Matéria Corrida

Contramão

TEXTO José Cláudio

03 de Outubro de 2017

Linda Batista

Linda Batista

Foto Reprodução

A maior cantora brasileira, logo mundial, de todos os tempos, foi, depois de Maria Celeste, da PRA-8, Linda Batista. Digo “brasileira logo mundial” porque naquela época só existia o Brasil; o resto era nome no mapa. Ai, como gostaria de ouvi-la rasgar, com aquela nitidez inigualável, a segunda parte de Nêga maluca: “Há tanta gente no mundo/mas meu azar é profundo/veja você, meu irmão/a bomba estourou na minha mão/Tudo acontece comigo/eu que nem sou do amor/até parece castigo/ou então influência da cor”. Ela fala, no samba de autoria de Edu Lobo, acho, não, do outro, do Lobo anterior, Fernando, o primeiro Lobo enfim, parente do meu colega de colégio e faculdade Octavio Lobo, como se fosse o pai, ou suposto pai, do neném: na época era a palavra dela contra a dele, já que não havia DNA. Na minha memória a voz ressoa como se ouvisse pela primeira vez, como certamente ouvi nalgum rádio em Ipojuca na década de 1940 talvez. Vou perguntar a Arthur Carvalho. “Tava jogando sinuca/uma nêga maluca/me apareceu/Trazia o filho no colo/e dizia pro povo que o filho era meu”. Breque: “Toma que o filho é teu/meu senhor/toma que Deus te deu”. Outro dia vi o retratinho, a carinha gorda, o único que conheço dela, em preto e branco, e não preciso dizer que acho lindíssima, ultrapassando minha capacidade de avaliação, como Lana Turner, como deusas. Aliás, hoje não lembro mais exatamente como era o rosto de Lana Turner, visto somente nas estampas do sabonete Lever, usado por nove entre dez estrelas de Hollywood. Nem cinema havia em Ipojuca. Por falar em Hollywood, também não existia ainda cigarro Hollywood. Nem sei se já existia Continental. Meu pai fumava, um por dia depois que fechava a loja e tomava café, depois da ceia, Selma. Seu Zé Uz da farmácia fumava Regência. Ambos com embalagem de papelão. Astória já era em maço de papel. Boa Ideia (Boideia), num pacotinho cilíndrico, tipo feixe. Os velhos fumavam cachimbo com fumo de rolo. Eu tinha uma tia, ainda relativamente jovem, que fumava cachimbo desses populares que ainda hoje existem, um rebolinho de madeira onde se enfia um canudinho de pau. Se meu avô Pedro Taveira fumava, que não lembro direito, era desse.

Uma vez, dia de feira, domingo, vi vovô tomando aguardente na venda de Seu Octavio, sentado com outros velhos nos sacos de feijão e milho, o caixeiro Dionísio botando as lapadas num copinho. Senti que ele ficou desconcertado com o flagra. Ele não me disse nada mas eu sabia que era para não dizer nada em casa. Meu pai detestava bebida. Só uma vez lembro de tê-lo visto ir buscar uma garrafa de aguardente, de manhã cedo, antes de abrir o comércio, a pedido de Seu Manolo, parente de Dra. Naíde Teodósio como depois vim a saber. Ele já tinha saído de Ipojuca. Dormiu lá em casa e de manhã, ao acordar, queria uma para tomar um banho. Me lembro dele fazendo o gesto com o polegar e o indicador. Nem falou o nome da maldita para eu não ouvir.

Lá em casa nunca houve bebida de qualidade nenhuma. Somente Dia de Ano, que coincidia com o Dia de Santo Cristo de Ipojuca, abriam-se para alguns convidados que não tinham casa na cidade, umas garrafas de vinho Imperial, que não sei se ainda existe. Entre esses visitantes, Seu Zé Dias, marido de minha tia Edith, com seus filhos Amaro Antônio, Lilita e Joana. Dos três, hoje, só existe Joana, que mora em Maceió. Eu passava férias em casa de Tia Edith, primeiro no Engenho São Paulo, perto de Camela, depois em Aratanji, idem, e por fim em Burarema, perto de Cucaú.

De minha avó, Mãe Joquinha, se isso interessa à história do Brasil, conheci adultos seis homens e seis mulheres, não sei bem a ordem de nascimento: Agostinho, Zezé, que tocava violão, Zé Pequeno, que foi caixeiro de meu pai que lhe deu uma loja e ele perdeu toda no jogo de bicho, gêmeo com Manoel, que trabalhava na Sorocabana em São Paulo, em casa de quem fiquei quando da primeira viagem àquela cidade para ver a Bienal de 1954, lá ficando durante anos, no Km 33, perto de Itapevi, Raphael, que trabalhava na Tramways e morou lá em casa aqui no Recife durante muitos anos e Filó, Philogônio, por quem eu tinha uma admiração especial por ter sido velho de pastoril. Minhas tias eram, Gasparina, casada com Antônio Lourenço, com quem teve muitas filhas todas muito bonitas, Edith, de quem já falei, casada com Seu José Dias, Ramira, minha mãe, cujo nome mesmo era Maria Ramos, por ter nascido Dia de Ramos, Otília, casada com Neto, filho do primeiro casamento de Antônio Lourenço, Luizinha, a mais velha, que morava em Sirinhaém, e Maria José, a com quem eu tinha maior aproximação, talvez por ser a mais nova, risonha e simpática.

A festa mais bonita, depois da de São João, eu achava Dia de Ramos. Na procissão, todos carregavam uma folha de palmeira dessas domésticas que se plantam em latas. O nome completo de minha mãe antes de casar era Maria Ramos de Albuquerque Pinto. Meu pai mudou para Maria Ramos da Silva. Daí virei José Cláudio da Silva. Nunca disse nada mas gostaria de ter esse nome: Albuquerque Pinto. E, sendo meu avô Cândido Miguel Teixeira Pinto, eu poderia ter sido Albuquerque Teixeira Pinto, sugerindo ser descendente do nosso primeiro poeta Bento Teixeira Pinto.

Na última vez que estive em Ipojuca só vi uma pessoa do meu tempo de menino, Leta, de um povo que viera de Sirinhaém, ou Rio Formoso, viúva de Gilvan, filho de Dna. Hermínia, na mesma casa da família Leôncio, pegada com a antiga cadeia. Se não fosse isso, nem saberia ter estado em Ipojuca. Nem no Convento eu sabia chegar. Era contramão. Ipojuca com contramão. Dá para acreditar, Breno?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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