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Patti Smith e o êxtase coletivo

Como terá sido a experiência – afetiva, cultural, política – de assistir ao show da cantora e ícone no Popload? De São Paulo, ainda sob impacto, nossa colaboradora Bianca Dias partilha seu re

TEXTO BIANCA DIAS, DE SÃO PAULO

16 de Novembro de 2019

Poeta, escritora, ícone punk, a diva fez do seu show uma catarse coletiva

Poeta, escritora, ícone punk, a diva fez do seu show uma catarse coletiva

Foto Filipa Aurelia/Popload/Divulgação

No Brasil de 2019, a sétima edição do Popload Festival teria lugar, como de costume, no dia 15 de novembro, sexta-feira, feriado devido às festividades pela proclamação da República (curiosamente, por militares), ocorrida em 1889. Das dez atrações anunciadas, três eram nacionais e sete, internacionais. Desde o início do ano, com o resultado das eleições presidenciais, o dólar vinha ultrapassando a casa dos quatro reais, custando a nada módica quantia de quatro reais e dezoito centavos a dois dias do referido festival.

Com o advento do novo governo, diversas políticas adotadas contribuíram diretamente para um desmonte em áreas imprescindíveis para o desenvolvimento, inclusive intelectual, do país. Especificamente em relação à cultura, o Ministério criado em 1985 pelo então Presidente José Sarney foi encerrado no dia dois de janeiro de 2019 por Jair Bolsonaro. O agora chefe da Secretaria de Cultura, Roberto Alvim, chegou a ofender publicamente um patrimônio histórico e artístico nacional, que atende pelo nome de Fernanda Montenegro. Uma combinação de políticas públicas atabalhoadas, medidas econômicas ineficazes e completa ausência de investimentos nas artes continuavam tornando o acesso à cultura, em muitos aspectos, quase um monopólio de privilegiados.

Neste cenário, considerando-se o acréscimo dos custos com deslocamento até São Paulo e hospedagem, o valor de cerca de seiscentos reais - correspondente ao ingresso inteiro - parecia ser apenas o primeiro obstáculo a ser superado.

Tudo isso somado já seria suficiente para que o Popload continuasse na minha lista de improbabilidades para esta vida (junto a outras coisas ou situações que eu acreditava que dificilmente se configurariam, a exemplo de ter outro filho, voltar a morar em uma casa, viver do meu próprio artesanato, pintar o cabelo de verde água ou arrumar uma companhia para fazer o tour de Ulisses, de Joyce, por Dublin). Eu nunca tinha ido ao festival. Já havia perdido o show do Tame Impala, deixei de ver The XX, frustrei-me quando não pude assistir ao Blondie ao vivo.

Mas a segurança mais sólida que deveríamos ter em relação às nossas certezas é que "sempre", "nunca" ou "jamais" não são grandezas de medição de tempo, e sim meros advérbios. Por conta disso, basta que seja anunciada a possibilidade de realização de uma epifania para que a intangibilidade se transforme em taquicardia e endividamento; basta que o Popload Festival anuncie seu line up para 2019 e esteja lá, como atração principal, aquele nome que faz querer embarcar imediatamente na Linha M em direção à Devoção: Patti Smith.

A classe média, a mesma que já foi definida como sendo aquela cujos vencimentos chegam até o fim do mês apenas graças à ajuda do cartão de crédito, termina por fazer algo em que é muito boa: parcelar. Às seis prestações das passagens aéreas que só davam direito a bagagem de mão seria adicionada a conta da estadia. Com o orçamento pra menos do que curto, imbuída do espírito de juventude de uma pessoa de meia idade que enfrentaria um festival cujo horário inicial era às 10h45, com o último show marcado para as 20h45, resolvi usar do expediente "low budget" de quando ainda era jovem de verdade e recorrer àquela acomodação dos que têm muito desprendimento e já quase nenhum dinheiro: o albergue. Com quarto compartilhado. Seis beliches. Doze pessoas.

Imagino que esse périplo inicial sirva de termômetro para dar a noção do quanto eu queria, queria muito, queria mesmo, ver Patti Smith. Ao vivo. Seria a primeira vez dela no Brasil, sabe-se lá se também a última, considerando que demorou 72 anos pra se achegar por esses bandas.

Tarso de Melo, ao comentar o show dos Racionais MC's em São Paulo, na comemoração dos trinta anos do grupo, disse ter "a impressão de que, para alguém que tem uma vida laica como eu, o ambiente de um show é a coisa mais próxima de uma experiência religiosa - uma experiência de culto". À véspera do evento, a única coisa em que conseguia pensar era na evocação de uma experiência transcendente.

