Crítica

'A forma da água': uma ode ao afeto

Vencedor do Oscar de Melhor Filme, drama dirigido por Guillermo del Toro, além de homenagem ao cinema em si, propõe um legítimo exercício de alteridade

TEXTO Luciana Veras

05 de Março de 2018

Sally Hawkins interpreta uma faxineira muda em 'A forma da água'

Sally Hawkins interpreta uma faxineira muda em 'A forma da água'

FOTO Divulgação

Deu A forma da água (The shape of water, EUA, 2017) no Oscar 2018: melhor filme, melhor direção, melhor trilha sonora e melhor direção de arte. No páreo para o prêmio principal, havia Corra! e sua brilhante caracterização do racismo e estigma nosso de cada dia, Dunkirk e a guerra pela linguagem rebuscada de Christopher Nolan, Trama fantasma e todo o peso de Paul Thomas Anderson e da canção do cisne de Daniel Day-Lewis; havia ainda Me chame pelo seu nome, Lady Bird e sua delicada construção da relação entre mãe-filha, The post: guerra secreta, um Steven Spielberg a nos lembrar como a imprensa deve agir em tempos de crise e, falando em crise, O destino de uma nação, com Gary Oldman na pele de Winston Churchill nos estágios iniciais de uma II Guerra que ninguém ainda vislumbrava como se descortinaria.

Mas ganhou A forma da água, o encontro entre uma faxineira muda e uma criatura subaquática capturada pelo governo norte-americano na Amazônia. Ganhou A forma da água, uma história de amor entre uma mulher e um monstro. De monstros o diretor Guillermo del Toro entende, e dos monstros tratou de nos aproximar desde A espinha do diabo (2001) e Hellboy (2004), culminando com o fantástico universo criado em O labirinto do fauno (2006). Portanto, em A forma da água o cineasta mexicano estabelece, de imediato, uma fábula ambientada “muito tempo atrás, em uma pequena cidade perto da costa, mas longe de tudo”.

Quando a narração em off irrompe na tela, fala, também, de uma história de “amor e perda e do monstro que tentou destruir tudo”. Somos levados a crer, em princípio, que ao monstro caberá o arquétipo destinado a monstros – desgraça, destruição. Porém, na narrativa fincada em Baltimore, em 1962, Guillermo del Toro usa todos os elementos de seu repertório imagético afetivo, ao qual se referiu no discurso quando recebeu a estatueta de melhor filme, para fazer o que conclamou os jovens realizadores a empreender: “usar a fantasia, o cinema de gênero, para contar histórias sobre as coisas que acontecem no mundo de hoje”.

Jordan Peele fez isso em Corra! (e a repórter especial da Continente Débora Nascimento destacou no texto escrito para a coluna Mirante em setembro/17), ele fez isso em A forma da água. Sob a égide da Guerra Fria, e com ecos de filmes tão distintos como O monstro da lagoa negra (1954, uma inspiração para o diretor aos seis anos de idade) e os melodramas de Douglas Sirk, o que del Toro erige é uma ode ao amor e ao afeto como elementos capazes de nos salvar da solidão e de uma sociedade que tende a achatar as diferenças.

O núcleo afetivo, a “família”, de A forma da água é composto por Elisa (Sally Hawkins, um farol), uma faxineira muda, sua amiga negra Zelda (Octavia Spencer, sempre gigante) e seu vizinho recluso, Giles (Richard Jenkins, a quem deveria ter sido dado o Oscar de melhor ator coadjuvante), que sonha como o atendente da lanchonete próxima. Um trio de vidas ordinárias envoltos em uma rotina cronometrada: acordar, tomar banho, masturbar-se, assistir a filmes antigos pela televisão ou no cinema que fica diretamente abaixo do apartamento de Elisa, ir ao trabalho, esfregar chão, voltar para casa.

Elisa, a se comunicar apenas por gestos, e Zelda, de uma loquacidade ímpar, são funcionárias de uma instituição do governo. Os homens que as cercam remetem, também, às memórias de filmes antigos evocadas por del Toro – são tão arquetípicos como o monstro 'interpretado' por Doug Jones: Strickland (Michael Shannon) é o implacável agente do governo que quer aniquilar a criatura, Hoftstetler (Michael Stuhlbarg) é o cientista que percebe a importância de proteger e estudar o monstro, mas que, na verdade, é um espião.

O que une todos esses personagens? Qual o vínculo a enfeixá-los e colocá-los para dançar no baile que del Toro orquestra, ao som da trilha sonora de Alexandre Desplat? Estão todos sós. A solidão, ela sim, a monstruosidade à qual todos estariam condenados (ou ainda estão, como mostra a reportagem de capa da Continente de março). Zelda é casada, mas o marido não é seu companheiro. Giles não consegue romper com a convenção para se assumir gay. Strickland faz sexo com a mulher pensando em Elisa, que, por sua vez, aferra-se ao cotidiano por não acreditar que exista uma fresta para transcendê-lo. O que os remove da solidão é, justamente, o ser abjeto, o corpo que não se encaixa nas configurações, a criatura, o freak, o monstro.

Em depoimento publicado na Continente de fevereiro, a cineasta argentina Lucrecia Martel revelava que, quando começava a rascunhar os personagens de um novo filme, neles pensava como um Frankenstein, “um monstro do pântano, um Godzilla ou qualquer outra mutação inesperada”.

“O que é um monstro, então? É um organismo que traz algo divino e isso pode ser uma boa notícia. Na hora de escrever, para mim, a ideia de um monstro é de uma natureza instável, ou seja, é uma pessoa comum, como outra qualquer, eu ou você, e de repente vira um monstro”, diz Lucrecia.

Muito transcorreu entre 1962, ano em que A forma da água é ambientado, e 2017, ano em que a obra de Guillermo del Toro venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza, e 2018, ano em que levou a tal estatueta dourada de melhor filme. Mas ainda rechaçamos os monstros que não convergem para os rótulos que, por vezes sem saber, perpetuamos. Ainda temos dificuldades de acolher todos e todas que fogem às definições fáceis e, ainda falhamos, como sociedade, em cuidar daqueles a quem chamamos de aberrações.

Em A forma da água, o que Guillermo del Toro, seu monstro aquático e sua faxineira muda propõem é, além de uma homenagem ao cinema em si, um legítimo exercício de alteridade. Como as grandes obras de arte, o filme é um espelho, colocando o espectador a se confrontar com o que entende por amor e pelas formas de amar o outro justamente quando esse outro desvia e foge do que reputamos como “normal”. Que a salvação para os tempos tenebrosos, em 1962 e em 2018, recaia, justamente, nos monstros, em todos aqueles que se lançam a amá-los e no sentimento que, ao capturá-los, fortalece-os para a misteriosa travessia da vida.

Publicidade

veja também

Uma carta de amor e nossa coleção nacional de escombros

Juan José Saer

‘Tár’, uma reflexão sobre poder