Entremez

A guerra do amor

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Novembro de 2017

'Alcibiades ferido', pintura a óleo por Joseph-Marie Vien (séc. XVIII-XXI)

'Alcibiades ferido', pintura a óleo por Joseph-Marie Vien (séc. XVIII-XXI)

Pintura Reprodução

Dizem que Alcibíades, o nobre grego sobrinho de Péricles, tinha o costume de mutilar os genitais das esculturas que adornavam a cidade de Atenas. Como não li a biografia escrita por Tucídides sobre esse homem referido como o mais belo dos belos, não posso afirmar se o relato é verdadeiro. A história registrou que Alcibíades viu-se implicado na profanação de estátuas do deus Hermes e dos mistérios de Elêusis, sendo acusado de sacrilégio. Tornado célebre muito mais por sua vida ruidosa do que pelos feitos políticos, ele aparece em dois livros de Platão – um que leva o seu nome e n’O banquete –, e na peça As rãs, de Aristófanes.

N’O banquete, onde se discute o significado de eros, amor e ágape, em simpósio com jovens poetas e filósofos, Alcibíades tem uma participação ridícula, chega completamente embriagado e reclama que não recebe a menor atenção do seu bem-amado Sócrates. Diz ter oferecido um jantar ao filósofo, deitando com ele sob o manto, porém nada aconteceu diferente "do que se tivesse dormido com o pai ou com um irmão mais velho”. Segundo Roberto Calasso, toda a metafísica do amor ateniense pelos jovens machos se concentra no gesto com o qual o amado oferece sua graça ao amante. Alcibíades quis dar a sua charis ao feio e velho Sócrates, mas este recusou-o, provocando despeito, raiva e um discurso que parece extraído de novela das oito.

Vale a pena gastar algumas horas lendo O banquete e Fédon, descobrindo o quanto o cristianismo se apropriou da obra de Platão para elaborar sua doutrina, e quanto a filosofia do período clássico se transforma em moralidade e preceito religioso. Porém, o amor entre homens considerado como algo de belo pelos gregos, e que era prescrição do Estado, se demoniza, vira crime passível de ser punido no cristianismo.

Mesmo condenando a prática dos amados e amantes, o Vaticano guardou com usura e cupidez, e expõe no seu museu, as cenas em que os gregos se entregam à luxúria desse amor entre iguais, registrada em dezenas de pratos, taças, ânforas e vasos.

O caso da exposição no Banco Santander de Porto Alegre, fechada pelo motivo de que feria princípios morais e religiosos, revela a irracionalidade dos censores. Eles defendem a religião cristã, mas ignoram sua história. Desconhecem o personagem Cristo, conforme se apresenta nos evangelhos, sobretudo nos apócrifos. Assumem o lado mais sombrio e truculento do catolicismo, o dos tribunais da Santa Fé. Lembram um relato de Ivan Fiodorovitch a Aliocha, no romance Os irmãos Karamazov, de Dostoievski. Nele, Cristo retorna à terra e prega seus ensinamentos. Preso, é levado a uma masmorra, onde se encontra com um velho inquisidor. O dominicano censura o retorno de Jesus, que não poderia propor novamente a liberdade aos homens, um bem que eles não compreendem nem suportam. Tinha custado muito à Igreja se apropriar da liberdade de cada um, arrebanhar os fiéis e conduzir seus destinos. Não existe lugar para O Cristo na terra, muito menos para o que prega. Julgado, O condenam à fogueira.

O que há de comum entre o homem seguido por pescadores, gente simples do povo, mulheres, prostitutas, ladrões e a figura adornada de ouro, presa à cruz, símbolo do império católico engrandecido a custo de guerra, extorsão, catequese, tortura e medo? Nada. Cristo foi um transgressor, quebrava a ordem, acenava com valores intangíveis e imensuráveis. O que o artista se propõe com a sua arte é também causar transtorno, fazer uso da liberdade. Daí o incômodo causado pela criação, o desconforto do indivíduo diante do novo, fora da medida do que se acostumou a sentir e avaliar.

Gore Vidal considerava Alcibíades um delinquente. Quebrar os genitais de estátuas, sobretudo em templos, não é diferente de pichar o Cristo Redentor no Corcovado, o que já foi feito por um jovem carioca. São transgressões. O valor de crime é a sociedade quem atribui. As motivações variam para cada pessoa. Alcibíades talvez desejasse chamar a atenção de Sócrates, que o recusava como amado. O pichador carioca considerou o seu gesto façanha, desafio ao perigo e ao mundo. Morreu cedo e certamente já o esqueceram.

Das obras de arte expostas no Santander a que mais chocou os defensores da fé e da moral foi a pintura de um Jesus com várias mãos, espécie de Deus Shiva segurando objetos, até algo identificado como um vibrador. Confesso que nada me choca, acho as imagens pueris comparadas ao que se mostra diariamente na televisão, e a pornografia de livre acesso às crianças, na Internet. Eu aceitaria os protestos do público, desde que significassem uma manifestação pessoal. Mas o movimento orquestrado por grupos de direita, com fins políticos, torna perigoso o enfrentamento, ganha foro de censura e repressão, algo impensável, mas que retorna em todo o mundo, numa onda assustadora.

Censura e repressão não é privilégio da direita. Stalin e os comunistas russos perseguiram artistas e intelectuais de forma cruel. Mais recentemente, a Revolução Cultural Chinesa produziu uma onda de banimentos, torturas e mortes de artistas, comparável aos tribunais da inquisição. Não preciso lembrar Hitler nem o macarthismo.

Prefiro lembrar a estreia do balé A sagração da primavera, obra musical de Igor Stravinsky, coreografada por Vaslav Nijinsky, que estreou em Paris em 1913, sob vaias e aplausos, causando um tumulto que obrigou a polícia a levar quarenta espectadores presos. O saldo dessa estreia conturbada foi a revolução na dança e na música, se estabelecendo a partir daí os cânones da contemporaneidade. Isso aconteceu na França? Sim, é verdade. Mas ganhou o debate em todo o mundo das artes. E deu frutos, mais liberdade de criação.

No Brasil, no Santander, fecharam a exposição e pronto. Ela ameaçava o banco de perder clientes e sofrer prejuízos. Vitória do obscurantismo, prenúncio de dias sombrios pela frente.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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