estejam a par desses questionamentos. Difícil ainda é compreender que esses artistas tenham uma visão tão pobre do nosso país, atendo-se ao velho apelo estereotipado e misógino da fetichização feminina.


Apresentação de Emir Kusturica e banda em Olinda.
Foto: Tom Cabral/Divulgação

Enquanto nos palcos artistas negros mostravam todo o seu talento e força (a exemplo Paulo Flores, Vieux Farka Touré, Zé Manoel), na plateia eram frequentes os “baculejos” da Polícia Militar direcionados, em sua maioria, às pessoas negras do público. No domingo (19/11), após o show de Otto, que homenageou o músico Marcos Axé, seu amigo e companheiro de banda há mais 20 anos, falecido na madrugada do mesmo dia da apresentação que faria, a PM usou bombas de efeito moral e spray de pimenta no público sem aparente motivo, durante uma roda de coco que acontecia paralelamente ao festival. Vale lembrar que estávamos na véspera do Dia da Consciência Negra (20/11).

Como cantou Zé Manoel, delírios de um romance (nem tão romântico assim) a céu aberto.

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