Crítica

A ancestralidade futurista de Pantera Negra

Explorando de forma especulativa o passado, presente e futuro das populações negras, filme inspirado em HQ da Marvel situa-se, de maneira contundente, nas narrativas afrofuturistas

TEXTO Kênia Freitas

19 de Fevereiro de 2018

Pantera Negra e o reino de Wakanda

Pantera Negra e o reino de Wakanda

Foto Marvel/Divulgação

Em uma das cenas finais de Pantera Negra (Black Panther, Ryan Coogler, 2018), T'Challa, rei de Wakanda e o pantera negra, sua irmã Shuri e sua então namorada Nakia estão em uma quadra de basquete de um bairro negro pobre em Oakland, Califórnia. Enquanto as crianças da vizinhança jogam, os três observam o prédio que representa um trauma familiar do passado real e uma abertura para outras perspectivas de futuro. Assumindo uma nova postura para o seu reino em relação ao mundo, T'Challa (o ator Chadwick Boseman) desativa o sensor de camuflagem e revela sua sofisticada nave para as crianças negras no local. Enquanto o resto dos meninos correm para ver o equipamento, um dos garotos fixa, entre incrédulo e maravilhado, os olhos no rei. O garoto consegue apenas dizer um curioso: “Quem é você?”, que será respondido com um confiante sorriso de T'Challa.

Essa troca sutil entre os dois (um menino negro pobre da Califórnia e o rei-super-herói de um rico país africano), escolhida como uns dos encerramentos do filme, é importante por re-situar os jogos de pontos de vistas que a narrativa nos propõe. Esses jogos implicam múltiplas perspectivas de vivência de mundo negras e as possibilidades (e impossibilidades) de encontro, confronto e convivência de tais experiências em sua multiplicidade. Encontro marcado sobretudo pelo ponto de vista afrodiaspórico dos EUA em relação à imaginação e ao desejo de retorno às origens africanas – desejo simbolizado na deslumbrante Wakanda e de forma intra e extra-diegética (na narrativa do filme e na própria concepção dos quadrinhos originais da Marvel).

Se as múltiplas visões de mundo são o primeiro ponto importante para pensar o filme, esse desejo e olhar afrodiaspórico pode ser ainda melhor entendido a partir da discussão do afrofuturismo (movimento estético e político embasado na junção da vivência negra e das narrativas de ficção especulativa). Isso porque Pantera Negra é uma obra que une, no mesmo patamar, a alta tecnologia e a ancestralidade africana. Explorando de forma especulativa o passado, presente e futuro da populações negras, o filme situa-se de maneira contundente nas narrativas afrofuturistas.


Foto: Marvel/Divulgação

A trama principal do filme inicia-se com T'Challa preparando-se para assumir o reino de Wakanda, após a morte do seu pai, o rei T'Chaka. Wakanda é uma nação da África Central rica e camuflada do restante do mundo, graças a sua tecnologia avançada. Materialmente, a fonte da riqueza do país e o combustível de sua alta tecnologia é a sua reserva exclusiva de vibranium (um resistente e poderoso metal). O sucesso do reino pode ser pensado a partir da sua estratégia de isolamento, que evitou a exploração colonizadora europeia de atravessar as suas fronteiras e destruir a nação. Ao mesmo tempo, o posicionamento isolacionista é constantemente questionado por wakadans que viajam ao redor do mundo. Ao assumir o trono, esse será um dos dilemas principais de T'Challa. Dilema que é acirrado pela necessidade de confrontar inimigos externos: o traficante sul-africano e branco, Ulysses Klaue, e o mercenário afro-americano, Erik Killmonger.

UM FILME AFRODIASPÓRICO
A grande virada do filme acontece justamente quando Killmonger tira definitivamente Klaue da jogada e assume, sozinho, o lugar do antagonista (desafiando T'Challa pelo trono de Wakanda), revelando também a sua ligação familiar e histórica com Wakanda. Menos do que um vilão, Killmonger torna-se uma parte significativa dos jogos de contraponto do filme. Propõe uma intervenção radical onde o caminho era o isolamento e tensiona a positividade afrofuturista dos wakandas, com o seu afropessimismo inegociável – afropessimismo que não vê outra solução para o fim do racismo estrutural nas sociedades marcadas pela supremacia branca – como os EUA, o Brasil, os países europeus – do que uma transformação revolucionária radical na ordem social. Killmonger é, então, muito mais do que um inimigo externo, ele é uma intencional perspectiva afrodiaspórica radical incrustada no centro da trama pelo diretor e corroteirista do filme Ryan Coogler. Até por isso o personagem é interpretado pelo ator Michael B. Jordan, que acompanha todos os longa longa-metragens de Coogler, protagonizando os dois primeiros – Creed (2015) e Fruitvale Station (2013).

