Entremez

Em nome da falta de pai

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Agosto de 2017

Marguerite Duras e suas armadilhas...

Marguerite Duras e suas armadilhas...

Ilustração Maria Júlia Moreira

Quem é o amante de Marguerite Duras? Difícil responder, pois nem mesmo nome ele possui. As coisas e as pessoas precisam do batismo de um nome. Está no mito do Gênese: Deus chamou à luz dia e às trevas noite. Marguerite Duras não gosta de dar nome às pessoas que ama ou odeia. No seu romance, só possuem nome aqueles que significam pouco. O amante possui uma galeria de epítetos e jamais um nome: ele; esse homem obscuro de Cholen; o milionário chinês; o amante de Cholen; o homem de Cholen; o homem elegante; meu amante.

Marguerite Duras cria armadilhas em torno da personagem de 15 anos e meio, que atravessa o Rio Mekong numa balsa. Ora escreve como se fosse a própria adolescente que estuda num pensionato de Saigon, ora se distancia como se não suportasse os dramas que revela e prefere escrever na terceira pessoa. A menina que usa um vestido gasto de seda natural, sapatos de salto alto em lamê dourado e um chapéu masculino com abas retas e lisas também não possui nome. Pode ser a pequena prostituta branca do posto de Sadec; a menina; a pobre menina; ou a menina com chapéu de feltro. Mas o nome de batismo nunca será revelado, como se ela não tivesse um pai.

A pequena prostituta branca do posto de Sadec possui um amante chinês a quem ela jura não amar. Possui uma mãe, referida como a diretora da escola feminina de Sadec, ou essa mulher de uma certa fotografia, ou ela, ou minha mãe meu amor. Também possui dois irmãos: o irmão mais velho, por quem nutre sentimentos desencontrados; e o irmão mais novo, que por um lapso da escritora é chamado de nosso pequeno Paulo, uma referência ao nome próprio que nenhum outro personagem da trama merece. É como se a autora quisesse presenteá-lo com a distinção do nome, por conta do acúmulo de amor que sentia por ele, tão grande que a fez desejar a morte quando o perdeu precocemente.

O romance de Marguerite Duras provoca no leitor o mesmo transtorno de que sofrem a narradora e seus personagens. Somos arrastados por fluxos de memória e sentimentos contraditórios. Muitas vezes ficamos à deriva como a balsa que atravessa o Rio Mekong, mas retornamos a um fio narrativo que nos conduz entre afirmações e negativas, um discurso psicanalítico. Duras escreve como quem tece e desmancha. Se buscamos nos romances longos a distensão que nos alivie dos conflitos da trama, nas páginas compactas de O amante quase não existe trégua nem cessar fogo. As duas narrativas casuais sobre personagens sem importância – Marie-Claude Carpenter e Betty Fernandez –, que possuem nome e sobrenome, apenas reforçam o estranhamento da falta de nome das personagens com significado.

Mas quem é o amante dessa menina com chapéu de feltro, o homem que a apanha todas as noites no pensionato, numa grande limusine preta, e a leva para um quarto em Cholen, bem distante do centro de Saigon, para se amarem até a exaustão? Quem é esse amante magro e de corpo sem força, sem músculos e sem virilidade a não ser a do sexo? E porque a filha da professora de Sadec, que quase nunca refere o pai, que só vagamente nos faz supor que ele morreu, deixa-se banhar por ele, com a água fria de uma jarra, como criança entregue aos cuidados paternos? Talvez para descobrir-se e revelar-se nas últimas páginas do romance que escreveu na velhice. Do mesmo modo que os psicanalisados resistentes o fazem ao término das sessões, Duras ou a menina descobre e revela aos leitores que se tornara a filha do amante.

A sombra de outro homem também devia atravessar o quarto...
Eu tinha me tornado sua filha. Era com a filha que ele fazia amor todas as noites.

Nesse romance soberbamente bem-escrito, cumpre-se a lei de que todos os livros se enunciam nas primeiras páginas. No começo, a filha da professora de Sadec afirma que escrever não é nada; escrever não é nada senão publicidade. O romance gravita em torno do desejo de escrever, maior talvez que o desejo do pai e do amante. Mesmo que ela negue esse desejo para afirmá-lo muitas outras vezes.

A menina que brevemente retornará à França, atrás de tudo o que perdeu, tudo o que não teve na infância miserável, descobrirá um único caminho possível para reaver o que lhe foi tirado: o esquecimento. E o único esquecimento possível é escrever. Pronunciada, a palavra adquire concretude e forma, nunca mais pode ser devolvida aos labirintos escuros do inconsciente. Escrita, ela é bem mais poderosa, é a única possibilidade de se acessar a memória e transformá-la em esquecimento. O que se escreve se esquece.

Vou escrever livros. É o que vejo para além do instante, no grande deserto que se afigura como a extensão de minha vida.

Afirma e faz.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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