Ao mesmo tempo em que é tão icônica, conhecida e admirada, ou talvez precisamente por isso mesmo, por outro lado é difícil, de certa forma, explicar, de modo subjetivo, o que faz alguém pagar por um ingresso caro, tomar um avião, atravessar o país e dormir com desconhecidos apenas com o fito de estar frente a frente com um(a) artista. Não parece racional; provavelmente é tudo menos uma questão de razão.

É possível que, mais do que pelo que Patti Smith fez, seja pelo que ela é. Ou representa. É certo que seu romance com Robert Mapplethorpe resultou em uma das mais prolíficas parcerias artísticas dos nossos tempos, período em que ela lançou Horses, cortou os próprios cabelos, posou de modo desafiador e seguro, olhando diretamente para a câmera dele. Porém, na contramão do padrão sentimental a que estamos habituados, o affair acabou, mas a relação, não.

Amar alguém e conseguir enxergar o seu objeto de desejo sob a ótica do não pertencimento é um tour de force no qual, parece, poucos terão sucesso. O amor altruísta é louvado e ansiado, mas pouco alcançado na prática. A transformação de um par romântico em companheiro de vida serve para resumir, em uma palavra, um sentimento que aflora toda vez que se olha para Patricia Lee Smith: liberdade.

Essa liberdade não é uma dádiva, não é um presente, não é uma bênção. Não é gratuita. Traz atrelada a ela uma assunção de responsabilidades das quais vemos pessoas tentando fugir o tempo todo. Ao invés de exaltar a liberdade como justificadora das nossas atitudes, Patti Smith - que engravidou aos 20 anos e deu esta criança em adoção - canta: "Jesus died for somebody's sins, not mine".

Em tempos carentes de herois, a humanidade escancarada de Patti Smith, seus posicionamentos políticos claros e inequívocos, sua poesia de resistência e sua preocupação social aproximam-na da idolatria, criando identificação, fazendo da sua a nossa própria voz, tornando-nos livres por meio da força de suas palavras: suas músicas, seus livros e sua poesia constroem um imaginário no qual é possível, de modo concomitante, ser-se quem se é, amar livremente, resistir à opressão, buscar o próprio caminho e enxergar as delicadezas da existência que acentuam, ao longo do melhor e do pior do dia, o prazer de, ainda assim, e mesmo assim, estar vivo.


Foto: Filipa Aurélio/Popload/Divulgação

SHE IS SUBLIMATION.
No sétimo volume de Em busca do tempo perdido, Proust narra a relação do tempo com a memória, a importância do tempo na construção da memória, como o tempo não é apenas um passar dos dias, de modo rotineiro e mecânico. Em O tempo redescoberto, tempo e memória não são apenas o que são, mas o que poderiam ter sido. Eles se entrelaçam para fazer com que a memória transite pelo tempo e transforme o que aconteceu no que poderia ter acontecido, no que gostaríamos que tivesse ocorrido, no que queremos lembrar à nossa maneira. Há o tempo do que foi, o tempo do que poderia ter sido e o tempo do que gostaríamos que permanecesse sendo, continuamente.

O tempo do show de Patti Smith é o futuro do pretérito.

Ver Patti Smith ao vivo não pode ser uma experiência com começo, meio e fim. Quando do encerramento do seu show, tempo e memória não podem mais se separar, porque é preciso sempre voltar àquela noite.

Não há muito mais que se possa falar acerca do que é ter vivido a presença de Patti Smith a poucos metros. Afinal, como já disse Rubem Fonseca, "há coisas que não podem ser ditas nem escritas".

Basta sair de trás das coxias e sua figura ocupa o palco inteiro. A abertura do espetáculo, com People have the power, deu a tônica do que viria pela frente e ao longo do show: uma força que não é simulada ou exagerada, e sim exalada.

Antes de cantar Because the night e ser acompanhada em uníssono pela plateia, a cantora declarou que sentiu "muito amor desde que chegou aqui", e que a próxima canção era uma canção de amor. Um amor, é preciso que se diga, correspondido: de Horses a Gloria, hit após hit, o que se viu foi a performance de uma artista visceral, que dominou o público e todo o espaço ao seu redor, conclamou à resistência ao gritar que "We are fucking free people", e, ao final, arrancou corda a corda da sua guitarra, incendiando os presentes.

Esqueçam a senhorinha do Instagram. Ela não existe no palco. Talvez essa velhinha suave seja parte de algo que Patti se tornou, mas não quem ela é. Ao microfone, o furor do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970 continua lá; o tom de desafio; a fúria uterina; a performer imperiosa que comanda e faz, de maneira magnética, com que todos, sem hesitar, queiram lhe obedecer.

Patti Smith poderia ser um poema tirado de uma notícia de jornal: 

Cuspiu
Cantou
Dançou

Depois se atirou metaforicamente na plateia e morreu aclamada.

Oh God, Patti, we fell for you.

BIANCA DIAS é advogada e leitora diletante.

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