O dilema central do filme (o confronto entre T'Challa e Killmonger) é algo que norteia boa parte do sentimento afrodiaspórico: como é possível para negros diaspóricos voltarem para casa quatro séculos após a escravização, a colonização e a violência sistemática e estrutural branca? A África pode ainda ser essa casa de forma concreta para além de um imaginário? Quais as bases possíveis e negociáveis para uma revolução negra, apesar e para além do trauma histórico (das cicatrizes psíquicas e corporais, tão evidentes no caso de Killmonger)? Um dos trunfos do filme é o de assumir que não existem respostas simples ou definitivas para essas questões.


Foto: Marvel/Divulgação

Assim, não há um maniqueísmo nesse confronto. No momento em que Klaue é tirado da equação e o filme é recentrado no conflito principal exclusivamente negro, ocorre também uma suspensão fílmica da dinâmica antinegritude versus negritude que conforma as sociedades ocidentais atuais (na visão afropessimista). E o filme mergulha em uma narrativa afrocentrada. No filme, em Wakanda, os personagens negros não existem em relação aos brancos (o que é impossível nas sociedades de supremacia branca marcadas de saída pela antinegritude). O que na narrativa o isolamento secular de Wakanda proporciona, para a grande maioria dos seus habitantes, é essa possibilidade de apenas existir (e não existir em relação à uma violência social ontológica branca). E o dilema trazido por Killmonger é o da necessidade imediata, irrestrita e inegociável dos negros fora de Wakanda, sobretudo, no filme, os negros estadunidenses, de desfrutarem dessa forma plena de existência.

AFROFUTURISMO


Foto: Marvel/Divulgação

Nesse sentido, o Pantera Negra de Coogler assume-se, de partida, como o que é: um filme negro dos EUA sobre o um país imaginário na África – em uma África que, em si, permanece um horizonte imaginário de retorno para a diáspora negra. Uma relação simbólica com a África que, como pontua o historiador camaronês Achille Mbembe, situa o continente como um conceito político: a imaginação radical para os afrodiaspóricos de um lugar em que, de partida, ser negro em relação à branquitude não determina a experiência do cotidiano. Ou seja, a imaginação de um lugar não conformado diariamente pela supremacia branca, o racismo e a violência estrutural.

O britânico-ganense Kodwo Eshun, um dos principais teóricos afrofuturistas, costuma frisar que existe uma semelhança ontológica entre a experiência negra diaspórica e a ficção científica. Afinal, o que a maquinaria econômica e social branca fez com o tráfico de escravos negros africanos por quatro séculos foi um processo violento de abdução: sequestrando, violentando e submetendo os negros a uma radical submissão cultural (incluindo o deliberado apagamento das tradições culturais, religiosas, comunitárias e familiares dos escravizados). O que a criação esplendorosa de Wakanda no filme faz é o acesso a um outro lado dessa experiência pelo viés especulativo afrofuturista. Essa criação no faz questionar então: como poderia ser uma nação africana que nunca tivesse sido colonizada e mantido toda a sua riqueza material, a soberania sobre as suas fronteiras, a autonomia cultural plena e a autodeterminação sobre a convivência entre as diversas etnias em seu território?

Se recentemente os filmes produzidos por Hollywood estão mais atentos à questão da representação, ampliando tímida, mas gradativamente, a presença de pessoas não-brancas nos filmes (e isso também nas obras de ficção científica e fantasia), o que o Pantera Negra reivindica é também o caráter da representatividade. Essa representatividade passa não só por um elenco majoritariamente negro, mas por uma equipe encabeçada por um diretor e roteirista negro (com outros negros ocupando funções criativas fundamentais para o filme, como o da designer de figurino Ruth Carter, responsável pela extensa pesquisa e criação dos figurinos de Wakanda inspirados na cultura de diversas nações africanas). Assim, o filme assume, definitivamente, a sua veia afrofuturista não apenas por ser uma ficção especulativa com personagens negros, mas por basear a sua narrativa na experiência negra (e nas questões especulativas desse imaginário).


