Entremez

Mandacaru versus carvalho

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

31 de Agosto de 2017

"Se nós fôssemos poderosos e exportássemos literatura ao invés de açúcar e café, os gringos estudariam em suas escolas o que era um mandacaru"

Ilustração Maria Júlia Moreira

Durante as férias do curso de medicina, eu fazia de cada viagem ao cariri cearense um motivo de investigação sobre a cultura popular. Certa vez, cansado de igrejas e romeiros do Padre Cícero, refugiei-me no Crato, em casa do velho professor Garcilaso e sua esposa Berenice, que me ajudaram nas pesquisas sobre o cordel, emprestando livros.

Antonio Garcilaso me convencia com humor e erudição de que todo lugar pode ser o centro do mundo, os gênios estão ligados por fios invisíveis e a cada época defendem idéias parecidas. Lembrou-me de vários artistas que aprecio e de suas aventuras. Alguns ficaram presos à casa e dela nunca se afastaram. Outros deram voltas ao mundo e retornaram desiludidos às origens. Igual à história de um rabino da Cracóvia, que sonhou com um tesouro enterrado sob uma ponte de Praga. Cansado da obsessiva repetição do sonho, ele viaja até a cidade que lhe aparece todas as noites.

Temeroso, circunda a ponte dias seguidos, sem saber o que faça. Um capitão desconfiado pergunta o que deseja. “Meu amigo”, ele diz, “sonho que debaixo dessa ponte tem um valioso tesouro”. O homem dá boas gargalhadas e debocha da ingenuidade do viajante. “Ora, ora. E você veio de tão longe atrás disso? Saiba que eu também sonho que na Cracóvia, em casa do rabino Eisik, ao lado da lareira existe um tesouro fabuloso”. O rabino estremece. “Eisik, filho de Jekel?”, pergunta. “Ele mesmo, você o conhece”? Mas o rabino não escuta a resposta, já se encontrava longe, correndo de volta para casa.

– O cariri cearense é o centro do mundo, Garcilaso garantia, Juazeiro a matriz da religiosidade e da cultura popular. Aqui existiu um oceano cretáceo e se guardaram fósseis antigos. Todo esse passado sobrevive em nós, faz parte de nossa genética. Concorda? Vocês no Recife acreditam que o oceano Atlântico se formou pela união do rio Capibaribe com o Beberibe. Eu afirmo que o mundo começou aqui. Quer provas?

Rimos até as lágrimas. Berenice aproveita e nos serve cachaça.

– Beba, é muito boa.

A aguardente desce queimando.

– Minha segunda casa era um rio, mas não parecia com o Sena, o Danúbio, o Reno, o Mississipi ou o Volga. Cansamos de nos apresentarem a esses cursos de água, nos romances e novelas. Eles nem precisam ser descritos, fomos massacrados com tantas informações que nos acham imbecis se desconhecemos a geografia fluvial da Europa ou dos Estados Unidos. A nenhum francês se pede que conheça o Granjeiro, o riozinho do Crato. Ele deságua no Salgado, o Salgado no Jaguaribe e o Jaguaribe no Atlântico. Até nas aulas de história nos obrigavam a discorrer sobre o Sena, a mencionar os nobres afogados em suas águas, durante a Revolução Francesa. Essas coisas inquietavam o meu juízo e comecei a assumir um comportamento rebelde.

Experimento a mais pura satisfação.

– Outra descoberta dizia respeito à flora estrangeira. Aborreci-me de ler sobre carvalhos, choupos, salgueiros, sequóias, pinheiros, zimbros, faias, aveleiras, tílias, plátanos, freixos, nogueiras e amieiros. Fazia um esforço sobre-humano para elaborar as imagens, nem sempre havia enciclopédias e revistas de consulta e quando as árvores apareciam nos filmes, nenhuma seta indicava: isso é um carvalho. Nas redações do colégio eu me sentia inseguro em escrever sobre a flora européia, que tanto impressionava os professores habituados às leituras de Tolstoi, Balzac e Maupassant, alheios às nossas espécies nativas, oitizeiros, baraúnas, angicos, muricis, aroeiras, quixabeiras, carnaúbas, juazeiros e gameleiras.

Pausa para mais cachaça.

– Um dia, perguntei ao professor de literatura por que era obrigado a conhecer um abeto e se exigiam de um estudante alemão que memorizasse os nomes da vegetação mirrada da caatinga. O mestre tinha a resposta pronta. Nossa literatura regionalista não preenchia os cânones universais e por isso éramos tão pouco lidos dentro e fora do país. Citou a entrevista de um escritor peruano, que ganhou o Nobel, onde ele afirmava: “Não seria o escritor que sou, sem os anos que vivi na Europa. Felizmente, a vida me premiou, convertendo-me num cidadão do mundo”. Concluí que foi graças a ter morado na Europa que se tornou um escritor e cidadão do mundo. Mas, o sujeito não afirmava se os nascidos fora da Europa deixariam de ser cidadãos do mundo, apenas tornava claro que, para ele, um peruano, a cidadania e o livre trânsito pelo mundo se deram porque residia na Europa.

A esposa Berenice escuta os argumentos calada.

– A afirmativa deixou transparecer as dificuldades dos intelectuais da América Latina em relação aos seus países de origem e suas culturas. Não fiquei satisfeito com a resposta do professor e continuei querendo descobrir o motivo dos marmeleiros, mandacarus e carnaúbas serem regionais e os carvalhos universais. Enchendo a boca e a papada, nosso arcaico mestre leu um trecho do O Romeiral, de Balzac: “Há uvas de todas as regiões, figos, pêssegos, peras de todas as espécies e melões, assim como o alcaçuz, a giesta de Espanha, os eloendros da Itália e os jasmins dos Açores”. Revirava os olhos, degustando frutas que nunca tivera o prazer de saborear, acostumado apenas aos cajus, mangas e bananas. E nos obrigava a descobrir no dicionário o que era alcaçuz, giesta e eloendro.

Pausa.

– Um colega me doutrinava afirmando que todo o poder balzaquiano era consequência da economia e cultura dominantes. Se nós fôssemos poderosos e exportássemos literatura ao invés de açúcar e café, os gringos estudariam em suas escolas o que era um mandacaru. E que minhas preocupações caducavam de velhas, José de Alencar já se ocupara em defender pontos de vista semelhantes, os modernistas de São Paulo e os regionalistas do Recife levantaram as mesmas questões, apenas na nossa cidade continuávamos ignorando o que se escrevia no Brasil e lendo autores europeus clássicos. Advertiu que eu não alcançaria mudanças pensando e escrevendo, só através da revolução o mandacaru ganharia status de carvalho, virando um símbolo da resistência nordestina. As idéias me pareceram malucas, continuei dando cabeçadas para todos os lados, subi o rio Granjeiro até chegar à Floresta do Araripe e tive a revelação da natureza.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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