Foto: Marvel/Divulgação

E, como já dissemos, essa experiência negra do filme é permeada pela multiplicidade de pontos de vista dos personagens. Se o embate mais evidente é entre a política pacifista, isolacionista nacionalista e autoprotetora de T'Challa e a revolta revolucionária e radical de Killmonger em prol da construção de um imperialismo negro mundial de Wakanda, os demais personagens do filme se posicionaram assumindo pontos de vistas diversificados na trama. Assim é que os personagens do filme, sobretudo as mulheres negras da narrativa, são uma miríade de experiência negras complexas. Importante frisar que são mulheres negras de pele escura e cabelo crespo, que rompem, de saída, com o frequente colorismo cinematográfico de Hollywood. Para ficarmos em poucos exemplos dessas posturas, temos: a independente Nakia, que mais do que namorada/ex-namorada de T'Challa, é uma espiã do reino de Wakanda que viaja o mundo em missões com objetivo de trazer mais justiça social. Desde o início do filme, ela é a personagem que se posiciona fortemente contra o isolacionismo da nação, acreditando na necessidade de intervenção de Wakanda no mundo para dividir a sua tecnologia e conhecimento.

Outra mulher forte central é Okoye, general do exército real de Wakanda, Dora Milaje – formado exclusivamente por guerreiras. Amiga de T'Challa, e de toda a família real, ao ser confrontado entre a lealdade aos amigos ou o dever com a nação, a guerreira não hesita em escolher Wakanda (assim como, após a reconfiguração do cenário, ela não titubeia em se reposicionar – sempre ao lado de Wakanda, porém). Se Nakia e Okoye são guerreiras bem-treinadas, Shuri (a jovem irmã de T'Challa) aparece como a irreverente gênia precoce – responsável pelo comando científico da alta tecnologia de Wakanda. Há um balanço divertido entre o seu brilhantismo intelectual e a sua falta de seriedade nos protocolos sociais de uma princesa. Entre os homens, M’Baku, o chefe dos Jabari (uma nação que se isolou nas montanhas de Wakanda, mantendo uma distância vigilante ao resto do reino), destaca-se como um inesperado aliado, mantendo uma grande coerência ética com o reino.


Foto: Marvel/Divulgação

Enfim, se o filme não se instala em uma dicotomia entre os posicionamentos de T'Challa e Killmonger, é também porque a complexidade das personagens e das suas relações colocam a narrativa em um perspectivismo em que a experiência negra no mundo não pode ser pensada por um viés unívoco e generalizante. Retomando a cena final, que começa a revelar Wakanda para mundo, podemos encontrar outra síntese para o filme de Coogler: a do equilíbrio entre um cinema de superfície e excesso (das cenas de perseguição e batalhas com os seus efeitos de som e imagens abundantes) e a sutileza de um cinema de gestos mínimos (como o sorriso T'Challa para o menino negro, ou as lágrimas presas de Killmonger no encontro com o seu pai, ou ainda o por-do-sol de Wakanda).

Entre as múltiplas perspectivas do filme, há também sempre uma disputa pelo que se deve mostrar e o que se deve esconder (e como): os segredos trágicos familiares, as paixões, as riquezas invejadas de um povo, os desejos de vingança e de retorno. No fim, a nave se mostra, reposicionando Wakanda no jogo do que se esconde e o que se vê do cenário mundial. Anos depois, o garoto que olha para T'Challa ocupa o lugar de Killmonger brincando na mesma quadra do mesmo bairro pobre negro dos EUA. Como Killmonger, o seu primeiro impulso é o de questionar. O filme nos deixa como resposta, por ora, a confiança no sorriso do pantera negra.

EM TEMPO
A Uninassau – Centro Universitário Maurício de Nassau, campus Boa Viagem, Recife, recebe, neste sábado (24/2), especialistas em histórias em quadrinhos para debater o filme, a partir do tema A origem do Pantera Negra e a cultura racial no universo Geek. Às 14h, no auditório da instituição (Rua Jonatas de Vasconcelos, 316, Boa Viagem, Recife/PE). A entrada são 2 kg de alimento não perecível.

KÊNIA FREITAS é pós-doutoranda em Comunicação pela Universidade Católica de Brasília e pesquisadora, curadora e crítica de cinema.  

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